Repensando o papel do Estado em um mundo pós-pandemia: Lições da Teoria Monetária Moderna

Por David Deccache

As políticas econômicas emergenciais evitaram um colapso sistêmico. Contudo, as consequências da pandemia são de caráter estrutural e permanente. Isso porque os danos econômicos atuais são significativos em termos de desemprego; falência de pequenas empresas; precarização no mundo do trabalho e, por consequência, ampliação das desigualdades interseccionais. Este contexto impõe a discussão de um novo papel para o Estado, que dê centralidade à reconstrução e ampliação da nossa infraestrutura física e social deteriorada por anos de políticas de austeridade fiscal; garanta o pleno emprego dos fatores de produção; combata as múltiplas desigualdades com políticas de transferência direta de renda e invista pesado em capacitação tecnológica para a superação dos desafios ambientais crescentes. Para alcançar tal objetivo, é necessária a superação das teorias econômicas convencionais que colocam o equilíbrio fiscal acima da plena utilização da capacidade produtiva da economia. Neste sentido, o presente artigo defende que a Teoria Monetária Moderna (MMT) é a abordagem mais adequada para a compreensão e viabilização deste novo papel que o Estado precisará cumprir no mundo pós-pandemia.

As consequências estruturais da crise e os desafios do nosso tempo

A pandemia trouxe consigo uma crise econômica global com consequências humanitárias gravíssimas e revelou de forma nítida as fragilidades do modo de organização socioeconômica atual. Provavelmente, trata-se da maior crise econômica e social desde 1929 e conjuga algo inédito: o colapso do sistema de saúde; impactos no setor produtivo da economia e queda abrupta da demanda agregada, justamente em um período da história em que os mecanismos de proteção social estão sendo fragilizados.

No caso do Brasil, principalmente por conta do tipo de política econômica disfuncional imposta nos últimos anos ao conjunto da sociedade, os impactos da emergência sanitária estão sendo ainda mais profundos. A população brasileira se defrontou com a pandemia exatamente em um momento de extrema vulnerabilidade social causada por anos de políticas de austeridade fiscal que culminou em elevação estrutural das taxas de desemprego e informalidade; contração dos gastos destinados à manutenção da infraestrutura física e social e redução de mecanismos de proteção trabalhista e previdenciária. Somando-se a isso o negacionismo científico e a inoperância do governo federal frente à conjuntura, as previsões são as piores possíveis.

Essa infeliz combinação de fatores tende a ampliar, estruturalmente, as nossas já profundas desigualdades ao afetar de forma mais intensa segmentos já vulneráveis da população: as mulheres, a população negra e os integrantes de grupos étnicos minoritários são os que mais sofrem ao passo que o número de bilionários cresceu em todo o mundo. Relatório da Oxfam estimou que as mil pessoas mais ricas do mundo recuperaram todas as perdas que tiveram durante a pandemia de covid-19 em apenas nove meses (entre fevereiro e novembro de 2020), enquanto as parcelas mais pobres do planeta vão levar pelo menos 14 anos para conseguir repor as perdas devido ao impacto econômico da pandemia (Oxfam, 2021).

Apesar da forte resistência do governo federal, o Congresso Nacional conseguiu aprovar em 2020 medidas fiscais significativas, com destaque para o auxílio emergencial, o que evitou um colapso sistêmico ainda maior. Temporariamente, adotou-se um regime fiscal extraordinário que resultou em gastos diretos com combate ao Covid-19 de R$ 524 bilhões, sendo 55,9% destinados ao pagamento do auxílio emergencial. Contudo, no ano de 2021, mesmo com a pandemia registrando recordes de contaminação e mortes e na contramão do mundo, as medidas extraordinárias foram significativamente reduzidas ou eliminadas e as regras fiscais contracionistas retomadas. 

Apesar das políticas econômicas emergenciais terem mitigado o total colapso econômico, os danos sociais da pandemia serão permanentes, especialmente em termos de precarização estrutural do mercado de trabalho e, como consequência, ampliação das desigualdades interseccionais.  Basicamente, trata-se da tendência ao desencadeamento de um forte efeito histerese, que na literatura econômica significa a propagação dos choques econômicos no longo prazo, especialmente o desemprego (Cerra; Lama;  Loayza, 2021).

Este contexto impõe a discussão de um novo papel do Estado, que dê centralidade à reconstrução e ampliação da nossa infraestrutura física e social deteriorada por anos de políticas de austeridade fiscal; que garanta o pleno emprego dos fatores de produção; que combata as desigualdades interseccionais com políticas diretas de transferência de renda e invista pesado em capacitação tecnológica para a superação dos desafios ambientais crescentes, buscando o caminho da necessária transição energética.

Para alcançar tal objetivo, é necessária a superação das teorias econômicas convencionais que colocam o equilíbrio fiscal acima da plena utilização da capacidade produtiva da economia. A adoção de abordagens teóricas e metodológicas alternativas que conjuguem maior poder explicativo da realidade e capacidade instrumental para a superação dos dogmas que causaram a crise atual se torna urgente. Épocas como a que vivemos, no geral, são uma oportunidade única para a emergência de novas ideias. Na crise, toda legitimação perde sua “naturalidade” e pode (deve) ser desconstruída.

Uma nova abordagem macroeconômica para a superação da crise: as lições da Teoria Monetária Moderna

A teoria macroeconômica convencional sofreu um duplo baque nos últimos anos. O primeiro foi com a crise de 2008 com a adoção nos países desenvolvidos de políticas não convencionais de forte expansão monetária sem que houvesse nenhum dos efeitos inflacionários esperados pelas abordagens tradicionais baseadas em versões da Teoria Quantitativa da Moeda, onde expansões monetárias tendem a gerar, necessariamente, inflação. Agora foi a vez dos questionamentos relativos às políticas fiscais. Foi revelado durante a crise desencadeada pela pandemia que a capacidade fiscal dos entes monetariamente soberanos é muito maior do que se imaginava. Inclusive, Summers e Blanchard, dois dos mais renomados economistas da atualidade, defenderam em seminário organizado pelo Peterson Institute que estamos diante de uma mudança de paradigma. No mesmo evento, Larry Summers apresentou artigo em coautoria com Jason Furman propondo que a relação dívida/PIB, parâmetro básico até então para a orientação da elaboração de políticas fiscais, fosse desconsiderado por ser um indicador enganoso e teoricamente frágil (Furman; Summers, 2020). 

Neste cenário de profundo questionamento das teorias convencionais, o interesse por uma abordagem heterodoxa até então pouco conhecida fora da academia, a Teoria Monetária Moderna (MMT), cresceu em todo o mundo e os principais formuladores de políticas econômicas recorreram a esse arcabouço, implícita ou explicitamente, para a análise da viabilidade e implementação de medidas fiscais e monetárias extraordinárias. A grande imprensa também passou a recorrer à MMT para explicar um aparente paradoxo: como que o governo não tinha dinheiro antes da pandemia para a resolução de uma série de carências sociais e estruturais e, agora, com uma brutal queda de arrecadação é capaz de realizar gastos fiscais extraordinários como nunca antes na história? Um exemplo é o editorial do jornal The Guardian, de 09 de abril de 2020[1].

Basicamente, a MMT propõe que os governos que emitem a sua própria moeda não enfrentam as mesmas restrições que as famílias, empresas e os governos subnacionais que usam a moeda nacional. Isso tem implicações profundas: um governo monetariamente soberano nunca pode ir à falência ou ser incapaz de pagar suas obrigações, desde que elas estejam denominadas na moeda que ele emite. Isso porque governos monetariamente soberanos criam moeda toda vez que gastam e apenas posteriormente essa moeda é destruída por tributos ou equalizada pela venda de títulos públicos. Portanto, recuperando a abordagem das finanças funcionais de Abba Lerner (1943), os limites para os gastos do emissor de moeda estão dados pela disponibilidade de bens e serviços à venda em moeda soberana. Não é necessário ampliar tributos ou realizar empréstimos junto ao setor privado para que esses gastos sejam realizados. Trata-se, sempre, de decisão política. Tributos e emissão de títulos devem ser ampliados se for desejável que o setor privado tenha menos moeda para gastar. Isso pode ocorrer, por exemplo, em momentos no qual a economia está muito aquecida. (Wray, 2015 e Mitchell; Wray; Watts, 2019).

Entretanto, se um país não tem os recursos reais de que precisa, como por exemplo petróleo ou uma vacina, pode não ser capaz de usar sua própria moeda para pagar por essas necessidades, pois esses recursos podem estar disponíveis para venda apenas em moedas que ele não emite e devem ser importados. Dessa forma, países como o Brasil precisam de moeda estrangeira, principalmente o dólar, para a satisfação de um enorme número de necessidades. Portanto, as restrições de gastos em moedas estrangeiras também são elementos reais. Definitivamente, existem limites a serem considerados, mas o governo ficar sem sua própria moeda não é um deles. Se qualquer obrigação financeira é devida em reais, o governo brasileiro sempre tem os meios financeiros para pagá-la. É necessária apenas a autorização do Congresso para que o Tesouro e o Banco Central façam as operações necessárias (Dalto et al, 2020).

Estas simples lições são fundamentais para repensarmos o papel do Estado na otimização e mobilização dos recursos produtivos disponíveis em moeda doméstica visando o atendimento das necessidades sociais, econômicas e ambientais crescentes. Manter uma enorme parcela da nossa capacidade produtiva ociosa por conta de dogmas fiscais é um desperdício irresponsável e incompatível com os desafios do nosso tempo.

David Deccache é doutorando em Economia, professor voluntário no departamento de Economia da UnB e assessor técnico na Câmara dos Deputados.

Referências

Cerra, Valerie ; Lama, Ruy; Loayza, Norman. Links Between Growth, Inequality, and Poverty: A Survey. IMF Working Papers 2021/068, International Monetary Fund., 2021.

Dalto, F. A. S.; Gerioni, E. M.; Ozzimolo, J. A.; Deccache, D.; Conceição, D. N. Teoria monetária moderna. Fortaleza: Nova Civilização, 2020. E-book.

Furman, Jason; Summers, Lawrence. A Reconsideration of Fiscal Policy in the Era of Low Interest Rates. Discussion Draft, 30 novembro 2020.

Lerner, A. P. Functional Finance and the Federal Debt. Social Research, v. 10, n. 1, pp. 38-51, fevereiro 1943.

Mitchell, William; Wray, L Randall; Watts, Martin. Macroeconomics. London: Red Globe Press an imprint of Springer Nature Limited, 2019.

Wray, L. Randall. Modern Money Theory: A Primer on Macroeconomics for Sovereign Monetary Systems. Springer, v. 3, f. 153, 2015. 306 p.

[1]https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/apr/09/the-guardian-view-on-the-covid-19-fight-it-can-be-paid-for