Por Mariana Hafiz
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Em maio de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou o lançamento oficial da Covid-19 Technology Access Pool (C-TAP), acatando uma proposta do presidente da Costa Rica, Carlos Alvarado Quesada, para garantir acesso igualitário a recursos contra a doença causada pelo novo coronavírus. “Este é um momento em que pessoas devem ser prioridade”, disse na ocasião o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, completando: “Ferramentas que previnem, detectam e curam covid-19 são bens públicos que devem ser acessíveis a todos”.
C-TAP é uma iniciativa que acompanha uma série de esforços da OMS e da comunidade científica para que conhecimentos, tecnologias e patentes necessários para conter a pandemia sejam compartilhados abertamente. Nesse modelo de ciência aberta, aqueles que trabalham em tratamentos e vacinas podem colaborar e, assim, acelerar os avanços científicos. Como resultado, quando um medicamento ou vacina forem descobertos, qualquer um poderá produzi-los.
O modelo não é novo. A Pool de Patentes de Medicamentos (MPP, na sigla em inglês), organização internacional de saúde pública apoiada pelas Nações Unidas, atua em acordo semelhante para facilitar o acesso por países pobres a tratamentos para aids, hepatite C e tuberculose. Não à toa, países que endossam o C-TAP concordam em ceder suas patentes à MPP, que então distribui as licenças para produtores de medicamentos genéricos.
“O C-TAP nos oferece uma forma excelente de seguir o modelo correto – epidemiológica e moralmente”, afirma o pesquisador da Shuttleworth Foundation, Achal Prabhala. Ele, que é coordenador do projeto AccessIBS e esteve presente no lançamento da C-TAP, avalia que a iniciativa, muito parecida com o sistema global de vigilância e resposta à gripe da OMS (GISRS), é a única solução para todos porque enfatiza a cooperação entre nações. “Países pequenos não podem competir em um ambiente que envolve tanto dinheiro. Mas todas as pessoas possuem o mesmo direito de viver”, avalia.
A pressa da OMS e líderes globais em criarem iniciativas como essa se deve à atual situação de emergência sanitária. Em quase um ano e meio de pandemia, são mais de 156 milhões de casos e 3 milhões de mortes no mundo, de acordo com dados da Johns Hopkins University. Mesmo com o avanço da vacinação, poucos são os países livres de casos e mortes por covid-19.
Na lista mais recente da OMS há 14 vacinas já desenvolvidas e aprovadas para uso e 60 candidatas em desenvolvimento, em fases de 1 a 3 de ensaio clínico em todo o mundo. Já sobre os medicamentos, o último estudo da iniciativa colaborativa Solidarity, da OMS, analisou os possíveis impactos de quatro medicamentos: remdesivir, lopinavir, hidroxicloroquina e interferon beta-1a. Os resultados, publicados em fevereiro deste ano no The New England Journal of Medicine, mostraram que eles tiveram nenhum ou pouco impacto em pacientes com covid-19, sendo que nenhum dos remédios reduziu mortalidade, hospitalização ou iniciação de ventilação.
A preocupação desde o começo da pandemia era de que tratamentos eficazes, quando forem encontrados, esbarrassem em questões de proteção de propriedade intelectual e de patentes, prejudicando o acesso a eles tanto pela dificuldade de produção em escala (as vacinas, por exemplo, precisam proteger bilhões de pessoas) tanto pelo custo. “Quando um evento como a covid-19 desencadeia uma corrida pelo desenvolvimento de uma vacina, é muito provável que alguns componentes sejam patenteados”, explica Ana Rutschman, professora na Faculdade de Direito da Saint Louis University, nos Estados Unidos. “Portanto, o detentor da patente tem a habilidade de impedir que outros produzam a mesma vacina e pode cobrar preços mais altos por ela”.
Direitos de propriedade intelectual (DPIs) foram criados para incentivar investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Além disso, são formas de recompensar criadores de um novo conhecimento que, ao torná-lo público para o desenvolvimento de novas tecnologias ou produtos, recebem o direito de monopólio, ou seja, ficam exclusivamente responsáveis por comercializá-los.
Rutschman, que foi consultora da OMS no desenvolvimento de vacinas para zika e ebola, ressalta que o problema em incentivar o desenvolvimento de vacinas por um sistema de patentes é que ele pode prejudicar o acesso igualitário. Iniciativas de colaboração como as da OMS são um bom ponto de partida para mudar o cenário, mas não bastam. “Ações para compartilhar tecnologia e conhecimento são muito importantes, mas se não fizermos nada para definir preços e demais aspectos do acesso igualitário assim que os produtos forem desenvolvidos, elas não serão muito efetivas”, avalia a professora.
No início deste mês os Estados Unidos anunciaram seu apoio à suspensão de patentes para vacina da covid-19, e uma reunião com a Organização Mundial do Comércio deve acontecer em breve, incluindo países da União Europeia. Os presidentes Emmanuel Macron, da França, e Vladimir Putin, da Rússia, também manifestaram apoio.
Uma das formas de quebrar patentes é pelo licenciamento compulsório (LC), ou seja, permitir que uma patente seja licenciada independentemente do consentimento de seu detentor. Isso já foi feito no Brasil em 2007, quando o Ministério da Saúde conseguiu quebrar a patente da farmacêutica norte-americana Merck para produzir o antiviral Efivarenz, utilizado no tratamento do HIV. Em maio de 2020, a mesma Merck anunciou dois acordos para desenvolvimento de vacinas contra o sars-cov-2 e um novo antiviral oral, afirmando que o sucesso da resposta à pandemia “requer colaboração global entre países”.
Em movimento semelhante, Israel emitiu licenciamento compulsório de lopinavir/ritonavir (vendido comercialmente com o nome Kaletra) da farmacêutica norte-americana AbbVie, em março de 2020. A medida permitiu que o país importasse versões genéricas do medicamento – originalmente utilizado para HIV – para tratar pacientes com covid, mas logo depois a AbbVie abriu mão de suas patentes em países onde elas ainda estavam em vigor.
Todos esses acordos são regulamentados pelo agreement on trade-related aspects of intellectual property rights (TRIPS), da Organização Mundial do Comércio (OMS), que prevê o LC em situações específicas, como no caso de interesse ou emergência nacional. “O licenciamento compulsório já está previsto nas legislações dos países que aderirem ao acordo”, explica a pesquisadora do Instituto de Pesquisa em Economia Aplicada, Graziela Zucoloto. “A proposta que está sendo feita é para acelerar esse processo, para que a negociação com empresas não atrase o licenciamento”.
Com a exceção de Israel, o recurso não foi utilizado em outros países. A movimentação de empresas tem ocorrido de forma voluntária, como no caso da Medtronic, fabricante norte-americana de equipamentos médicos e que, em março, tornou público o design e as especializações técnicas de seus ventiladores. Algo semelhante foi feito também por pesquisadores da Universidade de Barcelona, que divulgaram as especificações técnicas para produção livre de um ventilador não invasivo e de baixo custo desenvolvido por eles.
No caso da empresa farmacêutica Gilead Science, disputas em torno dos DPIs surgiram em fevereiro de 2020 quando solicitou à Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos a designação do remdesivir – produzida pela Gilead para ebola em 2017 e agora testado para covid-19 – como uma droga órfã. A designação, que só pode acontecer em casos de doenças afetando 200 mil pessoas ou menos, daria à empresa o direito exclusivo de comercialização do produto por sete anos. Amplamente criticada por lucrar com a pandemia, retirou a solicitação em março.
Em maio do mesmo ano, a Gilead emitiu licença voluntária e abriu mão de suas patentes do remdesivir vigentes até 2037 para 127 países de baixa renda, permitindo que cinco farmacêuticas na Índia e Paquistão produzam um medicamento genérico. “O licenciamento é voluntário porque não resulta de um instrumento legal do governo, mas é resultado de forte pressão da sociedade civil, organizações internacionais e de governos”, comenta Pedro Miranda, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Três meses antes, por exemplo, a chinesa BrightGene anunciou a sintetização do princípio ativo do remdesivir e aprovação para produzi-lo.
As chances desses movimentos colaborativos em P&D e de flexibilização nos acordos internacionais sobre propriedade intelectual terem êxito na pandemia, e durarem depois dela, são incertas e dependem de inúmeros fatores. Olhando para experiências prévias, Ana Rutschman analisa que “tanto no desenvolvimento para vacinas contra ebola e zika quanto para covid-19 “a comunidade estava e está em modo reativo, o que não é o ideal”. Para ela, isso indica que “nós enfrentaremos novamente problemas severos com incentivos a P&D para vacinas depois que a pandemia da covid-19 retroceder”.
Mundialmente, concorda-se que o acesso igualitário a recursos de combate à pandemia atual deve ser garantido, mas os conceitos de igualdade e acesso às drogas e vacinas ainda são incertos. Uma das saídas é definir com clareza entre os produtores o que esses termos significam dentro de seus contratos porque, olhando para o futuro, “nós precisaremos usar a covid-19 como oportunidade para desenvolver uma linguagem contratual antes da próxima epidemia”, conclui Rutschman.
“Nós não sabemos como o coronavírus seguirá nos próximos meses”, ressalta Achal Prabhala, “mas sabemos que demorou oito anos para que remédios para Aids fossem de Nova York (Estados Unidos) até Johannesburgo (África do Sul) e outras partes pobres do mundo”. O mesmo acontece com o sofosbuvir, tratamento altamente efetivo para hepatite-C, mas muito caro para o SUS comprar. “Mesmo depois de sete anos de sua existência, apenas 15% dos brasileiros recebem esse medicamento – e isso é imperdoável”. O sofosbuvir é produzido pela mesma produtora do remdesivir, a Gilead.
Pressionar as empresas pode ser uma opção, conforme avaliam os pesquisadores do Ipea Graziela Zucoloto e Pedro Miranda, considerando que há uma distinção entre compartilhar dados e informações tecnológicas e, por outro lado, direitos de propriedade. “Talvez nem consigamos manter essa colaboração durante a covid-19, ou talvez dê certo para uma tecnologia ou outra”, dizem. “Tem que ter pressão. Muita pressão. E se não acontecer agora, não deve acontecer nunca mais”.
Mariana Hafiz é jornalista formada pela Unesp, com especialização em jornalismo científico e cursando mestrado em divulgação científica no Labjor/Unicamp.