Por Tainá Scartezini
Arte: Yacunã
Acervo de museus são revisitados e problematizados em exposições colaborativas com artistas e coletivos indígenas
“Índios? Infelizmente, prezado cavalheiro, lá se vão anos que eles desapareceram. Ah, essa é uma página bem triste, bem vergonhosa da história do meu país. Mas os colonos portugueses do século XVI eram homens ávidos e brutais. Como reprová-los por terem participado da rudeza geral dos costumes? Apanhavam os índios, amarravam-nos na boca dos canhões e estraçalhavam-nos vivos, a tiros. Foi assim que os eliminaram, até o último”. Foi o que disse Luís de Sousa Dantas, outrora embaixador do Brasil na França, em conversa com Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês que lecionou na USP nos anos 1930, antes da chegada deste ao Brasil, conforme relata o próprio Lévi-Strauss em seu livro Tristes trópicos.
Entretanto, como Lévi-Strauss viria a descobrir pouco tempo depois em suas excursões etnográficas rumo ao Brasil central, ao lado da então esposa, Dina Dreyfus e do escritor Mário de Andrade, os índios ainda existem.
Passados quase cem anos do episódio e mais de 115 desde a criação da Pinacoteca do Estado de São Paulo, esta é a primeira vez na história da instituição que a Pina organiza uma exposição de arte exclusivamente indígena.
Véxoa: nós sabemos, em cartaz desde 31 de outubro, não está sozinha. Distante do coração de São Paulo, na zona oeste, o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP desde 2019 está com a exposição Resistência já! Fortalecimento e união das culturas indígenas Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena em cartaz. Ambas, além de exporem obras feitas por indígenas, foram também elaboradas em parceria com curadores indígenas.
Em Véxoa, as imponentes máscaras-roupas dos Waujá, povo alto-xinguano, usadas em rituais para representar os seres apapaatai, figuras assustadoras da floresta e dos rios, meio humanas, meio animais, assim como panelas de cerâmica, dois objetos tipicamente encontrados nas coleções etnográficas e arqueológicas, estão postos lado a lado com filmes, instalações e ilustrações de 23 artistas e coletivos indígenas de etnias diferentes.
Segundo a curadora da exposição, Naine Terena, doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e docente na Faculdade Católica de Mato Grosso, a exibição faz parte de um processo de reavaliação da Pinacoteca sobre seu próprio acervo. “Estamos há cerca de um ano e meio trabalhando nesta exposição. A Pinacoteca fez diversas ações no sentido de problematizar sua própria estrutura. Particularmente, eu já desenvolvia essa conversa com o diretor desde 2016, ocasião da Bienal de artes de SP. Em junho de 2019 surgiu o convite para fazer Véxoa, a partir de uma provocação que fiz à equipe de curadoria, durante a visitação ao acervo permanente. Onde estavam os artistas indígenas?”, diz.
De modo similar, fruto de um processo de dois anos de decisões e ações educativas, a exposição do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), Resistência já!, teve como objetivo proporcionar uma devolutiva aos povos indígenas cuja produção está resguardada pelo museu sobre o que foi feito com seus artefatos, bem como possibilitar que os próprios indígenas contassem suas histórias a respeito de seu passado e de seu presente. É o que afirma Marília Xavier Cury, docente pesquisadora do MAE e uma das organizadoras da exposição.
Parte do acervo do MAE, museu fundado em 1989 em função de uma separação entre o setor de arqueologia e etnologia e o Museu Paulista, é formado por coleções de procedência ambígua, isto é, cujos critérios de coleta não atendem mais o que se considera éticos. É o caso dos artefatos kaingang coletados no começo do século XX durante a abertura das estradas de ferro no oeste do estado de São Paulo, processo que resultou no extermínio por armas de fogo, envenenamento e epidemias de sarampo de muitos kaingangs, os quais ocupavam aquelas terras há mais de mil anos, afirma a pesquisadora. Por isso, com a exposição “queremos também a reconciliação, rever esse passado e tratar dele, cada uma dessas camadas de relações do passado mal resolvidas”, diz Marília, para quem “os museus pagam parte de sua dívida histórica com a reconciliação, reparação e colaboração”.
Em entrevista por telefone, Marília conta ainda que muitos dos objetos etnográficos que estão em museus ao redor do mundo, em particular os objetos de populações indígenas, mas não somente, foram saqueados ou tomados a partir de guerras e violações. “Essas coleções começaram a ter o caráter de troféu de guerra, da dominação do colonizador sobre o colonizado”, afirma.
No entanto, a doutoranda em antropologia com concentração em arqueologia na Universidade Federal do Pará (UFPA), Emilly Barbosa dos Santos, faz a ressalva de que os espaços museais são processos, estão em constante transformação. A “musealização”, isto é, os processos de aquisição, documentação, conservação, pesquisa e comunicação, entre outros, mudam com o tempo. Além disso, para a doutoranda é preciso compreender que os museus não são lugares de uma única narrativa, mas sim de diversidade cultural e de várias memórias. “É nesse contexto que os museus desenvolvem práticas compartilhadas e exposições participativas que trazem para dentro do museu outras interpretações, as quais podem desencadear ressignificações e reapropriações tanto do espaço como do acervo”, diz.
Para impedir a aquisição de bens culturais coletados durante conflitos ou de modo não-ético foram formuladas convenções internacionais, como a “Convenção da Unesco sobre meios para proibir e impedir a importação, a exportação e a transferência de propriedade ilícitas de bens culturais”, de 1970, a qual define bens culturais como “quaisquer bens que, por motivos religiosos ou profanos, tenham sido expressamente designados por cada Estado como de importância para a arqueologia, a pré-história, a história, a literatura, a arte ou a ciência”. Para Marília Cury, do MAE, esses mecanismos são muito importantes, pois “são um marco, uma referência entre o que é correto e o que é errado”.
Além dos mecanismos legais, nas últimas décadas foram iniciados processos de repatriamento ou restituição de bens culturais que, para Emilly Barbosa dos Santos, mais do que devolver algo a seu lugar de origem, são processos de negociação e disputa sobre o direito à memória e à propriedade de um patrimônio.
Um caso emblemático de repatriamento no Brasil foi o da machadinha krahô. A ferramenta cerimonial em formato de meia lua, coletada pelo antropólogo Harald Schultz, que reconheceu a importância etnográfica do artefato quando o viu nas mãos de um branco durante uma viagem na década de 1940 e a entregou ao Museu Paulista da Universidade de São Paulo, foi devolvida aos Krahô em 1986 após uma longa negociação com o museu. “A machadinha para os Krahô não é apenas um machado como qualquer outro, ela se constitui como um sujeito, ela desenvolve uma agência sobre esse grupo porque ela evoca cantos e conduz cantos, ela anima festas. Então, para o Krahô não faz sentido essa machadinha estar parada dentro de um museu”, diz Emilly.
Tais processos de restituições e de exposições colaborativas, para Marília Cury, “são a opção descolonial acontecendo dentro do museu”. Segundo a docente do MAE, “a relação entre povos indígenas e museus é antiga, tem mais de quinhentos anos, mas ela tem de se recolocar na atualidade, não pode ser mais uma relação de poder, tem de ser dialógica”.
Quanto à kyiré, como os Krahô chamam a machadinha, já passou por três guardiões desde que foi restituída. Embora os homens e os museus passem, ela continua animando as festas.
Tainá Scartezini é mestranda em antropologia pela USP e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.