Por Laura Segovia Tercic
No jogo geopolítico da pandemia, em que a vacina é atualmente a melhor aposta para a saída das crises sanitária e econômica, a China cumpre papel central. “Eles são os grandes produtores”, comenta Elize Massard da Fonseca, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em acordos internacionais do setor farmacêutico. “Se quiserem fechar a distribuição de vacinas no mundo, eles podem”, afirma.
Assim, confrontos diplomáticos requerem ainda mais atenção e cuidado. Os inúmeros insultos disparados ao governo chinês pelo presidente Bolsonaro, por seus familiares e pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, provocam uma situação de hostilidade que não tem facilitado a negociação dos insumos e das chamadas IFAs (ingredientes farmacêuticos ativos), produtos essenciais para a fabricação das vacinas.
Além de tentar desenvolver suas próprias vacinas para a covid-19, a indústria farmacêutica e os governos mundiais lidam com a dificuldade de materialização de doses já encomendadas. Mesmo União Europeia e Estados Unidos reclamam de não receber a grande quantidade de lotes encomendados. Mas em ambos os casos, pouco sairá do papel sem a contribuição da China.
Fonseca explica que o processo de produção e distribuição de vacinas é extremamente fragmentado. Isto é, desde a concepção do fármaco nos laboratórios de empresas e universidades até sua chegada nos centros de aplicação, muitos acordos são firmados e muitos produtos têm que ser adquiridos, comercializados e transportados. “A China tem um papel estratégico na questão das vacinas, não só por conta da Sinovac e das outras empresas que produzem vacinas por lá, mas também porque é o principal produtor de matéria-prima das vacinas”, alerta.
Ainda segundo a pesquisadora, outros países, como Índia e Estados Unidos também têm capacidade de fabricar as IFAs em quantidade suficiente para suprimento nacional, mas ainda assim não produzem – importam da China. Juntos, China e Índia, aliás, são os responsáveis por mais de 70% dos suprimentos médicos importados pelo Brasil. No caso das vacinas para a covid, Fonseca aponta que mesmo a da AstraZeneca, que já começou a ser aplicada em território nacional, também tem matéria-prima chinesa.
E por que Estados Unidos, tendo capacidade, não produz as IFAs em quantidade suficiente para consumo próprio? De acordo com Fonseca, “ainda que isso seja possível, demoraria muito para alterar a atual dinâmica da cadeia produtiva vacinal, e há urgência”.
Diplomacia
Segundo o pesquisador Marcos Cordeiro Pires, o que estamos vivendo no contexto geopolítico das vacinas não pode ainda ser caracterizado como uma crise diplomática. “Diria que é mais um desconforto, pois os países produtores de vacina estão divididos em dois blocos: os países ricos (EUA, Reino Unido, Alemanha, União Europeia), que estão priorizando as vacinas para suas próprias populações e os países em desenvolvimento (China, Índia e Rússia), que estão viabilizando a entrega de vacinas para outros países em desenvolvimento”, afirma Pires, que leciona no curso de relações internacionais da Unesp e pesquisa a inserção da economia brasileira no cenário mundial e a relação Brasil-China.
O professor diz que é preciso considerar que a China foi o país que melhor combateu a pandemia, com taxa de 3 mortos por milhão de habitante, mesmo antes do desenvolvimento da vacina. Por isso o país está se valendo de sua capacidade de produção para fazer a “diplomacia da vacina” e defender o seu caráter de “bem público internacional”.
Para Pires, esse não foi o caso de muitos países ricos, que agora repetem, nas palavras do pesquisador, o ditado nordestino “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Pires explica que se países ricos tivessem lidado melhor com a pandemia em seus territórios, estariam “ombreando com os chineses, russos e indianos para vender suas vacinas e aumentar o seu prestígio internacional”.
Já o governo federal brasileiro, com exceção do acordo firmado com a AstraZeneca, não se programou de forma ampla e coordenada para os acordos de compra, transferência de tecnologia e produção de vacinas. Além disso, negligenciou a gravidade da pandemia e indicou medicamentos ineficazes para combatê-la.
Para ambos os pesquisadores, as negociações de outros agentes, como o acordo entre o Instituto Butantan e a Sinovac ou entre União Química e o Instituto Gamaleya, diminuem o impacto dos prejuízos causados pelo governo federal na imunização da população brasileira.
Brasil e os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China)
Complicando a situação brasileira frente a um importante aliado em plena pandemia, soma-se o fato de o governo atual ter “praticamente saído do grupo BRICs por conta de um alinhamento cego à política do ex-presidente americano, Donald Trump”, lamenta Pires, que lembra o caso do secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo. Pompeo chegou a publicar um tweet comemorando “ter conseguido liquidar com o grupo dos BRICs” e teria realizado um trabalho de soft power ao longo de sua gestão. O soft power é uma estratégia política que enfraquece a emancipação ideológica de países emergentes, como o Brasil.
Apesar do estranhamento atual, o professor e pesquisador da Unesp avalia que com o tempo os conflitos devem deixar apenas cicatrizes superficiais nas relações sino-brasileiras. A isso deve-se a compreensão da importância de sua manutenção, dada tanto pelo governo da China quanto por setores variados da sociedade brasileira, notadamente os exportadores. “Independentemente das diferenças políticas e culturais, a relação diplomática vem crescendo desde o seu início, nos anos 1970, com cooperações em diversos campos”, comenta, exemplificando com o caso da construção de satélites.
Por fim, Pires lembra que há uma máxima da economia política internacional que diz que não há fronteiras entre os interesses políticos e os interesses comerciais/econômicos. “A política serve para impulsionar os negócios; os negócios servem para impulsionar a política”, resume.
Laura Segovia Tercic é bióloga (USP) com especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)