Por Maria Clara Araújo dos Passos
foto: Juca Martins/Olhar Imagem. “Manifestação durante a reunião da SBPC, Salvador, BA, 1981”. Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp
Em um momento de emergência da decolonialidade enquanto projeto teórico-prático que apresenta para o Brasil e toda América Latina e Caribe novas condições de poder, saber e ser, a perspectiva negra decolonial brasileira[1] deve ser posicionada como uma agenda epistêmica que tem descolonizado nossas teorias e práticas educacionais.
A educação e o currículo são territórios de disputas contínuas[2]. Projetos como o Escola Sem Partido e os discursos em torno da “ideologia de gênero” nos mostram como tem sido articulada uma resistência colonial a um currículo decolonial, como pontuou Nilma Lino Gomes. Projetos antagonistas têm disputado as representações, os sentidos e os saberes que permeiam o fazer educativo nas escolas e universidades brasileiras.
Do lado de cá, as disputas realizadas pelo movimento negro tensionam há décadas por uma educação que rompa com o epistemicídio. Sueli Carneiro[3], nossa mestra, afirmou que as trajetórias de educadoras/es e educandas/os negras/os nas salas de aula são permeadas pelo epistemicídio. Por epistemicídio compreendemos a negação ontológica e a desqualificação epistêmica[4] vivida pela população negra nas escolas e universidades diante de cânones orientados pelo eurocentrismo e pelo apagamento de outras cosmovisões.
Os currículos colonizados, ao estarem comprometidos com o epistemicídio, têm silenciado e ocultado o emergir dessas outras cosmovisões em nossas práticas pedagógicas e bibliografias. Frente a esse quadro, a intelectualidade negra insurgente no Brasil tem tensionado a educação, ao articular uma afirmação coletiva em torno de um projeto decolonial desde o lugar de fala[5] da população negra brasileira.
Assim como outros movimentos sociais no Brasil, o movimento negro compreendeu a necessidade de intervir na educação. Houve o reconhecimento de que a educação ocupa um lugar significativo para a construção do antirracismo no Brasil, uma vez que as escolas e universidades incidem objetivamente na construção e reconstrução das identidades sociais e das nossas cidadanias.
O movimento negro no Brasil direcionou muitas de suas indagações e proposições à educação, tendo como objetivo transformar as políticas educacionais e os currículos.
A histórica promulgação da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, concretizou o que movimento negro, enquanto ator político e educador, acordou como ação institucional necessária em oposição ao silêncio institucional histórico do Estado brasileiro acerca do racismo[6].
Apesar das contundentes ponderações realizadas por diferentes atrizes/atores no que tange sua aplicação na sala de aula, e o ainda persistente apagamento das/os intelectuais negras/os nos currículos de formação de educadoras/es, a Lei 10.639/2003 – que é posteriormente atualizada e se torna a Lei 11.645/2008 – representa um marco político, epistemológico e pedagógico para a educação brasileira, uma vez que instituiu a cosmovisão afro-brasileira, africana e indígena como conhecimentos necessários para a formação das/os sujeitas/os brasileiras/os.
Enquanto fatos políticos, as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 mostram como uma agenda epistêmica descolonizadora tem inquirido o Estado, a sociedade brasileira e a educação. A perspectiva negra decolonial brasileira, segundo Nilma Lino Gomes (2018), tem protagonizado e articulado ações que buscam romper com a colonialidade do saber, visto que a mesma, ao instituir o saber eurocêntrico como universal, tem relegado outros saberes ao ocultamento:
Caminhar em uma construção coletiva de pedagogias e currículos decoloniais, nos requer, enquanto intelectuais insurgentes, um trabalho que tem como princípio desafiar as estruturas modernas/coloniais (…) propor uma crítica decolonial ao currículo, tendo em mente que sujeitos foram usurpados do direito de fala, é constituir novas matrizes políticas, epistêmicas e éticas, tendo como escopo um quadro discursivo mais plural, que disputa os sentidos atribuídos ao que foi instituído como verdades.[7]
A perpetuação de cânones hegemônicos tem sido confrontada ao passo em que um enfrentamento político-epistemológico é realizado por negras e negros comprometidas/os com deslocamentos e insurgências decoloniais[8] sob o chão das escolas e universidades.
Comumente, quando discutindo sobre decolonialidade, o grupo modernidade/colonialidade ocupa um lugar central nas bibliografias. No entanto, compreendemos que muitas vezes as contribuições de intelectuais negras/os brasileiras/es estão sendo ignoradas.
Ainda que o pensamento decolonial elenque como um de seus pontos centrais o rompimento com o silenciamento imposto às inteligências, expertises e epistemologias de pessoas racializadas, o que é visto no Brasil são pessoas brancas mobilizando a decolonialidade, mas mantendo certas feridas epistêmicas abertas.
Por isso, posicionar a perspectiva negra decolonial brasileira como uma agenda epistêmica que tem descolonizado nossas teorias e práticas educacionais diz respeito a um giro antirracista no interior da teoria decolonial.
É basilar para o projeto teórico-prático decolonial, enquanto levante insurgente na América Latina e Caribe, confrontar o silenciamento epistemológico direcionado aos corpos racializados.
Por isso, nos cabe o dever de evidenciar as proposições de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Claudia Miranda, Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes, Petronilha Gonçalves, Antônio Guerreiro Ramos, entre outras/os atrizes e atores do movimento negro no Brasil, como responsáveis por uma ação e reflexão que se propôs a desmantelar a superioridade euro-cristã[9] reproduzida pela educação brasileira.
Alguns fragmentos do presente artigo foram outrora desenvolvidos no breve ensaio “Desconfiem de quem se afirma decolonial, mas não rompe com o epistemicídio!”, publicado em 15 de julho de 2020 nas Blogueiras Negras.
Maria Clara Araújo dos Passos é graduanda em pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e cursa a especialização em estudios afrolatinoamericanos y caribeños pela CLACSO/FLACSO. e-mail contatomariaclaraaraujo@gmail.com
[1]Gomes, Nilma Lino Gomes. “O movimento negro e a intelectualidade negra descolonizando os currículos”. In: Bernardino-Costa, Joaze; Maldonado-Torres, Nelson, Grosfoguel, Ramón (orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 223-247.
[2]Arroyo, Miguel. Currículo, território em disputa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
[3] Carneiro, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. 339 f. (doutorado em filosofia da educação) – FE/USP, São Paulo, 2005.
[4]Bernardino-Costa, Joaze; Grosfoguel, Ramón; Maldonado-Torres, Nelson. “Introdução: Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico”. In: Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, p. 9-27.
[5] Ribeiro, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
[6] Gomes, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
[7] Passos, Maria Clara Araújo dos. “O currículo frente à insurgência decolonial: constituindo outros lugares de fala”. Cad. Gên. Tecnol., Curitiba, v.12, n. 39, p. 196-209, jan./jun. 2019.
[8] Miranda, Claudia. “Das insurgências e deslocamentos intelectuais negros e negras: Movimentos sociais, universidade e pensamento social brasileiro, séculos XX e XXI”. Revista da ABPN, v. 10, n. 25, p. 329-345, 2018.
[9] Gonzalez, Lélia. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, no. 92/93, p. 69-82, 1988.