Por Maíra Torres e Glória Tega
Brasil também não adere à convenção da Unesco que poderia ajudar na valorização de bens arqueológicos
[A Marinha do Brasil também foi contatada para essa reportagem. As questões foram respondidas pela área competente da instituição, mas até o fechamento deste texto as respostas não haviam sido aprovadas por instâncias superiores. Atualizaremos o texto quando as respostas forem liberadas pela Marinha do Brasil.]
Imagem: Marcus Davis
O local é Neópolis, interior de Sergipe, uma das cidades banhadas pelo rio São Francisco. Com quase 3 mil km de extensão, o “Velho Chico” é o maior curso d’água totalmente nacional, dotado de riquezas naturais, econômicas, turísticas, culturais, sociais e também arqueológicas.
As últimas são alvo constante das chamadas Fiscalizações Preventivas Integradas (FPIs), feitas pelo Ministério Público de Sergipe, definidas pelo órgão como iniciativas isoladas de caráter preventivo e que estimulam a pesquisa. Para proteger e descobrir, a instituição mobiliza equipes de arqueologia subaquática para extensos mergulhos, tanto buscando como verificando as condições de sítios arqueológicos submersos.
Um dos achados mais recentes, feitos numa região próxima ao núcleo urbano de Neópolis, inclui uma embarcação possivelmente naufragada entre os séculos XVIII e XIX, de onde emergiram descobertas capazes de demonstrar a antiguidade da presença indígena no território demarcado pela comunidade Xokó, originalmente descoberta pelos jesuítas no século XVI e expulsa de seu território, atualmente resumido ao município de Porto da Folha.
Ao todo, a fiscalização detectou 11 sítios arqueológicos subaquáticos com objetos diversos, desde restos de embarcações, artefatos indígenas e material histórico. Segundo o MP, o local foi sinalizado e medido, e a Marinha do Brasil e o Iphan convocados para responderem por suas atribuições.
Atualmente, é a Lei nº 10.166, de 2000, que determina o que é de responsabilidade da Marinha e do Iphan nessas descobertas, e versa sobre o patrimônio arqueológico brasileiro. Nela, sob o ponto de vista prático administrativo, quem define o que pode ser explorado, submergido ou retirado, e autoriza e fiscaliza a realização de pesquisa arqueológica subaquática é a Marinha, que age sob a normativa Norman-10/DPC. Nesse mês de setembro de 2021, essa norma sofreu algumas atualizações relativas a procedimentos de aprovação de explorações, mais burocráticos do que práticos.
O Iphan, por sua vez, é legalmente responsável por identificar, cadastrar e manter preservados e protegidos os bens encontrados, sejam eles retirados ou imersos nos sítios arqueológicos. Para salvaguarda desses materiais, o Instituto pode estabelecer competências e procedimentos entre os órgãos envolvidos e para isso realiza fiscalizações eventuais por meio de suas superintendências estaduais. Isso significa que, além de visitas, o Iphan só pode agir quando há um “olhar arqueológico” sobre o local, o que acontece após notificação da Marinha.
Para o Iphan, sítios arqueológicos terrestres que foram submersos, naufrágios, áreas portuárias, locais de depósitos de oferendas, locais de abandono ou perdas de objetos, entornos de fortificações, entre outros, “são locais que podem, muitas vezes, serem estudados a partir do olhar da arqueologia. Todavia, do ponto de vista administrativo, solicitações de autorização para realização de pesquisa arqueológica subaquática são encaminhadas à Marinha do Brasil, a qual solicita manifestação do Iphan”.
Com funções interligadas, as atribuições de um órgão acabam por vezes esbarrando nas do outro, o que pode desencadear falhas na comunicação entre as instituições, brechas na fiscalização e entraves burocráticos para as expedições científicas. “Na prática, o Iphan parece bastante ausente da fiscalização dos bens culturais submersos, o que é um problema, inclusive para a Marinha, que se vê muitas vezes solitária na tomada de decisões acerca do patrimônio cultural”, opinou a procuradora Lívia Tinoco, do Ministério Público Federal em Sergipe com atuação destacada em prol do patrimônio arqueológico. Para ela, uma solução possível seria um melhor detalhamento e até revisão do que é de responsabilidade de cada instituição. “Não só podemos como precisamos melhorar muito a lei, especialmente revendo a autorização do estabelecimento de posse de bens arqueológicos, como reforçar o poder do Iphan no curso dos licenciamentos ambientais de empreendimentos que afetem ambientes aquáticos como é o caso de pontes, hidrelétricas, portos, dentre outros”, sugeriu.
Convenção da Unesco
Gilson Rambelli, arqueólogo subaquático e professor da Universidade Federal de Sergipe, também afirma que não houve mudanças significativas que melhorassem as explorações culturais e patrimoniais que desvendem a história tupiniquim. “Nos últimos 20 anos nada mudou, todo o discurso de proteção do patrimônio está sustentado na legislação brasileira de 2000. Depois ainda surgiu a Convenção da Unesco para a proteção do patrimônio cultural de 2001, que o Brasil infelizmente não é signatário”, frisou. O motivo, segundo Rambelli, é que o país usa do argumento da “soberania nacional”, com o pensamento de que seguindo as regras da convenção outros países ganhariam o direito de administrar explorações subaquáticas em terreno nacional.
A Convenção da Unesco é um instrumento de regulação sobre o patrimônio subaquático. Ela veda a exploração comercial desse patrimônio com objetivo de lucro ou especulação. Segundo Lívia Tinôco, é um instrumento de proteção e previne sua dispersão irreversível, pilhagem ou destruição, além de estimular os estados a punir atos que danifiquem esses bens. Grupos que praticam “caça ao tesouro” atuam em todo o mundo em desacordo com o texto da Convenção. No Brasil, porém, eles ainda têm o respaldo da Lei 10.166, dos anos 2000, que cria brechas e permite a comercialização do patrimônio.
Atualmente, empresas privadas de mergulho que descobrem através de documentos ou investigações superficiais que existe a possibilidade de encontrar bens materiais, como ouro e objetos de valor, em embarcações naufragadas em território nacional podem oferecer um plano de exploração ao governo brasileiro. Se aceito, a empresa recebe a autorização para coletar investimentos de interessados em apostar altos valores para fazer as buscas, que podem até não encontrar o que previam. O exemplo mais conhecido é o da embarcação Santa Rosa, de 1726, cujo suposto “tesouro” foi inicialmente avaliado em mais de 500 milhões de dólares em ouro e prata e, até hoje, nunca foi encontrado.
Uma das normas da convenção estabelece que “o patrimônio cultural subaquático não deverá ser negociado, comprado ou trocado como bem de natureza comercial”. No Brasil, é o Ministério Público Federal quem realiza as sanções sempre que um dano ao patrimônio cultural subaquático é noticiado ou quando há um risco em potencial.
“Questões de soberania e interesse nacional foram alegadas para impedir a adesão, porém, a convenção não visa alterar definição ou limites definidos em outros tratados, nem implica em mudar jurisdição ou direitos de soberania dos Estados. De todo modo, seria possível ao Brasil aderir à Convenção formulando reserva à alguma cláusula que fosse julgada incompatível com os interesses nacionais”, ponderou a procuradora Lívia Tinôco.
Em relação à convenção, o Iphan afirmou que, embora o Brasil não seja signatário, reconhece a importância das ações de preservação previstas, e que nela existem “normas científicas internacionais para o incentivo à pesquisa e a formação de arqueólogos subaquáticos, além do compartilhamento de tecnologias e conhecimento entre os países”. Além disso, o Instituto considerou que a Convenção “é a principal ferramenta de apoio aos países signatários para melhorar os mecanismos de proteção desses bens. Esse marco legal também estabelece medidas de proteção contra saques, tráfico ilícito e exploração comercial de patrimônio submerso, bem como normas científicas internacionais para o incentivo à pesquisa e a formação de arqueólogos subaquáticos”.
Valores inestimáveis e diversos
O Iphan classificou o patrimônio cultural subaquático com a “mesma importância dos demais patrimônios culturais acautelados pelo órgão, sejam eles arqueológicos, imateriais ou materiais de outras naturezas. Destaca-se aqui que alguns desses sítios podem trazer contribuições significativas para a história de ocupação do território brasileiro, das práticas náuticas, dentre outras questões. Por essas razões, esse patrimônio deve ser devidamente preservado para usufruto das gerações atuais e futuras”.
Marcus Davis é mergulhador profissional, proprietário de operadora e escola de mergulho e mestre em ciências marinhas tropicais (Labomar/UFC), com dissertação sobre o potencial arqueológico da Enseada do Mucuripe, em Fortaleza (CE). Para ele, é notável a mudança quando o público em geral recebe informações sobre o patrimônio submerso. “Os mergulhadores se interessavam mais quando sabiam o contexto histórico sobre o que veriam embaixo d’água e, mesmo que seja uma coisa “simples”, um pedaço de um navio, ganha um trato diferente”, diz.
Marcus aponta essa inserção histórica como uma das maneiras possíveis de aproximar o público geral de um período da história brasileira com a qual poucos sentem conexão, ou empatia, e como uma forma de valorizar a história nacional. Outro caminho é a valorização dos sítios arqueológicos sob um olhar humanizado, questionador dos agentes da história – e não de suas produções.
É o que defende a arqueóloga subaquática Luciana Alves, doutoranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, cuja pesquisa abarca, sobretudo a arqueologia afrodiaspórica, com enfoque na relação das evidências materiais associadas ao tráfico de africanos escravizados com a logística envolvida nos desembarques fora dos portos tradicionais. Para ela, apesar de relevante, as pesquisas sobre patrimônio cultural subaquático, sob o ponto de vista exploratório, podem e devem ganhar um outro olhar além do material, caso queiram aproximar as pessoas de sua própria história. “O que tem sido feito até o momento não é mais suficiente. Tem sido raso e preso à materialidade, pouco se considerou a causa humanitária”, considera.
O olhar unilateral se exemplifica quando relacionado às pesquisas e buscas em navios negreiros, que, segundo ela, normalmente envolvem objetos de tortura, disposição de escravos em navios, condições de viagem e meios humilhantes de subsistência. “Temos que pensar quem foram essas pessoas. O que elas fizeram? Para onde foram? As pessoas querem olhar o que foi feito com o negro, fetichizar essa ideia escravagista através dos objetos, quando na verdade não existe “tesouro” a ser descoberto nesses navios – e alguns pensam que se não existe ouro, não há nada valioso, mas a carga valiosa não é objetificada, é orgânica”, explica.
A discussão sobre valor é, aliás, um fator que pode tanto impulsionar pesquisas e novas descobertas quanto barrá-las. Definir o que é valioso para alguém ou para uma instituição é subjetivo a ponto de travar discussões e ações jurídicas e legais, já que, de acordo com o ponto de vista econômico, cultural, patrimonial ou turístico, o “valor” dos achados para um grupo pode se sobrepor aos interesses de outro.
Em meio a um jogo de poderes e responsabilidades, quem deixa de ganhar é o Brasil, que continua submergindo pedaços da história, muitas vezes mais antigos que o próprio tempo de espera por uma lei adequada.
Maíra Torres é jornalista e aluna do curso de especialização em divulgação científica Labjor/Unicamp
Glória Tega é jornalista, especialista e mestre em divulgação científica e cultural, doutoranda em anpropologia/arqueologia pela UFMG.