Marina Silva: ‘É preciso sair de rótulos para conteúdos, sair da quadratura da eleição, de projeto de poder para projeto de país’

Por Paulo Markun, 27 de maio de 2020

Paulo Markun: Olá, tudo bem? Começa agora mais um Conversas na Crise – Depois do Futuro, uma iniciativa do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp e da TV Cultura. Hoje vamos conversar com a ex Ministra Marina Silva. Passo a palavra para o professor Carlo Vogt, presidente do Conselho Científico e Cultural do IDEA para que ele faça a abertura do nosso bate papo aqui. Por favor, Carlos.

Carlos Vogt: Bem, Marina, bem vinda. Estávamos para recebê-la na Unicamp quando então as atividades foram suspensas em virtude da pandemia, mas agora conseguimos, enfim, dessa forma virtual, retomar a possibilidade desse encontro.

Marina Silva, natural de uma pequena comunidade do Seringal Bagaço, município de Rio Branco, no Acre. é historiadora, professora, psicopedagoga e ambientalista. Ocupou, como sabemos, diversos cargos públicos ao longo de sua trajetória política, como Deputada Estadual, Senadora, Ministra do Meio Ambiente, e disputou a Presidência da República nas eleições de 2010, 2014 e 2018. Recebeu uma série de prêmio e homenagens por sua atuação em defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, como o Prêmio Goldman, considerado um Nobel do meio ambiente, em 1996, e o Champions of The Earth, principal prêmio da ONU na área ambiente, em 2007. Ainda nesse ano, foi incluída na lista do jornal britânico The Guardian como uma das pessoas que podem ajudar a salvar o planeta. É filiada atualmente a Rede Sustentabilidade - partido que ajudou a fundar em 2013. E trabalha como professora associada na Fundação Dom Cabral na área de sustentabilidade.

Bem-vinda, Marina.

Marina Silva: obrigada, professor Carlos. Muito Obrigada.

Paulo Markun: Marina, eu queria começar pelo seguinte…não é bem o que eu tinha pensado, mas enquanto o Carlos apresentou a sua trajetória, eu fiquei imaginando se você – eu vou chamar de você, pelo perdão da…

Marina Silva: Por favor. Fica à vontade, Markun.

Paulo Markun: está bem. (Pensando) se você na sua história tão atribulada, principalmente e infância e adolescência, tinha vivido algo parecido com isso que a gente está vivendo, no plano pessoal; quer dizer, eu sei que obviamente a pandemia não, mas algo que marcasse profundamente. Pelo menos eu, aos 67 anos, nada vivi semelhante ao que nós estamos vivendo.

Marina Silva: Bem, mais uma vez é uma satisfação poder estar conversando com vocês nesse enquadre tão relevante e significativo, sobretudo nesse momento dessa crise tão avassaladora que está sob o mundo e particularmente sob o Brasil . E é claro que, como você disse, esse seja talvez um dos problemas mais graves que tenhamos que enfrentar nesse século. Então, qualquer referência que se faça será sempre do ponto de vista de algum nível de relação, mas não necessariamente a altura e profundidade desta crise que sequer conseguimos agora ter uma dimensão. Eu tenho lembranças, Markun, muito difíceis da minha adolescência e da minha infância e uma delas… até compartilhei num artigo o fato de quando eu tinha 12 para 13 anos, o traçado da BR 364 passou dentro do Seringal em que eu morava com a minha família, no meio da Floresta Amazônica. Já havia uma estrada precária, mas ainda era muito zigue-zague, muito difícil, passava, assim, um caminho ou dois por mês; depois foi feito um traçado definitivo, com a largura de uma forma bem mais dimensionada, com retas. E quando isso foi feito, movimentou muitas máquinas, muita terra, foi feita uma extração muito grande de cobertura florestal e você sabe que quando os tratores passam, sobretudo na Amazônia, vão deixando poças de água muito grande em função dos pneus dos tratores. E aquilo trouxe um surto de malária muito grande; não é que trouxe, a malária já existia, mas as poças de água parada. A gente tinha os igarapés e os rios, era água corrente, mas mesmo assim tinha malária. Mas, com aquela quantidade enorme de poças que ficavam próximas, a margem da estrada sofreu avassaladoramente com o surto de malária. Como se não bastasse, os cassacos, como a gente chamava, trouxeram também junto com isso o sarampo. Então, a minha família viveu uma tragédia; eu perdi duas irmãs – 15 dias de uma para outra -, uma com um ano e seis meses e a outra com seis meses de idade; minha tia perdeu um primo e um tio que morava conosco, que é uma pessoa muito significativa na minha vida, ele era xamã, foi criado com os índios, mas que teve uma influência muito grande na minha relação de conhecimento com a mata, com a floresta; e a minha mãe, digamos assim, uns seis meses depois da morte das minhas irmãs pegou meningite e, ao fazer a punção para ver a meningite, um aneurisma que ela tinha e não sabia que tinha estourou e ela veio à óbito. Como ela estava com meningite, foi sepultada sem que nós víssemos mais a minha mãe, pelo próprio hospital. Isso é muito difícil para que eu possa falar, porque eu já tinha perdido meu tio, meu primo, minhas duas irmãs e minha mãe nem vimos o enterro, não pudemos ver o enterro dela, e ainda a equipe de saúde de Rio Branco, que nunca tinha ido na casa dos seringueiros, foi na nossa casa para queimar a nossa casa. E era o que precisava fazer mesmo, porque a meningite naquele momento era algo assustador. Então, nada que se compare a isso que avassala o mundo, mas do ponto de vista de uma tragédia pessoal, do sofrimento de perder tantas pessoas queridas, o sofrimento de ter alguém como a minha mãe que foi sepultada sem que nós pudéssemos ver, o sofrimento de ver a nossa casa queimada com as poucas coisas que tínhamos é algo muito difícil para mim até hoje. Por isso eu me coloco muito na situação de sofrimento de todas essas pessoas Brasil afora e mundo afora sofrendo com essa pandemia. Não sei se era um pouco isso que você queria ouvir, mas é algo que do ponto de vista humano, pessoal, das relações humanas, é muito difícil de processar e de fazer o luto de alguém que a gente não conseguiu sepultar.

Paulo Markun: Eu vou fazer uma pergunta que eu penso que não tem resposta, mas às vezes essas perguntas sem respostas têm que ser enfrentadas. Como é que diante de um cenário como esse que nós estamos vivendo consegue ser mais dramático e mais global do que o seu drama pessoal que você não esquece até hoje, como é que diante disso tem gente que nega e tem gente que acha que nada pode ser feito e que temos que enfrentar quantas mortes acontecerem por que é assim que a vida acontece?

Marina Silva: Eu enfrento isso com um misto de tristeza e muita indignação. A tristeza por perceber que aqueles que estão em postos importantes da política, ou mesmo da economia do país – e alguns até que se prestam, ainda que uma minoria – que têm uma relação com a academia, esse tipo de postura e avaliação é quase que uma perversão em relação ao sofrimento humano, àquilo que nos é mais caro que são as nossas relações afetivas, porque os afetos ele não podem ser precificados, os afetos eles sequer podem ser comparados. Você não pode dizer para um filho “olha, mas é o seu pai, ele já é velho, vai morrer mesmo, enfim”. Não! Aquela pessoa é importante. Você não pode trabalhar com essa dimensão. Por isso que os especialistas que trabalham na orientação do isolamento social para os que podem ficar em casa para achatar a curva; é para que não se tenha uma postura política quase que de eugenia, de que “vamos agora fazer uma seleção natural dos mais fortes, dos mais capazes, e eliminar todos aqueles que são vulneráveis”. Isso não tem nada a ver com civilização e quando a gente vê isso sendo defendido e operado por lideranças políticas é algo muito assustador. Por isso que eu disse que causa profunda tristeza e indignação, porque meu pai morreu com quase 92 anos e eu sei que ele cumpriu sua missão, mas eu não gostaria de ver uma situação em que tivesse que escolher entre a vida dele e de um dos netos, eu gostaria que tivesse uma UTI para ele e para o neto. É isso que nós devemos querer num mundo civilizado, num mundo fraterno, num mundo em que as pessoas, de fato, se importam umas com as outras.

Paulo Markun: Nós vamos falar bastante de meio ambiente e da perspectiva… a ideia dessas conversas é justamente pensar o futuro, quando essa pandemia for controlada, que consequências isso trará para a sociedade, planeta. Mas, eu queria fazer uma pergunta que meu vício jornalístico não me consegue calar, que é o fato do seguinte, hoje aconteceu uma reunião na Câmara, em Brasília, dos partidos de oposição, das lideranças dos partidos de oposição, uma primeira reunião depois de um longo tempo. Você acredita que isso possa gerar uma energia capaz  de fazer frente ao que nós estamos assistindo no Brasil?

Marina Silva: Vai depender se a gente conseguir sair do rótulo “oposição” para os conteúdos, porque o que o Brasil está pagando o preço que está pagando hoje em muitos aspectos  tem a ver com essa união em torno de rótulos. Os rótulos são muito bons para serem massificados e para massificar consciências, mas não são bons para aferir competências, para dar soluções, para ir além das eleições, para ir além do poder. Eu tenho advogado no campo político em que tenho me articulado, que é com o PSB, o PDT, o Partido Verde, tenho um bom diálogo com o Cidadania, meu amigo Roberto Freire e lideranças de outros partidos, mas, enfim, às vezes no plano mesmo daquela liderança específica, não necessariamente do partido… o que eu tenho advogado é que se nós queremos contribuir nesse momento difícil, de uma profunda crise sanitária, de saúde pública, econômica, social, política, de valores e beirando uma crise institucional, nós vamos ter que sair da quadratura da eleição, vamos ter que sair do projeto de poder para um projeto de país, vamos ter que aprender a nos colocar de um lado, digamos assim, com uma postura de maior humildade e conseguir a confiança da sociedade novamente, porque a sociedade está agindo em muitos momentos, e agiu muito assim em 2018, não porque estava com um sonho, não porque estava com um projeto ou com uma esperança, foi muito mais para negar um dos lados, ou muito mais porque queria se vingar, ou muito mais porque interditar. E isso não tem ajudado o Brasil, aliás, tem nos levado para o fundo do poço, beirando um poço sem fundo. É preciso começar a ter uma visão prospectiva do país que a gente quer, do Brasil que a gente quer. E é preciso que essa crise, dessa magnitude, nos ensine muitas coisas, de que erros estão aí para ser reconhecidos e reparados, e de que nenhum de nós é dono da verdade. Como disse alguém, acho que foi o Chesterton, um pensador católico, ele dizia que “a verdade não está com nenhum de nós, ela está entre nós” e essa verdade entre nós precisa também aí colocar a equação sociedade nos seus mais diferentes segmentos, não apenas os políticos com suas estratégias de poder, com seus partidos poderosos, com fundos partidários legais – e até no passado mecanismos ilegais – que os levaram ao poder.

Paulo Markun: perfeito. Organizações de saúde pública, que representam mais de 40 milhões de médicos, enfermeiros e outros profissionais da área, de todo o mundo, pediram nessa terça-feira, ontem, a líderes do G20, para garantir que os planos de recuperação do Coronavírus combatam a poluição e as mudanças climáticas. É uma carta aberta assinada por mais de 350 organizações em 90 países diferentes, exigindo medidas de recuperação saudáveis e verdes após a pandemia, que causou já mais de 350 mil mortes em todo mundo e dizimou a economia. É uma esperança essa de que, vamos dizer assim, esse travão, esse freio gigantesco que a economia sofreu, que a sociedade está sofrendo, acorde pelo país e o planeta para uma realidade que tem que ser enfrentada – essa da questão climática?

Marina Silva: existe um provérbio, acho que ele é anônimo não sei, mas acho que ele é anônimo, que diz que “sábios são aqueles que aprendem com os erros dos outros, porém estúpidos os que não aprendem nem com os seus próprios erros”. E eu acho que nós já temos a chance de aprender, do ponto de vista das nações, dos estados nacionais, com os erros dos outros. E se não aprendemos estamos sendo estúpidos e isso tem a ver com o tratamento da pandemia propriamente dito, que começou na China e foi, digamos assim, numa trajetória geográfica alcançando uma demografia X e que dava tempo de alguns, como nós, por exemplo, ter aprendido. Não aprendemos e agora estamos pagando um preço. Do ponto de vista ambiental, nós temos que aprender com o nosso próprio erro. Historicamente, a humanidade foi produzindo maneiras de uso dos recursos naturais em bases altamente impactantes e que agora estão ameaçando a destruição da vida no planeta. E se temos uma crise nessa magnitude, que foi capaz de afetar e paralisar não apenas colapsar o sistema de saúde, mas também a economia, também, digamos, as relações de comunicação, e transporte, enfim, afetivas tudo, a cultura, espiritualidade; tudo vai ser afetado da forma como [inaudível] por essa pandemia. 

Se diante de tudo isso, nós quisermos voltar para um suposto normal anterior à pandemia, aí nós estamos sendo estúpidos porque não estamos aprendendo nem com o nosso próprio erro. É por isso que existe essas iniciativas e são todas muito adequadas e necessárias. Na União Europeia tem um movimento jpa com uma iniciativa firmada por centenas de personalidades do mundo político, cultural, acadêmico, social, espiritual, que é intitulada ‘Reiniciar e Reformar nossas Economias Para um Futuro Sustentável’; isso é uma ação que está acontecendo na Europa. Na América Latina, um grupo também relevante de pessoas começaram uma iniciativa – eu tive a felicidade de ser chamada por esse grupo para assinar essa iniciativa junto com eles, mas tem outras lideranças aqui no Brasil que igualmente assinam – denominada ‘Declaração Para Um Futuro Sustentável da América Latina’.  E esses movimentos eles estão acontecendo junto a diferentes segmentos para as ações na transição do pós pandemia, que tem a ver com empresários, tem a ver com acadêmicos, tem a ver com lideranças políticas, lideranças culturais, sociais, enfim, até mesmo espirituais, o Papa Francisco está numa, digamos assim, numa ação muito forte já anterior a tudo isso com o Sínodo da Amazônia. Eu acho que esse é o momento de buscarmos um novo modelo de desenvolvimento, né.

O pós guerra foi capaz de criar algumas coisas interessantes no processo de soerguer a Europa destruída, como por exemplo o Estado de Bem Estar Social. Quais são as vantagens humanitárias, civilizatórias que seremos capazes de produzir com toda essa crise tão avassaladora? Com certeza já esta colocado como um imperativo ético a necessidade de que os novos investimentos sejam feitos em bases sustentáveis; sustentáveis do ponto de vista ambiental, mas não só, também do ponto de vista econômico. Não é sustentável um mundo onde nós estamos à beira de nos próximos seis, cinco anos ter o primeiro trilionário do mundo; não é sustentável um mundo onde 1% dos que detém a riqueza tem mais riqueza que do que mais da metade da população do mundo, que é uma população de mais de 7 bilhões de seres humanos. Esse mundo já não era normal. Não é sustentável um mundo que destrói os recursos de milhares de anos que sustentam a vida pelo lucro de apenas algumas décadas. Esses novos investimentos precisam ser feitos numa nova direção, que é a direção da sustentabilidade econômica, social, ambiental, política. Ética e eu diria que até mesmo estética e cultural.

Paulo Markun: Marina, o Mia Couto, que é um escritor moçambicano muito conhecido, disse recentemente em um artigo – ele é biólogo – que há um bichinho invisível tão perigoso quanto o Coronavírus, que é o mercado. E a minha pergunta é: como é que se combate os exageros desse bichinho mercado que não se importa muito se vai destruir o meio ambiente ou não, se a humanidade vai durar mais séculos ou pouco importa? Um estudo da semana passada mostrou que as emissões diárias globais de dióxido de carbono caiu 17% como resultado da pandemia. Mas, esse mesmo estudo estima que se a gente voltar ao que acontecia antes, a queda vai ser apenas de 4% em 2020; portanto, pouco vai afetar a crise climática. Como é que se combate esse mercado voraz?

Marina Silva:Eu gosto muito do Mia Couto e eu acho que um biólogo sempre consegue uma forma de ser carinhoso e generoso quando se trata dos animais de das formas de vida, porque só ele para dizer que é um ‘bichinho’ o mercado. O mercado é uma coisa avassaladora; alguém já o chamou de Leviathan. E ele é uma espécie de Procusto, né,que vai…. Para quem não conhece a lenda, a história de Procusto, era um criminoso que conseguia fazer com que as pessoas que passassem na casa dele eram seduzidas para um banquete e ele tinha uma cama, que era uma engenhoca, que se a pessoa fosse muito grande ele encolhia a cama para que a pessoa tivesse que ser serrada para caber na cama; se a pessoa fosse pequena era exatamente a mesma coisa, ele esticava a pessoa para ficar no tamanho da cama grande. O sistema acaba funcionando como uma espécie de Procusto, ele vai tentando fagocitar tudo que encontra ao redor; qualquer iniciativa que dê o mínimo sinal de que pode afetá-lo, ele acaba se antecipando a ela. E é muito difícil, como diz o Mia Couto, fazer essa diferença. Eu, por exemplo, fiquei assustada quando ato contínuo àquela fatídica reunião que não tem palavras para uma reunião com aquele padrão – se é que se pode chamar aquilo de padrão-, eu vi reportagens e matérias dizendo “o mercado…

Paulo Markun: Reagiu bem

Marina Silva: O mercado financeiro também, né… “o mercado financeiro suspirou aliviado porque a montanha pariu um rato. E não tem perigo de impeachment, o Guedes está forte, etc, etc”. Agora, é uma lógica em que, pelo que foi dito – não sou eu que estou dizendo-, a única coisa que importa é o acúmulo de riquezas. E é triste imaginar uma coisa dessas. E o Mia Couto tem também um artigo que é maravilhoso, chama Os Sete Sapatos Sujos. Para que a gente consiga fazer alguma coisa ele diz “a gente tem que se livrar dos sete sapatos sujos”; a primeira delas é aquela de imaginar que nós somos pequenos demais, incapazes demais, pobres demais ou qualquer coisa demais para poder fazer qualquer mudança, e ele fala muito isso pensando na África em relação ao mundo desenvolvido – ou mesmo no nosso caso a América Latina-, que a gente tem uma tendência a se vitimizar. O outro sapato sujo que ele fala é aquele de que as vezes a gente acha que porque concorda com uma ideia, defende uma ideias, a gente já está praticando a ideia; então ele diz que esse é um sapato sujo. Eu não vou falar de todos, mas é maravilhoso esse texto e acho que nos ensina muito nesse momento. Eu acho que nós vamos ter que dar cabo à equação que está posta no mundo, que está posto no mundo desde o relatório Nosso Futuro Comum, da Brundtland, da Primeira Ministra da Noruega, quando ela fez o relatório Nosso Futuro Comum que estabeleceu ali que a forma de produzir e de consumir que nós temos no mundo pode destruir o planeta. Eu costumo dizer que nós estamos vivendo uma crise civilizatória; essa crise civilizatório – nos últimos 12, 13 anos eu tenho falado dessa crise civilizatória -, essa crise civilizatória ela se compõe de cinco grandes crises, e eu estou incluindo a crise sanitária dentro da crise ambiental para não dizer que são seis. São cinco grandes crises: econômica, social, ambiental, política e de valores; e dentro da crise ambiental a gente coloca também aí a crise sanitária, porque tem muita relação a história do vírus. Mas, essa crise civilizatória ela está exigindo, como um imperativo dos imperativos, a necessidade de mudar o atual modelo, porque pela primeira vez na história da humanidade que nós temos um modelo que ao entrar em colapso pode e tem o potencial de alcançar geograficamente o planeta inteiro e demograficamente a humanidade inteira. É o que acontece com o vírus e acontece com as mudanças climáticas, acontece com a perda de biodiversidade. Se não formos capazes de mudar o modelo insustentável de desenvolvimento na forma de produzir e consumir, de fazer uso dos recursos naturais, de distribuir a riqueza, de nos relacionar uns com os outros, com a natureza e com a gente mesmo, nós vamos entrar em um colapso civilizatório – se é que já não entramos – no ponto de não retorno.

E crises civilizatórias, Markun, não são fáceis de serem enfrentadas. Nós sequer temos um acervo de experiência de crises que tenham sido iniciadas e que tenham sido revertidas, até porque quem entra em crise civilizatória não entra porque está fracassando, entra porque está alcançando sucesso. E eles só percebem o fracasso do excesso de sucesso quando já extrapolou o ponto de não retorno. E eu torço profundamente para que a gente possa sair do modelo insustentável de desenvolvimento para um modelo que junte economia com ecologia, ética com política, né, o desafio de preservar e ser um país próspero num mundo próspero, com justiça social. O respeito à diversidade, esse é o grande desafio, é a gente sair do ideal do ‘ter’, que e o que orienta as nossas ações, os nossos referenciais desde que começou o mercantilismo, e nos reencontrar com o ideal do ‘ser’. Há limites para ter, mas hoje nós nos sentimos satisfeitos e felizes se tivermos; mas, o planeta é limitado e se eu me sinto feliz, me sinto plena, eu me sinto realizada, eu me sinto capaz, se eu for capaz de ter, se o planeta me limita, logo eu sou uma pessoa que não estou vivendo com o sentido de liberdade. Para que eu seja criativa, produtiva e livre, eu preciso fazer um deslocamento do ideal do ‘ter’ para o ideal do ‘ser’; há limites para que todos tenham um avião, todos tenham um carro, porque aí não tem planeta que aguente. Mas, não há limites para si. Não há limites para fazer a melhor entrevista, não há limites para escrever a melhor poesia, nem compor a melhor música, nem chutar e fazer o melhor gol. Não há limites para ‘ser’ e é isso que deve ser aquilo que nos orienta. A sustentabilidade , eu costumo dizer, não é apenas uma maneira de fazer, o fazer é parte disso; é uma maneira de ser, é uma visão de mundo, um ideal de vida.

Eu advogo que a gente comece a trabalhar…. As pessoas as vezes me…  “Ah, Marina, você é esquerda, direito, centro, lado?”, né, e como esses conteúdos só são rótulos hoje… Existem alguns que sinceramente têm posições históricas, pensamentos e elaboração, mas do ponto de vista da macro política que está aí, passou a ser apenas rótulos que referenciam algum segmento.  Então, eu digo “olha, se vocês insistem que eu tenho que ter um rótulo, eu digo que eu sou ‘sustentabilista progressista’ porque a sustentabilidade é uma visão de mundo, é um ideal de vida”. Os gregos queriam ser sábios e livres; os romanos queriam ser grandes e fortes; os egípcios queriam ser imortais; na Idade Média as pessoas queriam ser santas. O mercantilismo chega e nos desloca para o ideal do ‘ser’. E aí, até relações afetivas entre pessoas que se amam virou, né…a relação amorosa virou fazer amor. Mas, a ideia de ser está plasmada na nossa existência desde a nossa existência mais primária. Ninguém pergunta para uma criança o que ela vai fazer, npe, é uma pergunta que você não faz, “meu filho, meu netinho, o que você vai fazer?”, você pergunta “o que você vai ser quando crescer?”. E é uma pergunta altamente sofisticada para se fazer para uma criancinha, mas é isso que nós perguntamos e é essa criança que está entre nós brincando com o planeta Terra, brincando com a vida de maneira perversa que precisa ser perguntada o que nós queremos como humanidade, como parte da natureza, que é capaz de  colocar palavras naquilo que a natureza sente.

Paulo Markun: Marina, eu vou lembrar aos que nos acompanham que é possível fazer perguntas tanto pelo Facebook quanto pelo Youtube; a nossa equipe está aí para encaminhar as perguntas para mim pelo bate papo, para que possa passar para você.

O que eu queria mencionar é o seguinte, uma parte da classe média, não só do Brasil mas de outros países – eu neste momento estou aqui em Portugal -, viveu ou está vivendo nesse momento uma experiência nova e reveladora que é de ter que viver com menos e descobrem, pelo menos um segmento dessa classe média, de que é possível isso e de que não é tão complicado assim abrir mão de certas coisas em função de um bem maior, no caso a sobrevivência. A minha dúvida é, em primeiro lugar, o que é que sentem e pensam as pessoas que não são da classe média e que nessas circunstâncias não têm essa vivência – porque já tinham – de viver com menos, e mais do que isso, são forçadas a ficar dentro de casa em condições que nem sempre são as melhores – muitas vezes não são – e que de alguma forma têm dificuldade de entender isso? A pesquisa da Datafolha que foi publicada hoje indica que no Brasil 60% da população apoia o lockdown, quer dizer, apoia essa ideia de botar a vida acima da necessidade imediata de sobrevivência financeira ou de encontrar os amigos, família, de sair para a rua, de comprar ou, enfim, de buscar o seu sustento. A questão que eu levanto é, você imagina que isso, essa vivência que está sendo, pelo menos em um segmento da sociedade, ela pode ser pedagógica no sentido de entender esse discurso que você apresenta da sustentabilidade, de botar um bem maior acima das nossas demandas imediatas?

Marina Silva: eu espero e acho que nós devemos trabalhar por isso. O Edgar M. tem uma frase muito interessante que ele diz que no começo a mudança é apenas um pequeno desvio e que a gente tem que trabalhar para fazer com que os bons desvios possam prosperar. Da mesma forma que devemos trabalhar para que os desvios negativos não prosperem e é isso que faz com que a gente não seja apenas, digamos, um objeto da história, que seja também sujeito e objeto da história ao mesmo tempo. Então, essas experiências de conviver com menos consumo, menos coisas que gente, enfim, tem uma vida anterior ligada a tudo isso, precisa ser feito uma ponte com aqueles que, como você falou, vivem já constantemente em situação de escassez. Acho que é o Belusse que fala que a gente sofre do mal do excesso; excesso é também um mal, um problema. Se curar do mal do excesso é fundamental e uma das melhores curas para o mal do excesso é olhar para aqueles que sofrem o perverso mal da escassez. Por que nesse momento nós temos pessoas – que já viviam assim, mas agora bem pior – sem água, sem nenhuma renda do trabalho que tinham, sem uma casa onde ela pode ir pelo menos para o jardim ou uma janela dar uma arejada para respirar, convivendo as vezes com até doze pessoas, crianças misturadas com adultos e idosos, em uma situação de muita dificuldade e fragilidade social.

Acho que a pandemia ela não vai trazer uma conversão em massa. Olha que eu sou uma sonhadora e até inventei uma palavra para isso, dizendo que eu sou sonhática, eu acredito que a matéria prima mais concreta da vida é o sonho, porque isso é muito importante na minha vida – ter sonhos-, no entanto, eu acredito na nossa capacidade de acreditar criando. Nada vai acontecer por um passe de mágica. Existem aqueles que estão tendo experiências fantásticas de alteridade, de solidariedade, de resiliência, de acolhimento, de ressignificação de suas experiências, sejam pessoais ou coletivas, mas existem aqueles que estão ávidos para voltar a, inclusive em nome da pandemia, justificar mais exploração do trabalho, mais precarização, justificar mais flexibilização da proteção ambiental, porque afinal de contas precisa gerar empregos. É sempre o discurso que fazem, como fizeram agora, aqui no Brasil, para aprovar a MP da grilagem; é sempre em nome dos pequenos, quando na verdade quem está derrubando e destruindo são os grandes grileiros. Como o Ministro do Meio Ambiente vergonhosamente disse, que era aproveitar da morte das pessoas, da doença das pessoas, do desemprego das pessoas para promover mais estrago e sofrimento pela natureza. Então, existem aqueles que estão lutando para um novo mundo possível e aqueles que querem o mundo velho piorado, para maioria e benefício de poucos. Então, é um investimento, tudo o que acontece é um investimento.

Todavia, eu vejo movimentos muito interessantes. Eu vejo na França movimentos interessantes nessa direção, inclusive partindo do governo; na Alemanha, inclusive partindo do próprio governo; na Holanda; em vários lugares do mundo iniciativas que tensionam na direção de que não vamos fazer mais investimentos para aquecer mais o planeta, destruir mais as florestas. Inclusive, agora mesmo está tendo um debate na União Europeia para criar protocolos e regramentos para não importar desmatamento. É um conceito bem sofisticado que o Brasil precisa ficar muito atento, porque se as pessoas estão dizendo “olha, se nós não queremos contribuir com o desmatamento da Amazônia, então não vamos importar nem a carne, nem o grão, nem um tipo de proteína ou minério que nele está contido desmatamento ou uma pegada de carbono acima daquilo que está em conformidade com o Acordo de Paris”. Eu acho que nós estamos vivendo a grande oportunidade de ressignificar mesmo essa experiência, da nossa relação com o consumo, da nossa relação com as desigualdades sociais. A pandemia revelou drasticamente o gap social e tecnológico que existe entre os que podem, os que sabem, os que têm e os não sabem, não podem, nao tem, como dizia Dom Mauro Morelli; muitos apenas sentem a perversidade do sistema. E é isso que eu acho que a gente tem a oportunidade… O bom é que a gente pudesse fazer isso pelo amor; eu espero que a gente não perca a oportunidade de fazer em função da dor que nesse momento é de todos nós.

Paulo Markun: Pergunta de Gê Ishimaru: como engajar a juventude, hackear o sistema predatório para que o nosso novo normal seja ecologicamente sustentável ético? Quais as estratégias políticas reais para isso?

Marina Silva: existe a do engajamento pessoal, você fazendo a diferença, que aí é o meu micro universo; e no espaço da política não necessariamente partidário. Um cidadão consciente que resolve comprar produtos florestais que não foram oriundos de grilagem de terra, de roubo de madeira na terra dos índios nas unidades de conservação, feito de forma predatória sem manejo florestal, esse cidadão está ajudando a mudar o… está hackeando o sistema. Quando você, na hora de dar o seu voto, presta atenção no que está sendo dito e no que é praticado por aquela vida que está dizendo, se de fato ele vai ter um compromisso com o proteção ambiental, com a justiça social, com a defesa dos direitos humanos, com a liberdade de expressão e assim por diante. A sociedade tem um poder enorme de transformação, mas é preciso que a gente faça um debate olhando para o que está acontecendo com a política. O Bauman costuma dizer que a política está impotente, porque a gente conseguir o sistema faz com que a gente tenha liberdade na maioria das democracias ocidentais, apesar de que alguns, pelo menos aqui no Brasil, estão lutando desesperadamente para [inaudível], a gente conseguiu a liberdade de dizer o que quiser, de fazer o que quiser, mas menos de uma coisa: mudar o sistema. E esse sistema que eu sei que você está propondo a gente hackear; não cair na armadilha da cama de Procusto. E para não fazer isso é aquele cidadão consciente que olha para o que acontece agora quando uma medida vai ser votada no Congresso, como é o caso da MP da grilagem, que aliás, o que o Ministro disse naquela reunião, “vamos aproveitar para passar a boiada”, uma das boiadas que ele queria passar é a MP da grilagem, porque tinha sido feito um acordo com o Presidente da casa, o Rodrigo Maia, de que não entraria nenhum projeto que não fosse de consenso e que não fosse referente à pandemia. E de repente subiu um jabuti na árvore e aparece a MP na pauta. Então, houve uma mobilização muito grande da sociedade e o Presidente da Câmara se sentiu respaldado para tirar a MP da votação. Na semana seguinte ela veio como projeto de lei, houve mais uma vez uma grande mobilização da sociedade e diante do governo que deixou claro que ia apresentar todas as demandas de destruição no Plenário e fazer a rolo compressor, o Deputado Marcelo tirou também a proposta do relatório dele. Ou seja, a mobilização da sociedade ela funciona e já funcionou em muitos momentos.

Eu me lembro quando o Fernando Henrique fez a Medida Provisória aumentando a reserva legal de 50 para 80%, quando o desmatamento chegou a 29 mil km², que foi o maior desmatamento da história da Amazônia; o segundo foi em 2004, eu já estava no governo, mas depois fiz o plano e foi graças ao plano que fiz em cima disso que caiu 83% durante mais de 10 anos. Mas, naquele período do Fernando Henrique houve uma grande mobilização da bancada ruralista para revogar a medida; então, o governo já estava, digamos, entrando na boiada de revogar a medida e voltar 50% de reserva legal. Houve uma grande mobilização da sociedade e ainda que na comissão especial só tivéssemos dois deputados contra a revogação dos 80%, que era eu e o Gabeira, e os outros – que eram 14 – todos eram favoráveis a voltar para os 50%, com a grande mobilização o Fernando Henrique pediu para eu tirar de pauta. Quando foi no governo do Presidente Lula, que eu era Ministra e fiz o plano de combate ao desmatamento, em 2008 quando tomamos medidas cada vez mais fortes para conter o desmatamento, vedando o crédito, colocando os municípios que mais desmatam na lista cinzenta, criminalizando a cadeia produtiva de quem derrubava, transportava, desmatava, comprava – medidas bem fortes-, houve uma pressão muito grande, o Presidente Lula ia revogar as medidas. Eu pedi para sair, houve uma grande comoção social, ele se sentiu respaldado e manteve o plano. Durante o governo do Temer ele tentou revogar a Rencas, que é uma área de proteção permanente na fronteira do Amapá com o Pará; uma grande mobilização e o projeto saiu de pauta. E agora a MP da grilagem também foi graças a essa mobilização. Então, a gente pode sim hackear o sistema agindo em múltiplas direções. E o interessante é que boa parte das conquistas desse tempo elas são feitas de forma autoral, é aquilo que eu chamo de ativismo autoral; ativismo da pessoas, em que ela entra na cena investida da experiência dela própria de dar uma contribuição, e ao se juntar ao coletivo consegue fazer uma diferença.

Paulo Markun: Marina, pergunta de Lucas Silva, que veio pelo Facebook: por que a ciência não parece ter valor nesse modelo progressista predatório que vivemos? Qual é o papel dela num sonho de um Brasil sustentável?

Marina Silva: Eu acho que ele quis dizer o modelo desenvolvimentista que nós temos…

Paulo Markun: Isso, pois é.

Marina Silva: esse modelo tem uma parte dele que, propositadamente, tem uma visão negacionista. O negacionismo hoje ele está criando um mal incalculável do ponto de vista ambiental, porque nega o problema das mudanças climáticas, nega a relação entre tudo isso o aquecimento, enfim, a emissão de CO2, o aquecimento do planeta, a possibilidade de uma destruição em massa de espécies e comprometendo a própria vida, colapsando os sistemas sociais, econômicos, urbanos, enfim, tudo. Esses negam conscientemente, por uma ação política, porque romperam o laço social, romperam o laço social. Quando se rompe laço social é uma coisa muito estranha porque nós somos seres humanos, somos capazes de nos importar com aquilo que legamos do passado e com aquilo que queremos legar, deixar para o futuro; quando já não nos importamos com o passado e o futuro é porque a gente está vivenda única e exclusivamente no presente. E aí já é uma outra pegada que é de completo colapso civilizatório, inclusive do ponto de vista da subjetividade humana. Os que têm essa postura de negar, porque querem aproveitar o aqui e agora, esses fazem isso que você mencionou, é o modelo predatório que separa economia de ecologia, o social do ambiental, enfim, todas essas coisas em prejuízo da vida de todos. No entanto, existem aqueles que têm uma visão que integra essas duas coisas, a economia com a ecologia. E aí a ciência tem um papel muito grande, porque a ciência vem sofrendo muitos ataques quando ela parou de ser na cabeça de muitos uma promessa mágica; porque a ciência moderna quando nasce, como diz o Descartes, ela nasce com o paradigma de que veio para facilitar de forma exponencial os confortos da vida humana; quando a ciência começa a colocar uma série de “senões’ e você vê cientistas sendo atacados, cientistas sendo desmoralizados, cientistas vendo os investimentos para pesquisa diminuírem, como a gente vê aqui no Brasil com os projetos da CAPes, os projetos de iniciação científica, né… A ciência ela tem um papel fundamental e nem sempre ela vai conseguir dar a resposta na mesma velocidade da nossa capacidade de criar problemas. E quando eles dizem isso, setores do poder políticos e poder econômico não ficam felizes, não ficam satisfeitos e fazem de tudo para tentar vergar a ciência.

Mas, o Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas, a Convenção da Biodiversidade e tudo o que vem acontecendo no Brasil tem sinalizado de que é preciso que as decisões políticas cada vez mais sejam tomadas olhando para a ciência. Uma ciência politizada, que se politizada em si mesma, vai deixando de ser ciência; mas, uma política que não olha para aquilo que a ciência traz, vai deixando cada vez mais de ser política, porque política – ainda que tenha feito muitas coisas atroz -, no seu idea, é a conduta ideal das instituições e para que as instituições funcionam idealmente, ela tem que funcionar com base em critérios de verdade. É claro que nem tudo a gente tem ali uma resposta científica. Como dizia o Mario Aletti, conselheiro do Vaticano, ainda bem que os homens aprenderam a navegar antes de descobrir as leis da dinâmica eólica, mas é muito importante descobrir as leis da dinâmica eólica porque aí a gente consegue navegar com mais velocidade, com mais eficiência e com menos desastre.

Paulo Markun: Marina, eu penso que a gente, se tivesse a oportunidade de olhar a história do Brasil daqui a 50 anos, as pessoas iam estranhar o fato de que houve uma candidata que parecia ter chances de ganhar a eleição para Presidente da República, num certo momento da campanha, e que uma parte do ataque à ela foi o fato de que seu partido era muito pequeno, acabava de ser criado, não tinha sustentação política. E anos depois, na perspectiva dos 50 anos, um candidato sem nenhum partido de expressão e que hoje sequer partido político tem vinculado à ele ganhou a eleição contra tudo e contra todos para fazer um projeto muito impressionante…

[Caiu conexão Marina]

Paulo Markun: Eu tenho a impressão que a Marina caiu aqui… não, está aí, desculpa. Você está me ouvindo, né, Marina? Alô? TV Cultura, a Marina está fora aqui, eu vou segurar um pouquinho para…

[Volta Marina]                                             

Paulo Markun: Voltou, você só precisa abrir o seu áudio, Marina. Tá me ouvindo?

Marina Silva: Agora já está ok.

Paulo Markun: Beleza, então vou repetir. Quer dizer, nessa perspectiva dos 50 anos havia essa candidata, que é você, em uma determinada eleição cuja principal crítica que se fazia era de que não tinha partido para sustentar e, portanto não poderia governar. Poucos anos depois, ganha um candidato sem essa base partidária e agora sequer com partido vinculado a ele. E a minha pergunta é: o que é que deu errado? O que que aconteceu que, vamos dizer assim, a mudança se processou não na direção que se imaginava, mas na direção oposta, na direção do retrocesso?

Marina Silva:O Harari, do Sapiens, né, um jovem historiador brilhante, ele diz que a história é cheia de muitas possibilidades e que nem sempre prosperam as melhores possibilidades. E isso é fato. E eu acho que uma das razões pelas quais não foi possível uma alternância de poder, direção, de consolidar as conquistas já alcançadas – o que havia de positivo, corrigir erros e encarar novos desafios -, entendendo conquistas positivas como estabilidade econômica, a inclusão social, e entendendo como novos desafios a agenda do desenvolvimento sustentável. Para mim era isso que estava posto nas eleições, em 2014. Infelizmente, os partidos da social democracia, PT e PSDB, que são dois partidos da social democracia – que no Brasil ganha o rótulo de esquerda, mas é social democracia-, um com o apoio do empresariado e parte da intelectualidade, outro com o apoio popular, que é o PT, e parte da intelectualidade; dois partidos que deram uma contribuição, um em relação à questão econômica com o Plano Real, outro em relação à inclusão social. Infelizmente se perderam em projetos de poder pelo poder, e os projetos que acabam colocando o poder como um fim de si mesmo acabam esquecendo do próprio fim. Então, se parou de discutir projeto de país, parou de se pensar no futuro da nação para se pensar apenas em estratégias de eleição. E quando se tem uma visão de país e não de projeto de poder numa democracia, a alternância de poder é algo perfeitamente saudável, ainda mais em um contexto em que se está disposto, como eu estava e o Eduardo – que infelizmente teve a sua vida ceifada -, como estávamos de preservar conquistas, corrigir erros com certeza, naquele contexto foi um processo avassalador. Eu diria que as eleições de 2014 elas foram uma fraude e eu não tenho medo de dizer isso.a eleição de 2014 foi uma fraude, foi uma fraude porque do ponto de vista político foi baseada na mentira e do ponto de vista, digamos, ‘legal, (foi baseada) em corrupção – tudo o que veio com a Lava Jato; o equivalente ao que foi declarado tinha roubado da Petrobrás, dos fundos de pensão, de Belomonte, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil, do BNDES. Ou seja, uma campanha em que você declara 500 milhões e tem mais 500 milhões que não era declarado é uma campanha de um bilhão. Para quem está concorrendo apenas com os meios legais e tão somente esses, e com o compromisso de não destruir biografias… E aí vem toda aquela história das fake news.

As fake news não foram inventadas pelo Trump, as fake news foram inventadas pelo João Santana e pela Dilma, e ele narra no próprio livro dele quando tomaram a decisão de me aniquilar politicamente. É claro que depois das eleições tudo isso foi uma onda que prevaleceu e que tem consequências até hoje, né. É algo avassalador, alguém que tem a minha biografia de repente era vista como alguém que ia entregar o Bolsa Família para os banqueiros e as pessoas iam ficar pedindo esmola na rua, que as pessoas que eram católicas não podiam mais participar do sino de Nazaré, que eu iam fazer uma lei para acabar com as Padroeiras do Brasil, que eu ia acabar com o Minha Casa, Minha Vida, o Bolsa Família, o Prouni…. Meu Deus! Era uma coisa tão avassaladora que não tinha como você nem se movimentar. E foi, digamos assim, o fundamento de distorcer a vontade do cidadão, de fazer alternância de poder pelo poder econômico e pelas políticas inescrupulosas. E nós estamos pagando o preço, né, porque o que foi chocado por essa lógica de ‘poder pelo poder’, tanto do PT quanto do PSDB, foi o Bolsonaro; ele esta aí como resultante de tudo isso. Até porque, alguns achavam que era mais fácil ganhar dele, então até estimularam um pouco nas sombras. E depois veio aquela visão, que aí acho que foi um erro de todos nós – fazendo a autocrítica- de subestimar o Bolsonaro. Portanto, nesse momento nós não temos o direito de subestimá-lo de novo. Nas eleições de 2014, poucos faziam análise de que ele poderia ganhar, “ah, não passa do primeiro turno”, “não vai conseguir fazer o debate” e um monte de coisa. O problema é que o Brasil está revelando uma face que estava recalcada, do ponto de vista político, de uma visão autoritária, misturando fundamentalismos, porque os fundamentalismos são de ambas as partes, de esquerda, de direita… é só olhar o que acontece na Venezuela, a visão de que não importa o que o líder faz ele já está perdoado, já está sacralizado, as pessoas não conseguem nem ver que foi um erro. Isso é muito perigoso para uma democracia, isso é muito perigoso para uma sociedade que quer se construir de forma madura e não de forma infantilizada com um salvador da pátria. Então, dessa vez, agora, é bom que ninguém subestime o Bolsonaro, porque ele está fazendo uma mistura muito perigosa, querendo o regime autoritário porque ele já descobriu que ele não tem competência para governar numa democracia. Ele está indo para o tudo ou nada; ele vai lá atrás das cortinas e faz e acontece, depois ele vem na frente das cortinas e diz respeitar as instituições e vamos trabalhar juntos, depois de uma reunião externa conspirarem contra o meio ambiente, contra o Supremo, contra a mídia, contra o Congresso, contra todo mundo. E a gente fica se distraindo com as coisas pequenininhas que ele fala, que não tem nenhuma relação de coerência com a realidade, com absolutamente nada. E temos que ficar muito atentos. Aliás, os militares precisam desautorizar o Bolsonaro sob pena de parecer que há, de fato, uma conivência das Forças Armadas em relação a tudo isso que ele em fazendo.                               

Paulo Markun: Você acredita que isso pode acontecer, essa desautorização?

Marina Silva: Eu acho que tivemos alguns ensaios que eu espero que continue. Quando o Bolsonaro chegou dos Estados Unidos lá na crise da Venezuela, quando o Guaidó se declarou presidente, enfim o Bolsonaro veio ávido por fazer algumas escaramuças e os militares se colocaram ali na frente. Enfim, como é que…isso não pode acontecer. Foi um momento ali, nesse momento há muitas interrogações em relação ao cumprimento da nossa Constituição à autonomia dos poderes, a não permitir nenhum tipo de flerte aqui no Brasil, não é -que é isso que nós estamos vendo -, do que aconteceu na Venezuela. Na Venezuela era uma mistura de polícia com milícia, com paramilitares que faz com que o Chávez se perpetue no poder até hoje, apesar de todo mal que está acontecendo, a tragédia humanitária que é a Venezuela – e se rotula de esquerda. Aqui, o que estão querendo é a mesma coisa, pelo viés da direita. Então, é isso que todos os democratas, independente de partido, de eleição, devem trabalhar para manter o Brasil como uma democracia ocidental. Bolsonaro flerta o tempo todo em tirar o Brasil daquilo que é uma democracia ocidental, usando os vários fundamentalismos políticos misturando com fundamentalismos religiosos, que é tudo uma química muito difícil e que não queremos que aconteça com o nosso país. 

Paulo Markun: Marina Silva, muito obrigado pela sua entrevista. Boa sorte no seu segmento dessa quarentena e nesse quadro político que nós estamos vivendo. Eu lembro aos espectadores que nós teremos na próxima quarta-feira, às 16h, mais um Conversas na Crise – Depoois do Futuro, nós estamos ainda fechando o nosso convidado. Dessa vez na quarta que vem e nas próximas, sempre às quarta-feiras; será pelo UOL, pelo Universo Online, e para você ter as informações acesse o site www.idea.unicamp.br. Por lá nós vamos confirmar o próximo participante. Boa sorte, Marina. Muito obrigado.

Marina Silva: Obrigada, você. Uma boa tarde para todos.