Por Daniel Pompeu
“O que o Hélio queria era justamente propor uma arte brasileira de vanguarda com características que colocam em xeque o peso cultural milenar dos europeus e as demandas norte-americanas. Há uma busca e uma vontade centrada em afirmar sua própria terra, o Brasil”, afirma Annelise Estrella Galeazzi, pesquisadora da obra e trajetória do artista.
Dos tecidos esvoaçantes e coloridos feitos para estarem em movimento, os Parangolés, ao ambiente Tropicália, que deu nome ao movimento cultural de mesmo nome, as obras de Hélio Oiticica (1937 – 1980) tiveram profunda influência na arte brasileira e significaram uma quebra nos suportes tradicionais até então, como telas e esculturas. Oiticica pertenceu ao grupo de “artistas desbundados”, faceta da contracultura efervescente do final dos anos 1960 e década de 1970, em meio ao recrudescimento da ditadura militar. Talvez a manifestação mais conhecida do inconformismo anárquico de Oiticica seja o poema-bandeira “seja marginal / seja herói”, que retrata o bandido suicida Alcir Figueira da Silva na figura de anti-herói (imagem de capa desta entrevista).
Oiticica é reconhecido internacionalmente por sua busca pela transgressão dos padrões vigentes de arte, fazendo uso de espaços e objetos variados, além de tratar de temas como o anarquismo, o samba e a marginalidade. Sua obra também é composta por uma diversidade de ensaios e poemas em que faz reflexões e considerações teóricas sobre sua trajetória. Parte de sua produção, incluindo os Parangolés, está em exposição no Museu de Arte de São Paulo (MASP) até o dia 22 de novembro. Em entrevista à ComCiência, Annelise Estrella Galeazzi, doutoranda em teoria e história literária no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp e pesquisadora da obra de Oiticica, fala sobre a crítica do artista ao colonialismo e a influência de suas posições políticas em sua trajetória.
Em escritos que datam de 1970, Oiticica faz uma crítica aos padrões artísticos da época caracterizando-os como “retrogressores”, resistentes à inovação, além de acusar os críticos norte-americanos e europeus de promoverem o “colonialismo artístico”. Essa antítese aos padrões de arte da época também marca o trabalho de Hélio?
Sim, sem dúvidas. É importante destacar que os textos ensaísticos do Hélio não podem ser vistos como oposição ou mesmo deslocados de sua obra visual, uma coisa se liga exatamente a outra. Na verdade, podemos dizer que fazem parte da mesma coisa: a obra de Hélio Oiticica.
Ainda que ele não seja o único num contexto de arte global que estava desenvolvendo uma pesquisa que buscava relacionar arte e vida, a crítica estrangeira faz o que ele chama de “colonialismo artístico” porque espera que o artista brasileiro esteja sempre à procura de uma identidade cultural, como se estivéssemos sempre fadados a uma herança cultural do colonizado. Oiticica rompe com essa busca identitária, seu projeto artístico é radical, é político e é estético.
Mas também é preciso entender que essa questão do colonialismo artístico aparece dentro e fora do Brasil. Há um episódio que ficou marcado para a história da arte brasileira que é quando, na exposição Opinião 65, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1965, Hélio quer apresentar seus Parangolés e, para isso, convoca os passistas da Mangueira para entrar dentro do museu, dançando e incorporando a obra. No momento em que os passistas vão entrar no museu, eles são barrados. Depoimentos de artistas que estavam lá relatam que Hélio ficou furioso com a situação e acusava todos de racistas, preconceituosos, conservadores, entre outras coisas. Esse episódio marca bem a ideia que o próprio artista tinha em relação à vivência da obra, que era preciso tomar uma posição, e de como isso era fundamental para romper com um estado de colonialismo cultural, próprio de países subdesenvolvidos como o Brasil.
Ele morou algum tempo nos Estados Unidos e, até certo ponto, sua arte foi abraçada internacionalmente. Em alguns contextos, é mais reconhecido no exterior do que no Brasil. O fato de parte de sua formação ter sido feita nos EUA e a própria interlocução com esse público internacional são contraditórios à sua crítica ao chamado “colonialismo artístico”?
Não. Acho que antes de tudo precisamos entender porque ele foi aos Estados Unidos. Depois de passar um ano entre exposições em Londres, com destaque para a mostra na Whitechappel Gallery, em Nova Iorque e São Francisco, Hélio retorna ao Brasil em 1970 e encontra um país, um Rio de Janeiro, tomado pelo conservadorismo. Havia a ditadura militar em curso, forte repressão artística e cultural que fizeram com que vários de seus colegas fossem para o estrangeiro. O Brasil não o recebia bem, nem no âmbito pessoal. Oiticica virou até piada por conta do seu cabelo comprido, por exemplo, e ele, evidentemente, já não cabia e tampouco queria mais estar aqui. Nesse momento, escreve o texto Brasil diarréia, pelo qual deixa claro que o nacionalismo não lhe importa mais, tampouco ideologias de esquerda, muito menos de direita, que o moralismo burguês tomava conta do país. Então era preciso sair, era preciso continuar seu projeto artístico que priorizava a invenção, a experimentação, e o Brasil não lhe permitia isso.
Apesar de sua profunda contribuição e legado artístico e cultural, Hélio Oiticica não faz parte do imaginário social brasileiro como outros artistas mais conhecidos. Ele é considerado um artista estrangeiro em sua própria terra?
O que é ser estrangeiro em sua própria terra? Parece haver um paradoxo aqui porque, na década de 1960, por exemplo, o que o Hélio quer é justamente propor uma arte brasileira de vanguarda com características que colocam em xeque o peso cultural milenar dos europeus e as demandas norte-americanas. Há uma busca e uma vontade centrada em afirmar sua própria terra, o Brasil. Para isso, o que Oiticica faz é justamente trazer elementos da cultura brasileira para sua obra, como o samba, a comunidade, a terra, e não de forma inocente ou para construir um folclore, mas sempre de maneira a questionar as estruturas sociais e as forças atuantes.
Para continuar as transformações, em certa altura, mais para o final dos anos 1960, ele compreende que era preciso sair do próprio país, era melhor “pular fora” do que “participar no contexto imediato “policiado’”, como ele mesmo diz em alguns textos. Portanto, de alguma forma também podemos dizer que ele é um artista estrangeiro em sua própria terra, assim como grande parte dos artistas da contracultura, que queriam fugir de um policiamento “moralista-paternalista-reacionário” do Brasil da época.
Oiticica se considerava um anarquista. Como esse fato se manifestou em sua obra e trajetória?
O anarquismo do Hélio é, além de uma escolha própria, também uma herança familiar, pois seu avô José Oiticica foi um grande atuante anarquista brasileiro, e se manifesta de diversas formas tanto na sua vida quanto na sua obra. Na verdade, como um artista que manteve obra e vida completamente interligadas, não podemos sequer separar uma coisa da outra. Quando era criança, sua família optou pelo estudo domiciliar, pois não queriam compactuar com a educação do Estado. Então dá para ver que ele vem de uma família que prioriza a liberdade como vivência do cotidiano, o que não explica em absoluto sua tomada de posição, mas é mais um elemento para entendê-la.
Quando começa sua própria pesquisa artística, Hélio vai em direção a uma negação absoluta de toda a estética, as formas e o comportamento tradicionais do universo da arte. Se o anarquismo é a negação de todas as formas possíveis de governo e hierarquias, o que Hélio faz na sua obra é negar a própria ideia e conceito de arte estabelecidos, a ponto de desenvolver a ideia de “antiarte”.
Em Cosmococa (1973), galeria que reúne obras de Oiticica em parceria com o cineasta Neville D’Almeida e que hoje está em exposição no Inhotim em Minas Gerais, o público tem contato com diferentes ambientes que simulam efeitos causados pela cocaína. Como a obra se insere no contexto da contracultura, movimento tão marcante na época?
As Cosmococas fazem parte de um trabalho mais amplo do Hélio, intitulado Quasi Cinema, e sobre as quais se ouve falar muito pouco, principalmente pela relação da obra com a cocaína. Pensada quando o artista estava em Nova Iorque, a ideia da obra é possibilitar uma experiência de liberdade ao participador. A ideia aqui vai além da participação do público na obra, uma vez que não é preciso participar efetivamente, você pode simplesmente relaxar, contemplar, se deitar e ali ficar… É como a defesa do que hoje popularmente se chama de “ócio criativo”, mas que Hélio também conceituou tal ideia chamando-a de “crelazer”. Em relação ao contexto da contracultura, vemos que as Cosmococas são pensadas no contexto de uma Nova Iorque underground. Além do próprio período, o desejo era de que elas fossem realizadas fora de instituições tradicionais, como museus e galerias, então é preciso procurar outro espaço para a sua realização. São esses os elementos da obra, quais sejam a droga, o uso do espaço, a ideia de liberdade e a aversão à institucionalização, que se relacionam intrinsecamente com a contracultura, como todo o trabalho de Oiticica.
Daniel Pompeu é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp e bolsista do programa Mídia Ciência (Fapesp).