Por Braulio Ferreira de Souza Dias
Existe um inequívoco e comprovado consenso científico internacional e nacional sobre o aquecimento global causado pela emissão antrópica de gases de efeito estufa causado pela queima de combustíveis fósseis e pelo desmatamento e queimada das florestas e outras formas de vegetação.
Aqueles que negam este consenso ou são leigos que desconhecem as evidências científicas ou são leigos em climatologia que defendem os interesses da indústria de petróleo e carvão ou daqueles que promovem a grilagem das terras públicas e a exploração ilegal da madeira – são conhecidos como os “mercadores da dúvida” (Oreskes & Conway, 2010) por sua estratégia de se apresentarem falsamente como especialistas e proporem que não há consenso científico – e que seria precipitado a adoção de políticas públicas e regulamentação para controlar o aumento da emissão de gases de efeito estufa.
Segundo o IPCC a temperatura média na Terra já está hoje 1 grau Celsius acima da temperatura média antes da Revolução Industrial e vem aumentando a cada década causando derretimento dos glaciais, elevação do nível do mar, aumento da frequência e intensidade de furações, das secas e da intensidade e concentração das chuvas em diferentes regiões do globo.
Estudos (por exemplo Marengo, 2007) detectaram nos últimos 40 anos um claro padrão de aumento da precipitação e da temperatura mínima noturna nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, aumento da frequência e duração de secas em todas as regiões do Brasil e com crescentes impactos sobre a biodiversidade.
Os desmatamentos, as queimadas e demais usos da terra constituem a maior parte da emissão de gases de efeito estufa no Brasil e demais países em desenvolvimento. Tais usos da terra também promovem a conversão, degradação e fragmentação dos ecossistemas naturais constituindo a principal causa da perda da biodiversidade globalmente e no Brasil.
A cada ano os impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade aumentam e o efeito sinérgico juntamente com desmatamento, queimadas e demais usos insustentáveis da terra intensificaram as taxas de declínio populacional e extinção das espécies (ver informações e referências em Dias 2017 e 2019).
Há uma percepção entre os cientistas de que os crescentes impactos antrópicos sobre a biodiversidade poderão ocasionar o sexto evento global de extinções em massa – o último ocorreu a 66 milhões de anos atrás e causou a extinção de grupos inteiros de organismos, incluindo os dinossauros.
Relatório lançado pelo IPBES em maio do ano passado alertou sobre o risco de extinção de mais de um milhão de espécies de plantas e animais nas próximas décadas e estudos paleontológicos sobre os eventos de extinção em massa ocorridos no passado comprovaram que a recuperação da biodiversidade demorou em cada caso alguns milhões de anos!
Por outro lado, conservação e restauração dos ecossistemas além de beneficiar a biodiversidade contribui significativamente para a mitigação do efeito estufa pela redução da emissão de gases de efeito estufa e para o sequestro do carbono da atmosfera e sua incorporação na biomassa vegetal.
Adicionalmente, as ações de conservação e restauração dos ecossistemas e restauração de corredores ecológicos permitem às espécies se adaptarem às mudanças climáticas e constituem uma das mais importantes estratégias que temos para o planeta (adaptação baseada nos ecossistemas).
O papel das políticas públicas
Sem políticas públicas defendendo os interesses coletivos prevaleceria a “tragédia dos bens comuns” (ver Hardin, 1968) que levaria ao esgotamento dos recursos naturais e da natureza, com graves impactos negativos para as gerações presente e futuras.
O antigo código florestal foi estabelecido em 1934 com este propósito e foi revisado em 1965 e em 2012, quando foi aprovado pelo Congresso Nacional na forma da Lei de Proteção da Vegetação Nativa após exaustivas e abrangentes discussões, estabelecendo a exigência da preservação e conservação da vegetação nativa nas propriedades privadas.
As bases globais para uma agenda ambiental responsável foram estabelecidas pelos princípios da conferência da ONU organizada em Estocolmo em 1972, à qual seguiram-se a criação em 1973 do PNUMA e de agências ambientais na maioria dos países, inclusive no Brasil com a Sema em 1973, e a aprovação em 1981 no Brasil da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente sob a liderança do saudoso dr. Paulo Nogueira-Neto, primeiro ministro de meio ambiente do Brasil.
A Constituição Federal de 1988 assegurou a prevalência dos interesses coletivos: o artigo 170 estabeleceu a defesa do meio ambiente e a função social da propriedade como princípios a serem observados nas atividades econômicas no país; o artigo 186 estabeleceu que a função social da propriedade só é cumprida com a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; e o artigo 225 reconheceu que todos os cidadãos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
A Constituição Federal de 1988 incumbe ao poder público: 1) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; 2) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; 3) definir, em todas as unidades da federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; 4) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; 5) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; 6) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; e 7) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies.
Portanto, não procede a alegação de representantes do poder executivo do governo federal de que o governo não tem responsabilidade pelos desastres ambientais que assolam os país!
As políticas públicas do Brasil apresentaram avanços e resultados significativos nos últimos 30 anos: 1) redução das taxas de desmatamento na Amazônia em mais de 80% entre 2005 e 2015; 2) ampliação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação em mais de 100% nas áreas continentais e mais de 17 vezes na zona marinha; 3) ampliação significativa do esforço de prevenção de extinções de espécies ameaçadas; 4) ampliação significativa da pesquisa sobre biodiversidade e construção de bases de dados de acesso aberto; 5) o 6º Relatório Nacional para a CDB submetido em novembro de 2019 constatou que metade das 20 Metas Nacionais de Biodiversidade até dezembro de 2018 estavam com perspectiva de alcance pleno (ver Dias 2020 e https://www.cbd.int/doc/nr/nr-06/br-nr-06-en.pdf).
Retrocessos das políticas públicas do Brasil
1) Orçamento dos órgãos públicos de meio ambiente declinaram significativamente a partir de 2015 com a recessão econômica e efetivo de analistas ambientais no Ibama e no ICMBio caiu pela metade; 2) governo federal extinguiu em maio de 2019 a maioria dos órgãos colegiados ambientais, deixou desocupados até recentemente muitos cargos de gestão no MMA e nomeou pessoas sem qualificação e experiência em gestão ambiental para os cargos de comando do MMA, Ibama e ICMBio; 3) governo federal deixou de liderar e coordenar as ações de respostas aos grandes desastres ambientais ocorridos desde o início de 2019; 4) governo federal deixou de tomar em tempo hábil medidas preventivas e de fiscalização que poderiam ter evitado ou reduzido significativamente o aumento de desmatamento e queimadas em quase todos os biomas brasileiros; 5) governo federal bloqueou o uso dos substantivos recursos financeiros disponíveis no Fundo Amazônia e no Fundo Clima em prol do meio ambiente.
Conclusões
1) São evidentes os retrocessos na implementação das políticas ambientais no Brasil no atual governo; 2) cortes orçamentários ocorridos a partir do início da atual recessão econômica foram em parte compensados até 2018 com o uso apropriado de recursos de doação internacional e mecanismos de compensação ambiental; 3) não é apropriado e ético o governo federal usar os avanços ocorridos nos últimos 30 anos até 2018 nas políticas públicas ambientais para esconder as falhas e fracassos da atual gestão; 4) os danos ao meio ambiente e à imagem do Brasil no exterior causados pelas omissões e incompetências do atual governo federal são muito significativos e infelizmente deverão ter efeitos duradouros; 5) não é aceitável ouvir altos dirigentes de nosso país afirmarem que os incêndios ocorridos este ano e no ano passado em todos os biomas e particularmente na Amazônia e no Pantanal têm causa natural já que durante a seca não tem raios. Quando se encontra um jabuti em cima de uma árvore ninguém pensa que ele subiu na árvore – da mesma forma, quando constatamos queimadas na floresta úmida amazônica sabemos que está queimando porque alguém desmatou e tacou fogo.
Recomendações
1) Os recursos do Fundo Clima devem ser utilizados prioritariamente para proteger e restaurar as florestas e demais formas de vegetação nativas; 2) os recursos do Fundo Amazônia devem ser desbloqueados imediatamente; 3) os colegiados ambientais devem ser restabelecidos imediatamente; 4) os cargos de direção do MMA, Ibama e ICMBio devem ser ocupados por profissionais com qualificação e experiência comprovadas na gestão ambiental; 5) os programas de prevenção e combate ao desmatamento na Amazônia e no Cerrado devem ser reativados imediatamente; 6) o executivo do governo federal deve ser instado a cumprir e fazer cumprir as diretrizes ambientais da Constituição Federal de 1988 e das leis ambientais e coibir imediatamente com vigor as ações ilegais de invasão de terras públicas, desmatamento ilegal, queimadas ilegais e garimpos ilegais na Amazônia e demais biomas brasileiros.
Braulio Ferreira de Souza Dias é professor de ecologia da Universidade de Brasília (UnB), presidente do conselho global da Birdlife International, presidente da Fundação Pró-Natureza (Funatura), ex-secretário nacional de Biodiversidade e Florestas (2010-2011) e ex-secretário executivo da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (2012-2017)
Nota
Este artigo reproduz os argumentos que apresentei em meu depoimento na audiência pública no Supremo Tribunal Federal presidida pelo excelentíssimo ministro Luís Roberto Barroso, ocorrida em 22 de setembro de 2020, sobre Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 708 para debater as consequências da não implementação do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e de políticas públicas ambientais no atual governo federal.
Referências
Dias, B.F.S., 2017. “Biodiversidade, por que importa!”. Cause magazine, Rio de Janeiro, número 5 (tema Nature): pp.94-100. https://www.cause-magazine.com/conteudo/2017/8/15/biodiversidade-por-que-importa-?rq=braulio%20dias
Dias, B.F.S., 2019. “Biodiversidade: uma propriedade única do planeta Terra”, pp.164-177 In: Klabin, Israel (organizador editor), 25+25 Sustentabilidade: o estado da arte. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial, 280p.
Dias, B.F.S., 2019. Sumário para tomadores de decisão. Biodiversidade e serviços ecossistêmicos: desafios e oportunidades para o Brasil. Brasília: Cooperação Técnica Alemã – GIZ, 56p.
Dias, B.F.S., 2020. The slow but steady progress in the implementation of the biodiversity agenda. IUCN World Commission on Environmental Law. 31 July 2020 https://www.iucn.org/commissions/commission-environmental-law/news
Hardin, G., 1968. “The tragedy of the commons”. Science 162: 1243-1248 disponível online em http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.html [tradução ao português pelo professor José Roberto Bonifácio da Universidade Gama Filho em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3203283/mod_resource/content/2/a_trag%C3%A9dia_dos_comuns.pdf]
Marengo, J. A., 2007. Mudanças climáticas globais e seus efeitos sobre a biodiversidade. 2ª edição. Brasília: Ministério do Meio Ambiente (série Biodiversidade, 26), 212 p. https://www.mma.gov.br/publicacoes/biodiversidade/category/142-serie-biodiversidade.html?start=20
Oreskes, N. & Erik M. C., 2010. Merchants of doubt. New York: Bloomsbury Press, 355p. (recomendo o excelente filme legendado em português dirigido por Robert Kenner, 2014. Mercadores da dúvida. Sony Pictures Classics, 96 minutos. Disponível na internet Archive: https://archive.org/details/Mercadores.da.Duvida-Documentario.2014)