Bibiana Graeff é formada em ciências jurídicas e sociais, mestre em direito ambiental e doutora em direito. É vice coordenadora do Curso de Bacharelado em Gerontologia (EACH/USP) e lidera o grupo de pesquisa: Direitos Humanos, Envelhecimento e Velhice. É responsável pelo convênio de cooperação entre a EACH/USP e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para atividades de estágio dos estudantes de gerontologia.
Imagem: IEA/USP
Por Angelina Zanesco
Como você situa o programa Age-friendly City (cidade amiga da população idosa) da OMS no contexto histórico e demográfico mundial?
As origens do projeto Age-friendly City da Organização Mundial da Saúde remontam 2005, quando a ideia foi apresentada no 18o Congresso Mundial de Gerontologia Rio de Janeiro. Nessa época, um brasileiro estava à frente do Departamento de Envelhecimento e Saúde da OMS: o dr. Alexandre Kalache, um dos grandes expoentes internacionais no campo da gerontologia. Juntamente com a pesquisadora canadense Louise Plouffe, foram os “pais” do projeto.
A ideia de transformar os espaços em ambientes mais amigáveis para todas as idades, a partir da escuta das demandas identificadas pela população idosa, aparece como resposta a dois fenômenos que começam a se produzir no século XX e marcam, em dimensões planetárias, o início do século XXI: a urbanização e o envelhecimento populacional.
De acordo com dados da Organização das Nações Unidas de 2018, 55,3% da população mundial residia em áreas urbanas (sendo esse percentual muito mais elevado em alguns países, como o Brasil, de 86,6%). As previsões são de que essa porcentagem, em termos mundiais, aumente consideravelmente até 2050.
Isso ocorre concomitantemente ao envelhecimento populacional, ou seja, o aumento do percentual de pessoas idosas em relação à população mais jovem, que também se manifesta em âmbito planetário, em diversos contextos de desenvolvimento econômico, em função do aumento da expectativa de vida e da queda da fertilidade.
Segundo dados da ONU, em 2020 havia no mundo 727 milhões de pessoas com 65 anos ou mais. Esse número está projetado para mais do que dobrar, alcançando mais de 1.5 bilhões em 2050. O percentual de pessoas com 65 anos ou mais na população em geral deve crescer de 9,3% em 2020 para 16% em 2050. Em alguns países, como o Brasil, já terá ocorrido a inversão da pirâmide etária. Em relação à população brasileira, projeções do IBGE indicam que em 2055 o número de pessoas idosas (60 anos de idade ou mais) deverá ser mais do que o dobro do número de pessoas de 0 a 14 anos.
É nesse contexto de urbanização e envelhecimento populacional em realidades com grandes disparidades socioeconômicas, crise ambiental e sanitária, que o projeto se desenvolve.
Como o Brasil se inseriu nesse contexto?
Um dos mentores do projeto foi o médico brasileiro Alexandre Kalache. Além disso, uma das 33 cidades onde foi aplicado o projeto-piloto da pesquisa foi o Rio de Janeiro. Posteriormente, iniciativas inspiradas no método proposto pela OMS foram desenvolvidas em diversos municípios (a exemplo de Veranópolis, no Rio Grande do Sul; Pato Branco, no Paraná; ou São Paulo) e alguns estados brasileiros (São Paulo, Rio Grande do Sul). Em âmbito nacional, o governo federal lançou em 2018 a Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa (Ebapi), e tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 402/19, que cria o Programa Cidade Amiga do Idoso. Outras iniciativas “amigas do idoso” foram implementadas em outros âmbitos, como bairros ou hospitais. Algumas iniciativas, embora mantenham a denominação “amiga do idoso”, acabam afastando-se da proposta da OMS. Parece-me que, embora algumas adaptações possam ser feitas no método proposto originalmente, importa que alguns aspectos essenciais sejam preservados: o caráter participativo, com a escuta da população idosa, e um envolvimento tripartite nas diversas fases de implantação do projeto: universidade (ou pesquisadores) – que asseguram o rigor metodológico e o caráter científico do diagnóstico e do estudo; poder público – que detém competências e recursos para a tomada de decisões; e a população interessada – que confere legitimidade a todo o processo.
Quais são os maiores desafios em nossas cidades, considerando o curto e médio prazo?
Cada cidade pode ter suas especificidades, mas pensando, por exemplo, na cidade de São Paulo, em médio/longo prazo, o maior desafio seria reduzir as desigualdades socioeconômicas, que fazem com que as condições de vida das pessoas idosas conheçam enormes disparidades de um distrito a outro, conforme mostram os indicadores sociodemográficos publicados pela Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania (Coordenadoria de Políticas para a Pessoa Idosa) em 2020. Enquanto a expectativa de vida aos 60 anos de idade é de 28,68 anos em Alto de Pinheiros, ela será de 18,05 anos na Vila Curuçá. Enquanto a expectativa de vida ao nascer é de 85,33 anos de idade em Alto de Pinheiros, ela se reduz a 71,28 anos em São Miguel. Enquanto a taxa de idosos em situação de pobreza ou extrema pobreza é de 22,36 pessoas para cada 1000 idosos em Cambuci, essa taxa sobe para 276,77 pessoas em Parelheiros. Além de se pensar numa melhor distribuição no território dos serviços de apoio para a atenção integral e integrada à pessoa idosa, é preciso que se ampliem e se aprimorem os serviços hoje existentes. Um grande desafio é oferecer melhores condições para que as pessoas possam envelhecer bem em suas comunidades, com a oferta de serviços de apoio em domicílio e de serviços intermediários como centros-dias. Em megalópoles como São Paulo, as subprefeituras podem e devem exercer papéis fundamentais para a promoção do envelhecimento ativo e saudável, seja na zeladoria de parques e praças, seja no cuidado com as calçadas e com a acessibilidade que permita maior mobilidade das pessoas. É preciso que seja disseminada educação gerontológica em todos os níveis de ensino formal, não-formal e informal para que a sociedade esteja preparada para o envelhecimento, e para que se possa combater o idadismo e a violência contra as pessoas idosas. A promoção de atividades intergeracionais é muito importante para a vida comunitária. E com certeza, como sugere o projeto Age-friendly City, é fundamental que as políticas públicas sejam formuladas com participação social, que seja uma construção de baixo para cima, e não de cima para baixo.
A população idosa pode ser a protagonista dos espaços urbanos e dos seus direitos como cidadão?
A população idosa pode e deve ser protagonista dos espaços e dos seus direitos. Ser idoso não significa ser menos cidadão. Infelizmente, ainda existe uma tendência de se interferir na autonomia das pessoas mais velhas em relação à sua tomada de decisões, seja na esfera privada, seja na esfera pública. A pessoa idosa é quem deve decidir, por exemplo, a respeito de onde, como e com quem morar. A participação das pessoas idosas nos conselhos municipais, estaduais e no conselho nacional do idoso, bem como nas conferências municipais, estaduais e nacional, deve ser estimulada e valorizada. Os próprios conselhos devem ser fortalecidos, com a implementação de fundos da pessoa idosa. É preciso disseminar conhecimento acerca dos direitos das pessoas idosas em todos os âmbitos. Diversas instituições em diversos setores devem trabalhar nessa direção, sejam as instituições de ensino, como as universidades, que devem promover programas de extensão abertos ao público idoso, sejam as instituições de defesa dos direitos das pessoas idosas, a exemplo da Defensoria Pública e do Ministério Público, ou as diversas secretarias municipais e estaduais que, dentro de suas competências, devem promover a capacitação de profissionais e de serviços e devem disseminar informação para que as pessoas idosas se fortaleçam enquanto cidadãs e grupo social. É preciso valorizar os conhecimentos e a experiência das gerações mais velhas. São olhares fundamentais para a preservação da memória das cidades, entre outras importantes funções. Mas também é essencial que se garantam oportunidades de educação e capacitação continuada ao longo da vida para que essas gerações se atualizem em relação, por exemplo, às novas tecnologias da informação.
A atenção à população idosa no estado de São Paulo segue um objetivo próprio? Uma vez que apenas duas cidades possuem o selo de cidade amiga da população idosa (Jaguariúna e São José do Rio Preto).
Existem diversos programas, políticas públicas e serviços de atenção à população idosa vinculados a diversas secretarias do governo do estado de São Paulo. O São Paulo Amigo do Idoso é um programa que conjuga 13 dessas secretarias. Dentro desse programa, existem três níveis do Selo Município Amigo do Idoso: inicial, intermediário e pleno, a depender do cumprimento das exigências para a outorga de cada um deles. Existem vários municípios do estado que já alcançaram algum desses selos. Trata-se de um programa originalmente concebido no âmbito do estado, pelo qual pretende-se fomentar e articular as políticas voltadas à garantia de direitos das pessoas idosas e a promoção do envelhecimento ativo, tal como concebido pela OMS.
A covid-19 afetará de maneira expressiva a nossa interação com as cidades (segundo especialistas). Como vê a população idosa nesse contexto?
Penso que a covid-19 evidenciou a importância das solidariedades comunitárias na vida das grandes cidades, como São Paulo. Revelou mais do que nunca os benefícios de se conhecer e poder contar com os vizinhos, com o comércio de proximidade, com parques e praças locais que permitam algum contato com áreas verdes. Vejo a ativação dessas dinâmicas comunitárias e locais como algo fundamental para as pessoas idosas e para a comunidade em geral, fortalecendo as possibilidades do aging in place, o envelhecer em comunidade. A maioria dos deslocamentos das pessoas idosas se dá a pé. É preciso que se eliminem as barreiras para que possam circular com maior segurança. As pessoas idosas no Brasil exerceram importantes papéis no contexto da pandemia. Muitas vezes, detinham a única renda fixa do domicílio. Ajudaram a cuidar de netos. Foram também testemunhos de resiliência e resistência, compartilhando sua experiência de vida e enfrentando desafios como o idadismo, que também ficou escancarado em algumas situações na pandemia, inclusive em discursos e atitudes de alguns governantes. Mas a velhice é heterogênea. O aumento considerável de denúncias de violência contra as pessoas idosas no período pandêmico nos interpela a considerar que estar em casa, para as pessoas idosas, nem sempre é uma solução segura. É preciso enfrentar a invisibilidade da violência praticada contra as pessoas idosas e, novamente, a comunidade, incluindo serviços de apoio e atenção em domicílio, são essenciais nesse enfrentamento.