O fogo tomou dimensões que dificultam a recuperação em curto prazo
Por André Giles e Vinícius Nunes Alves
A seca de 2020 no Pantanal, considerada uma das maiores dos últimos 50 anos, potencializou o efeito do fogo nesta região e atingiu uma área de 2,3 milhões de hectares, equivalente a 10 cidades de São Paulo e Rio de Janeiro juntas, segundo o Centro Nacional de Prevenção e Combate a Incêndios.
Além dos efeitos das mudanças climáticas, que tornarão esses eventos extremos cada vez mais frequentes, outros fatores estão associados ao desastre. De acordo com artigo publicado na revista Agricultural and Forest Meteorology, o aumento do registro de focos de incêndios na região pantaneira está fortemente ligado à atividade econômica, que ainda é concentrada na agricultura extensiva com queima de pastagens naturais para possibilitar a rebrota do capim.
As consequências dos incêndios são persistentes e afetam até a dinâmica de águas no período chuvoso. “A cada dia que passa mais recursos precisaremos para reverter as consequências, principalmente com um governo federal que nega a gravidade da situação”, explica Carolina Joana da Silva, professora da Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat), e pesquisadora em um projeto de longa duração sobre recuperação de áreas degradadas no Pantanal.
Incêndios afetam biodiversidade e comprometem a recuperação da vegetação
Uma edição especial da revista Science trouxe estudos que demonstram as consequências do aumento do período de estiagem e de queimadas em ecossistemas globais. A edição alerta para o agravamento de ameaça à biodiversidade.
“Com a queima da vegetação, há redução na disponibilidade de flores para polinizadores”, comenta a pesquisadora Andrea Araújo, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). A polinização é um processo essencial para garantir a dispersão de sementes e para que as plantas produzam frutos, que alimentam a fauna. Além disso, “a magnitude dos incêndios atuais causa a perda da camada de matéria orgânica no solo, afetando a disponibilidade e a ciclagem de nutrientes. Com isso, a vegetação demora para se recuperar ou pode não se recuperar naturalmente”, complementa a pesquisadora.
“A recuperação e a restauração dos habitats será muito difícil, pois não há coleta de sementes suficientes para a produção de mudas, nem conhecimento sistematizado e preparo logístico para restauração na escala de perda verificada”, observa Carolina. Assim, é urgente que se comecem a preparar as condições para a restauração, considerando a dificuldade em mensurar o impacto do fogo sobre a biodiversidade. “O Pantanal é a maior área úmida continental do mundo, que abriga muitas espécies, inclusive algumas ameaçadas de extinção em outros biomas”, acrescenta a pesquisadora que também é pantaneira e ribeirinha.
Fogo ameaça recursos hídricos
O bioma possui ciclos com anos mais secos alternados com anos de cheias mais intensas. Ibraim Fantim da Cruz, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) com experiência em conservação dos recursos hídricos, comenta que uma seca intensa como a de 2020 já ocorreu no passado. “Houve registro de um período de estiagem bastante forte entre a década de 1960 e 1970, contudo, o período chuvoso deste ano foi atípico e as mudanças climáticas têm potencial de aumentar a frequência desses anos atípicos”, adverte o pesquisador.
O cenário de cinzas deixado pelo fogo traz consequências para o funcionamento dos corpos hídricos. Isso porque todos os sedimentos acumulados no período árido são carreados para os rios pela chuva. Ibraim afirma que “esse processo se potencializa nas primeiras chuvas, quando todo material depositado é carreado para os rios, causando impacto negativo para a fauna aquática”. Essa matéria orgânica acumulada é decomposta pelas bactérias, o que consome grande parte do oxigênio dissolvido na água e libera dióxido de carbono nos rios. A baixa oxigenação da água ocasiona a morte de peixes e prejudica comunidades ribeirinhas, pois a água fica imprópria para o consumo.
Um futuro para o Pantanal
A vida em um futuro pós-fogo é a maior preocupação dos pantaneiros, o que inclui as comunidades tradicionais. Carolina ressalta que “na região existem seis etnias indígenas que vivem nas áreas úmidas. Um exemplo são os Bororo, habitantes da terra indígena de Tereza Cristina, que precisaram ser retirados do local com o avanço dos incêndios, e os Guató. “São habitantes da Baía dos Guató, dependentes da pesca e criadores de isca”, comenta a pesquisadora, que participou da delimitação da terra indígena da etnia.
O bioma precisará de tempo para se recuperar e isso reforça estratégias que devem ser priorizadas na gestão ambiental. “A situação que presenciamos evidencia a importância de fiscalização eficaz e estratégias de prevenção de novos incêndios para que tragédias desse tipo não se repitam”, destaca Andrea. Com relação à fiscalização, Ibraim e seu grupo de pesquisa propuseram para financiamento público um projeto de longa duração com objetivo de testar o manejo e o controle das queimadas na região. “Apesar do aumento da frequência de estiagem no Pantanal favorecer o alastramento do fogo nos últimos anos, sabe-se que quem começa são infratores”, aponta. Esse momento também é oportuno para realizar mais estudos científicos, como explica o pesquisador: “O que cabe agora é reunir especialistas para identificar os causadores e, com isso, propor estratégias, minimizando também o impacto nas populações mais vulneráveis que dependem de recursos do bioma, como ribeirinhos, quilombolas e indígenas”.
A conservação não se restringe somente ao manejo do fogo, mas também à valorização de outras atividades que possam trazer ganhos econômicos, como a ampliação do ecoturismo. “Temos o Pantanal e a Chapada dos Guimarães, mas nenhum curso de ecoturismo em universidade pública no estado. É uma fragilidade imensa para a região. Tive experiência na Barra de São Lourenço com as comunidades tradicionais, e uma das potencialidades econômicas é capacitar essas pessoas para trabalhar como guias turísticos nos parques”, sugere Carolina.
Assim, uma alternativa rentável e de menor impacto ambiental para grandes fazendas é a substituição de parte da pecuária pelo ecoturismo. “Muitas fazendas em Poconé (MT) que continuam só focadas em gado estão praticamente falidas. Já as fazendas que aliaram a produção da pecuária com turismo conseguem se manter e algumas recebem até premiações”, completa a pesquisadora.
Outra forma de conservar qualquer bioma é a produção agrícola convencional deixar de usar uma contabilidade que não reflete a realidade, já que desconsidera tudo que se perde com determinada produção. “A perda do solo e principalmente a extração da água para irrigação – e é a atividade que mais consome água – não são computadas. Se o custo da água investida na produção do agronegócio fosse computado, a situação seria outra”, pondera Carolina.
André Giles é biólogo com mestrado em botânica (Unesp). Atualmente é doutorando em ecologia (Unicamp).
Vinícius Nunes Alves é biólogo (Unesp) com mestrado em ecologia e conservação de recursos naturais (UFU). Além de especialista em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).