Editorial da revista Nature publicado em 20 de junho de 2020
É preciso avaliar totalmente uma proposta para uma meta única, simples, equivalente à meta climática de 2°C
No próximo ano todos os olhares estarão voltados para Kunming, na China, enquanto se retomam as conversações sobre um novo conjunto de metas globais para proteger a biodiversidade. Tais metas se fazem muito necessárias, pois a maioria das 20 existentes, estabelecidas em 2010 em Aichi, no Japão, não conseguiram causar impacto na taxa de perda de biodiversidade.
Em maio de 2020, uma equipe de pesquisadores propôs a criação de um número geral, sugerindo que os países deveriam ter como objetivo manter as extinções “bem abaixo” de 20 espécies conhecidas a cada ano em todo o mundo [1]. Em termos de biodiversidade, esse número seria o equivalente à meta climática de 2°C: simples, mensurável, que pode ser compreendida igualmente pelo público e pelos políticos.
A proposta de Mark Rounsevell no Instituto de Tecnologia de Karlsruhe na Alemanha e seus colegas pretende quebrar quase duas décadas de fracasso na política de biodiversidade global e no estabelecimento de metas – a Aichi Targets 2010 substituiu uma meta anterior fracassada de diminuir a taxa de perda de biodiversidade que os países estabeleceram para si mesmos em 2002. E a ideia está ganhando força.
Em uma entrevista para a revista Nature, Elizabeth Maruma Mrema, a nova chefe da Convenção sobre Biodiversidade das Nações Unidas, reconheceu que seria difícil estabelecer uma única meta porque a biodiversidade é multifacetada. Porém, se a comunidade conseguir estabelecê-la, ela acrescenta: “Será o melhor resultado possível porque então se tornará como uma canção que todos vão cantar e com a qual todos podem se alinhar para transmitir a mensagem fundamental”.
Uma meta para limitar as extinções de espécies não é uma ideia nova e merece ser considerada com atenção. A viabilidade e as consequências de tal meta devem ser rigorosamente avaliadas pelo próprio órgão consultivo científico da convenção e pela Plataforma Intergovernamental Político-Científica sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES, do inglês Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services), da mesma forma que as métricas climáticas são avaliadas pelos consultores da ONU em ciência climática, incluindo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.
Há muitas questões a serem exploradas pelos pesquisadores que trabalham com a biodiversidade. Por exemplo, como uma meta de 20 extinções por ano – em todas as plantas, animais e fungos – combina com a própria avaliação de biodiversidade da IPBES, que afirma que cerca de um milhão de espécies estão em risco de extinção? Vinte extinções por ano – de quase dois milhões de espécies conhecidas – é dez vezes maior do que a taxa de extinção de base de duas por ano que existia antes de os seres humanos terem contribuído de forma notável para as extinções. Mas é consideravelmente menor do que as estimativas atuais de extinções de espécies, que são mais de mil vezes a taxa de extinções de base.
Outras questões incluem como escolher quais espécies conservar e quem deve fazer tais escolhas. Será que um único número daria igual peso a todas as espécies ameaçadas, ou será que as espécies que são mais importantes para a subsistência e para o funcionamento do ecossistema deveriam ter prioridade para proteção? Como os autores salientam, é possível que a perda da biodiversidade resulte em grandes mudanças prejudiciais à vida na Terra sem que nenhuma espécie se extinga. E em que momento seria declarada a extinção, tendo em vista que muitas vezes há um intervalo entre a extinção de uma espécie e seu registro como extinta na Lista Vermelha mantida pela União Internacional para a Preservação da Natureza?
Considerando-se que a estimativa mais baixa da IPBES para espécies vegetais e animais ainda não identificadas é de 8,1 milhões de espécies, quais são as implicações para as espécies que ainda não foram descritas? Se os formuladores de políticas concentrarem recursos na preservação de espécies conhecidas, que riscos podem existir para as espécies em partes do mundo – como o ambiente marinho – em que o conhecimento da biodiversidade é insuficiente, e que enfrentam um desenvolvimento insustentável contínuo?
E quais seriam as implicações de uma meta única para os outros objetivos da convenção? A preservação das espécies é uma das três metas, além de garantir que a biodiversidade seja utilizada de forma sustentável e que os benefícios (tais como produtos comerciais) sejam compartilhados de forma justa, para que ninguém – por exemplo, as comunidades indígenas – seja deixado de fora.
A biodiversidade é essencial para a prosperidade econômica, alimentação e saúde humana, e os pesquisadores estão empenhados em salientar que a criação de uma meta de extinção não deve desviar a atenção da necessidade de os governos criarem metas e políticas nacionalmente relevantes. Eles também defendem a provisão de financiamentos para ajudar os países financeiramente pobres, mas ricos em biodiversidade, a atingirem seus objetivos.
Com certeza, uma meta única, como a da mudança climática, seria mais simples de ser comunicada do que as metas de Aichi. E os autores têm razão em reconhecer que, em última análise, a perda de biodiversidade continua porque as decisões de políticas públicas – por exemplo, decisões que levam ao crescimento econômico industrial – não têm contabilizado os custos da substituição dos serviços que as espécies e os ecossistemas fornecem aos seres humanos.
Mas eles também saberão que, embora a meta de manter as temperaturas globais dentro de 2°C dos níveis pré-industriais tenha sido acordada pelos membros da convenção climática da ONU, esse número foi submetido a um minucioso processo de avaliação de pesquisa por um amplo grupo de pesquisadores do IPCC antes de ser adotado.
Qualquer proposta para considerar uma única meta numérica para a biodiversidade precisa ser avaliada de forma semelhante. A IPBES – trabalhando com os próprios consultores científicos da convenção da ONU sobre biodiversidade – deve ser chamada para prestar assessoramento. Para que isso aconteça, um pequeno grupo de governos precisa fazer um pedido formal de assessoramento científico para a convenção da ONU, e devem fazer isso sem demora.
Nature 583, 7-8 (2020)
doi: 10.1038/d41586-020-01936-y
Crédito da foto: Nichole Sobecki/The Washington Post/Getty