Por Alice Wassall
A covid-19 atingiu em cheio o turismo e não só porque as viagens foram interrompidas no mundo todo. O setor vive, neste momento, um processo de ruptura do turismo tradicional. A mudança que era necessária foi antecipada pela pandemia. Assuntos que eram tratados como periféricos agora são considerados fundamentais para a retomada do mercado de turismo. E nesses debates, cresceram a importância da experiência do viajante, do turismo consciente e da sustentabilidade. Se esses aspectos não forem levados em consideração, destinos deixarão de existir em consequência de mudanças climáticas, pelo excesso de carga ou por descaracterização.
Por que é preciso mudar
Na última década, o turismo registrou crescimento contínuo. Segundo dados do World Travel & Tourism Council (WTTC), em 2019 o setor foi responsável por 10,3% do PIB global e 330 milhões de postos de trabalhos, ou seja, 1 em cada 10 empregos no mundo. Mesmo assim há riscos. Tanto a Organização Mundial do Turismo (OMT) quanto a WTTC estimam que as viagens internacionais podem sofrer em todo mundo uma queda de 60% a 80%, colocando em risco até 120 milhões de empregos, com um prejuízo de aproximadamente US$ 1 bilhão.
O crescimento do turismo escancarou desafios importantes em relação à capacidade de carga dos destinos, isso porque a ampliação de empresas aéreas de baixo custo e de serviços compartilhados como o Airbnb deram origem aos conceitos de overturismo e turismofobia. O overturismo ocorre quando o número de visitantes sobrecarrega os serviços e se torna um inconveniente para os moradores locais. É causado pelo turismo em massa, que não se limita à aglomeração; impacta a qualidade da experiência da viagem. Já a turismofobia é a rejeição ao turista por parte dos moradores locais.
Os cruzeiros, que em suas paradas de curta duração desembarcam de uma só vez de duas a três mil pessoas numa localidade, são considerados os grandes culpados pelo overturismo e pela turismofobia. Mas a solução não é simplesmente suspendê-los. É importante promover o planejamento sustentável e inteligente, estimulando parcerias entre empresas de cruzeiros e os órgãos locais de turismo.
No Brasil, Fernando de Noronha (PE) e Jericoacoara (CE), ambos muito procurados por turistas, são exemplos positivos. Nos dois, as autoridades locais fazem controle diário da capacidade de carga, a população é engajada e participa dos processos de decisão. Além disso, cobram taxas locais que são 100% revertidas para a manutenção de espaços públicos e do setor de turismo. Fora do Brasil, Londres e Amsterdã criaram aplicativos para tentar mitigar o overturismo. Dentre as medidas adotadas, há um recurso que indica quais pontos turísticos estão mais vazios e apropriados para visitação.
Lucas Bobes, responsável de sustentabilidade global da Amadeus, uma das maiores empresas de inovação tecnológica no turismo, afirmou recentemente que estamos em um processo de incorporação de um quarto fator nas operações de turismo: “Além dos tradicionais parâmetros de decisões baseados em horários, disponibilidade e tarifas, temos que incorporar a sustentabilidade”. Ana Duék, jornalista e autora do blog Viajar Verde, salienta que a pandemia da covid-19 tem forçado a hotelaria e as operadoras turísticas a adotar medidas mais conscientes e alinhadas com a sustentabilidade. Espera-se que não seja temporário.
É provável que os viajantes ainda não considerem conscientemente a sustentabilidade como fator na decisão de planejar uma viagem. Mas tudo indica que isto é questão de tempo, seja por necessidade ou porque serão levados a fazê-lo. Aline Guedes e Thalyta Costa, duas viajantes frequentes, concordam que no futuro o turismo tende a ser com viagens mais conscientes, planejadas, empáticas com moradores e sustentáveis. Se essa tendência se confirmar, o mercado tende a prosperar porque a prática do turismo consciente e responsável repercute positivamente. Entretanto, é importante lembrar que a responsabilidade não é apenas do viajante, mas de todos os que atuam na cadeia, inclusive de profissionais da iniciativa privada e de gestores públicos.
Pacto para sustentabilidade
Em novembro de 2019 a União Europeia divulgou o The European Green Deal ou o Pacto Verde Europeu, parte integrante da estratégia para implementar a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O Pacto é um marco na busca por soluções para o desafio das mudanças climáticas e estabelece um roteiro para utilização eficiente dos recursos naturais, restaurar a biodiversidade e reduzir a poluição. O objetivo é contribuir para que a Europa seja, até 2050, o primeiro continente com impacto neutro no clima. Marta Poggi, palestrante, consultora e fundadora do blog Agente no Turismo, considera fundamental que todos os atores do setor entendam como o Pacto Verde pode contribuir para o seu desenvolvimento.
Como consequência do Pacto, em janeiro deste ano, a OMT convidou todos os ministros de turismo da Europa e representantes do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia de Turismo para um colóquio dentro da Feira Internacional de Turismo de Madri (Fitur), onde se discutiu o papel do setor de turismo para alcançar os ODS da Agenda 2030 e se adequar ao Pacto Verde. Na ocasião, Zurab Pololikashvili, secretário geral da OMT, afirmou que o setor de turismo tem a obrigação de utilizar seu extraordinário potencial para liderar a resposta à emergência climática e zelar por um crescimento responsável.
O que diz a OMT
A OMT lançou as “Diretrizes globais para a retomada do turismo”. Diferente do MTur, essas diretrizes contemplam o sentido mais amplo do turismo responsável, pois tem a sustentabilidade como uma prioridade. Isto porque, a OMT defende que a sustentabilidade é um fator determinante para o setor de turismo emergir da crise instaurada pela pandemia da covid-19. As diretrizes foram definidas em conjunto com o Comitê Global de Crise do Turismo e visam amparar governos e instituições privadas a se recuperar dessa crise sem precedentes. Foram divididas em oito eixos e baseadas em princípios comuns, dos quais destacam-se dois: as viagens devem ser seguras e entrosadas para residentes, turistas e profissionais em total respeito às regulamentações de saúde; e não deve haver discriminação de viajantes. As prioridades são: promover liquidez e proteção de empregos; estimular a colaboração público-privado para uma reabertura segura; fazer a abertura responsável de fronteiras; coordenar protocolos e processos; agregar valor nos empregos por meio de novas tecnologias; e estabelecer inovação e sustentabilidade.
Embora tenham estabelecido 88 diretrizes e grande parte esteja relacionada às questões sanitárias, várias delas indicam como o mercado de turismo pode se adaptar para a recuperação pós pandemia, como por exemplo: estimular o uso de tecnologia durante a viagem para promover segurança, entrosamento e pouco contato físico por meio de mecanismo touchless; entregar kit higiene como brinde; criar cargos de gerente de higiene e guardião de clientes; incluir serviços de delivery ou take away nos hotéis para evitar concentração nos restaurantes; estimular agências de viagem a desenvolverem nichos e produtos sustentáveis focados em natureza, áreas rurais e cultura; introduzir storytelling para criar novas experiências turísticas e promover novos destinos e experiências agregando valor e inspiração local por meio de parcerias com a indústria criativa; promover eventos online com cobrança de taxa de inscrição, mas sem deixar de estimular o ingresso social gratuito; e implementar novas tecnologias como realidade aumentada ou virtual pelos parques temáticos para aprimorar a experiência dos visitantes antes, durante e depois da viagem.
Retomada no Brasil
Em meio à pandemia da covid-19, o Ministério do Turismo (MTur) lançou em junho o selo “turismo responsável”, primeira etapa do plano de retomada do turismo brasileiro que tem por objetivo consolidar o país como um destino seguro e responsável. Todos os setores do turismo são contemplados nesse plano: meios de hospedagem, agências de viagem, transportadoras turísticas, organizadores de eventos, parques temáticos, acampamentos turísticos, restaurantes, bares e similares, locadoras de veículos e guias de turismo. Todos aqueles que possuem cadastro de prestadores de serviços turísticos (Cadastur), uma exigência que fortalece a regularização da atividade, estão habilitados a solicitar o selo. Muitas das ações previstas para turistas e prestadores de serviços reforçam as recomendações usuais para o período de pandemia e, para os que estão atuando durante esse período, é recomendado capacitar todos os colaboradores quanto às práticas de prevenção da covid-19 e usar equipamentos de proteção individual.
Os proprietários de agência de viagem Luanny Serra, em Corumbá (MS), e José Nunes Neto, em Assis (SP), consideram que após a pandemia os viajantes serão mais exigentes em relação aos protocolos sanitários das companhias aéreas, hotéis e empresas de receptivo. Adonai Arruda Filho, diretor da operadora BWT e da Serra Verde Express, concorda e acrescenta que, assim como o mundo se adaptou com medidas de segurança em aeroportos depois do 11 de setembro de 2001, a pandemia da covid-19 também deixará suas marcas no mercado. Ele aponta que muitas medidas sanitárias que estão sendo implementadas para a retomada das viagens serão mantidas mesmo após a liberação da vacina. No entanto, Hugo Casoni, diretor de turismo de Piedade (SP), salienta que será necessário apoio do poder público na fiscalização de estabelecimentos, fragilidade essa já exposta pelo MTur.
Pesquisa realizada pelo Panrotas e o TRVL LAB em junho de 2020 com 1.135 viajantes de todas as regiões do Brasil e 300 empresas do setor de turismo, predominantemente agências de viagens, aponta que a expectativa é pessimista em relação à normalização do mercado, estimada para o segundo semestre de 2021. E 35% dos entrevistados também indicaram que o turismo de lazer será prioritariamente regional e rodoviário nos próximos meses. Vale destacar que, em países como França, Espanha, Itália, Chile e Estados Unidos, esse comportamento tem sido comum, com viajantes dando prioridade para viagens nacionais e regionais.
Duék considera que a procura por espaços abertos, destinos regionais e inóspitos é temporária e não uma tendência de mercado. Para ela, só será possível entender o novo desenho do mercado após a liberação da vacina para a covid-19, quando será possível identificar o comportamento dos viajantes e empresas do setor.