Construindo memórias em uma cidade amiga do idoso: O papel do idoso no acervo histórico e geográfico do espaço urbano

Por Tathianni Cristini da Silva e Simone Rezende da Silva

Imagem: Pixabay

Santos é noticiada frequentemente como a cidade com maior número de idosos entre moradores e residentes pela mídia brasileira e isso não é marketing. Realmente, 22,26% da população do munícipio possui mais de 60 anos, segundo dados da Fundação Seade. Essa informação a coloca como primeira no ranking de cidades com maior número de população idosa do país. Possivelmente você se pergunta, – como isso aconteceu?

A resposta é longa, complexa e é alvo de nossos estudos (1). Mas um elemento é essencial para a compreensão do assunto, que ocorre com o investimento em políticas públicas para a população idosa que tem início pelo menos desde o começo da década de 1990 quando foi criado o Núcleo de Apoio ao Idoso e outras atividades como ginástica na praia pela prefeitura municipal. Essas políticas estão atreladas ao contexto nacional e internacional de atenção e cuidado à população idosa.

Desde 1948, quando foi instituída a Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a população idosa se tornou alvo de atenção dado seu crescimento real como nunca visto. No Brasil a partir da década de 1970 a extensão do direito à aposentadoria para parte significativa dos trabalhadores urbanos e posteriormente rurais, bem como a criação do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social são elementos significativos para efetivação da legislação. Em 1982, acontece a Primeira Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, organizada pela Organização Nacional das Nações Unidas (ONU). E no país em 1986 ocorre a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que propõe a elaboração de uma política global de assistência à população idosa. Em 1988, na elaboração da Constituição Federal é assegurado o direito à vida para população idosa. No ano de 1991 a ONU estabelece a “Carta de princípios para as pessoas idosas”. Assim, a pessoa idosa passou a ocupar um lugar central nos debates e conquista de direitos e atenção específicos, conforme observamos com as políticas públicas adotadas no munícipio de Santos. (Oliveira, 2006; Silva et alii, 2020; Zanesco, 2020).

Para este momento, um elemento tem chamado demasiadamente nossa atenção, a importância da memória para que essa população escolha Santos como sua residência e moradia.

A memória pode ser entendida de forma ampla como a capacidade de o indivíduo guardar seletivamente certas informações fazendo uso de funções psíquicas, cerebrais e cognitivas. A memória está presente na vida dos indivíduos a todo instante, consciente e inconscientemente. Seja na reprodução de um gesto corporal aprendido na infância, seja recordando o nome de um conhecido que não vê há tempos. Contudo, ela traz à tona uma dimensão subjetiva da constituição das identidades, pois as memórias podem aflorar de forma diferenciada de acordo com o contexto ou com nossa percepção da vida naquele instante. A memória é uma reinterpretação dos sujeitos, daí a sua complexidade.

É comum ouvirmos expressões como “se não me falha a memória”, “memória de elefante”, “lapso de memória” ou “minhas memórias”. A visão do senso comum sobre a memória é de que esta seja um lugar profundo em nós, no qual guardamos nossas experiências, um armário do qual tiramos e colocamos registros. No entanto, esse retirar ou colocar carrega uma subjetividade mediada pelo sujeito.

De acordo com Rezende-Silva (2014, p. 28) a memória é mais que a vivência armazenada de um indivíduo, ela forma parte de um contexto social. O que guardamos e o que excluímos depende de nossas experiências sociais e coletivas.

Para essa pesquisa interessou a memória de indivíduos enquanto parte de grupos sociais, pois através da reconstrução de fatos registrados na memória se reconstrói uma visão do passado a partir do presente. Contudo, essa reconstrução está impregnada da leitura simbólica com categorias do presente, mais genericamente do que os recordadores são hoje. Por isso a memória pode ser utilizada para pensar o presente. Segundo Pierre Nora, memória é o vivido e a história é o elaborado. Então a memória permite atualizar a história a todo instante.

Nesse sentido, a teoria psicossocial de Maurice Halbwachs, herdeiro e continuador das ideias de Émile Durkheim, tem se destacado, visto que enfatiza o predomínio do social sobre o individual.

Halbwachs não está interessado na memória em si, mas nas suas representações sociais. Ele acredita que o homem se caracteriza essencialmente por seu grau de integração nas relações sociais, afinal qual seria a função da memória sem alguém para escutá-la?   

Isto quer dizer que boa parte do que somos, ou do que acreditamos ser, muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas ideias, não são originais, e sim foram inspiradas nas conversas e vivências com outras pessoas, visto que somos parte de um grupo social.

Para Halbwachs lembrar não é reviver, é refazer, reconstruir, repensar com imagens e ideias de hoje as experiências do passado. E esta reconstrução dependerá de como o recordador insere-se em um meio social com o qual tem uma identidade mediante a qual se constituíra a memória coletiva do grupo.

Ecléa Bosi, dialogando com as ideias de Halbwachs, discorre sobre a memória:

A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (Bosi, 1998, p. 55).

Halbwachs distingue ainda a memória do adulto da memória do velho. O adulto ativo (responsável pela reprodução econômica e social da vida), em geral, não tem tempo para recordar. Já para o velho as lembranças não são pontos de fuga no cotidiano, ele pode entregar-se mais detidamente a elas.

Ele [o velho] não se contenta, em geral, de aguardar passivamente que as lembranças despertem, ele procura precisá-las, ele interroga outros velhos, percorre seus velhos papéis, suas antigas cartas e, sobretudo, ele conta aquilo de que se lembra quando pese não ter fixado por escrito. Em suma, o velho se interessa pelo passado bem mais que o adulto, mas daí não se segue que esteja em condição de evocar mais lembranças desse passado do que quando era adulto (Halbwachs, 1994, p. 104).

A pessoa idosa, desta forma, pode contribuir com suas memórias, com seu tempo livre, na construção do presente. Portanto, esse recordar tem também função social.

De acordo com Paul Thompson inventar um passado imaginário, que deve ter acontecido, é uma forma de preservar suas crenças e sua ideologia, pois aquilo que o depoente acredita é, para ele, mais importante do que aquilo que realmente aconteceu.

Santos está localizada no litoral do estado de São Paulo, destino de muitos paulistas como balneário de férias e acesso ao mar. Brilhou na primeira metade do século como o porto exportador de café e cresceu com hotéis luxuosos e cassinos que animavam a vida de quem descia a rodovia Anchieta para aproveitar a cidade.

Entre os relatos coletados, um dos primeiros ouvidos traz a memória de uma historiadora que quando criança era trazida por sua família para Santos e ficava hospedada nos hotéis da orla em suas férias. Sua fala exalta o glamour e o charme que a cidade possuía nas décadas de 1940 e 1950 e se distancia em diversos momentos da cidade atual na qual ela busca a cidade de sua infância. Essas memórias estabelecem também um laço afetivo que faz com que a pessoa idosa seja capaz de trazer à tona informações que ressignificam a cidade.

Memórias como essas em algumas situações de conflito durante o relato nos remetem à teoria de Michael Pollak (1992) sobre a “memória vivida por tabela”, ou seja, quando uma pessoa absorve certo conhecimento sobre um assunto por meio da memória do outro, mas na verdade ela não viveu o evento descrito.

Essa memória experienciada ou vivida por tabela influencia na escolha da cidade de residência da pessoa, sobretudo quando pessoa idosa, objeto de nosso estudo. Essa memória torna a pessoa idosa amiga da cidade e cabe à cidade tornar-se uma “cidade amiga ao idoso”.     

Uma cidade amiga do idoso estimula o envelhecimento ativo ao otimizar oportunidades para saúde, participação e segurança, para aumentar a qualidade de vida à medida que as pessoas envelhecem.  (OMS, 2008, p.07).

Santos está investindo em políticas públicas para ser reconhecida como uma “cidade amiga do idoso”, selo criado pela OMS para as cidades que adaptam “suas estruturas e serviços para que esses sejam acessíveis e promovam a inclusão de idosos com diferentes necessidades e graus de capacidade” (OMS, 2008, p. 7).

Possivelmente o número de pessoas idosas vivendo em Santos tenderá a crescer, uma vez que todas as projetações quanto à expectativa de vida da população demonstra um envelhecimento. Além disso, essa população possui papel relevante na economia, sendo responsável por 20% da movimentação nacional, originando a economia da longevidade ou economia prateada, conforme demonstram estudos. (Sebrae apud Brescianini, 2019). A cada ano temos novas levas de pessoas idosas e essas já vivenciaram outras condições de vida e possuem, em geral, perspectivas de um envelhecimento ainda mais ativo no contexto social e econômico do município. (Lopes, 2021).

A pessoa idosa de 60 anos hoje quer fazer ginástica na praia, caminhar, ir ao cinema, dançar, estudar, viajar, utilizar as mídias sociais e, sempre que possível, com autonomia, como observamos pelas ruas de Santos. Ver TV e ficar dentro de casa não são mais as únicas opções para aqueles que envelheceram, uma vez que as novas tecnologias as ajudaram a envelhecer com melhores condições de saúde, educação e com autonomia financeira. 

Desta forma, acreditamos que essas memórias inventadas, reinventadas, feitas ou refeitas no município de Santos o transformam e o valorizam. Afinal, essa pessoa idosa que refaz suas memórias tende a resinificar positivamente Santos e, ao mesmo tempo, passam a ser definidoras de políticas públicas não só por sua existência, mas também por suas reivindicações, frutos desse envelhecimento empoderado.

Tathianni Cristini da Silva é doutora em história social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora na Universidade Metropolitana de Santos.

Simone Rezende da Silva é doutora em geografia física também pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora na Universidade Metropolitana de Santos.

Nota:

1 -Grupo de pesquisa: Envelhecimento saudável, políticas públicas e sociedade – Unimes/CNPq. Zanesco, Angelina; Martimbianco, Ana Luiza Cabrera; Santos, Elaine Marcilio dos; Nunes, Luiz Antonio Rizzato; Fragoso, Yára.

Referências

Brescianini, C. P.. “Idosos movimentam 20% do consumo nacional, informa Sebrae”. Agência Senado, 31/10/2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/10/31/idosos-movimentam-20-do-consumo-nacional-informa-sebrae Acesso em: 04 jun. 2021.
Bosi, E.. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 484p.
Halbwachs, M.. Les cadres sociaus de la mémoire. Paris: Albin Michel, 1994.
Halbwachs, M.. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. 189p.
Nora, P.. Entre memória e história: a problemática dos lugares. São Paulo: Educ, 1993.
Lopes, P. de O., et alii. “Envelhecimento saudável, meio ambiente e políticas públicas nas cidades de Santos e Lyon”. In: Pacheco, J. T. R. et al. (orgs). Meio ambiente: enfoque socioambiental e interdisciplinar 2. Ponta Grossa – PR: Atena, 2021, p. 186-189.
Oliveira, J. A.. “Terceira idade e cidade: o envelhecimento populacional no espaço intra-urbano de Santos”. 2006. Dissertação (mestrado em sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2006.
OMS. Organização Mundial da Saúde. Guia global: cidade amiga do idoso. 2008. Disponível em: https://www.who.int/ageing/GuiaAFCPortuguese.pdf Acesso em: 04 jun. 2021.
Pollak, M.. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
Rezende-Silva, S..Quilombos no Brasil: a memória como forma de reinvenção da identidade e territorialidade negra”. In: Lomba, R. M.. Conflito, territorialidade e desenvolvimento: algumas reflexões sobre o campo amapaense. Dourados: Ed. da UFGD. 2014. Pp 13-40.
Silva, T. C. da; Zanesco, A.; Colovati, M. E. S.; Rezende-Silva, S.. “O envelhecimento na baixada santista: inferências preliminares”. In: Toledo, M. M. (org.). Ciências da saúde [recurso eletrônico] : teoria e intervenção 5. Ponta Grossa, PR: Atena, 2020, p. 166-177.
Thompson, P. A voz do passado, história oral. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 1989. 385p.
Zanesco, A.; Martimbianco, A. L. C.; Santos, E. M. dos; Nunes, L. A. R.; Fragoso, Y. D. Longevidade, sociedade e envelhecimento saudável. Santos, 2020. [Ebook]. Disponível em: https://portal.unimes.br/ebooks.php Acesso em: 04 jun. 2021.