Por Rafael Evangelista
Enquanto o totalitarismo transforma a alma dos sujeitos, seu motor interior, o “instrumentarismo” trata os indivíduos como máquinas informacionais ou como animais em experimentos do behaviorismo radical: estímulos elaborados para a obtenção de determinadas ações. O modo de atuação do instrumentarismo envolve um conjunto complexo e variado de influências sutis, pouco ou nada perceptíveis, que operam sobre nós no contato com o digital. Assim, a saída pela ruptura não ocorreu: perto dos cem mil mortos, o Brasil empilha corpos e acumula indiferença frente àqueles que têm que se expor a níveis variados de risco para continuar sobrevivendo.
Logo após a chegada do novo corona vírus no Brasil, escrevi um texto, publicado aqui na ComCiência, no dossiê Depois do Futuro, sobre as disputas tecnopolíticas que se colocavam a partir do contexto das medidas emergenciais de combate e sobrevivência à pandemia. Basicamente eu descrevia três correntes políticas em disputa: a da exceção, tentando fingir que se trata apenas de um interregno rápido da normalidade; a da aceleração, tentando se aproveitar das medidas emergenciais para empurrar soluções e tecnologias ligadas em especial ao capitalismo de vigilância; e uma terceira, a da ruptura, que vê na tragédia a consequência de um processo mais amplo de aprofundamento das injustiças e da desigualdade. Superar a crise de verdade requereria então transformações sociais e econômicas mais profundas, que nos aproximassem como humanidade, ainda que temporariamente distantes enquanto corpos. Como escrevo sempre de uma maneira posicionada – afinal, só se pode ver o mundo a partir de um lugar –, com minhas afinidades políticas expostas me coloquei junto ao grupo da ruptura e apontei que qualquer desenrolar futuro derivaria da reação social frente à materialidade do isolamento e das mortes.
Pois falhamos miseravelmente!
Batendo os cem mil mortos, o Brasil empilha corpos e acumula indiferença frente àqueles que têm que se expor a níveis variados de risco para continuar sobrevivendo. O auxílio emergencial, fruto de pressão parlamentar, chegou só a uma parcela daqueles que precisam, e milhões devem ser jogados na incerteza assim que for extinto. Ministros e interinos militares se sucederam e a expectativa de uma política de enfrentamento da doença séria, científica e coordenada nacionalmente virou desalento. Estacionamos nas mil mortes diárias e, a não ser pelo uso de máscaras e o home office de alguns, parece que nada está acontecendo – até o futebol voltou! Explodem as lives, multiplicam-se os tuítes, novos “influenciadores” ganham fama e patrocínio, mas as mortes parecem não gerar indignação proporcional.
Com certeza há um ambiente histórico de desconfiança com a política e uma sensação de impotência frente a uma sucessão de golpes e estripulias jurídico-institucionais. Somam-se a isso as próprias condições de imobilidade e de veto a aglomerações da pandemia, ainda que as manifestações heroicas nos Estados Unidos contra o racismo e a violência policial sejam um belíssimo contra-exemplo de que é possível sim ser mais veemente na demonstração de indignação.
Não é o caso de atribuir a passividade exclusivamente às distrações eletrônicas. Mas quero aqui lembrar de alguns conceitos, os quais podem ajudar a iluminar processos sociais relativamente novos e que oferecem uma chave possível de entendimento sobre o que tem nos mobilizado ou desmobilizado nessa passividade cúmplice. Como aceleração e exceção têm se combinado para, à moda do narrado por Lampedusa em O Leopardo, tudo mude para ficar como está.
Entre a economia da atenção e o capitalismo de vigilância
Comentei acima como a corrente da aceleração está diretamente imbricada no capitalismo de vigilância (Zuboff, 2018). Este é um conceito que descreve um novo modelo de negócios, hoje dominante nas principais e bilionárias empresas de tecnologia da informação. Unindo as tecnologias do Big Data e as práticas de vigilância informática massiva, ele se faz da coleta, extração e análise de dados de tudo e de todos (pensemos na já presente Internet das Coisas, a IoT). Com esses dados e metadados, o capitalismo de vigilância produz previsões de comportamento, sociais e individuais, e práticas de modificação ou alteração de comportamento. O objetivo último são os lucros e um controle dos mercados que só a previsibilidade total pode oferecer. É um modelo de negócios já presente mas com um olhar, e investimento em tecnologias, voltado para o futuro.
O capitalismo de vigilância é mais amplo do que a economia da atenção e a engloba, embora os dois conceitos não tenham sido teorizados em conjunto de maneira academicamente sistemática.
A ideia da atenção do consumidor como uma mercadoria com valor de mercado pré-data a emergência da web (a parte que navegamos da Internet). Surge como uma indagação sobre o valor da atenção da audiência a comerciais, que é capturada a fazer circular mais as mercadorias ao assistir propagandas na televisão (Jhally e Livant, 1986). O mesmo vale para as notícias nos jornais em papel, é a atenção do leitor, seu olhar, que é o objeto que aquelas palavras impressas buscam capturar. E o que vai sustentar financeiramente tanto a impressão das palavras como o processo de trabalho envolvido na apuração das informações pelo repórter é o eventual desvio desse olhar para os anúncios que circundam a notícia.
Quando toda a produção midiática é jogada para a Internet, inclusive o jornalismo, é para lá que se desvia a nossa atenção. Os diversos dispositivos conectados à Internet se tornam o lugar para onde se direciona o nosso olhar e atrás dele vão os anúncios. Porém a atenção na Internet não se restringe ao olhar, ela se multiplica em engajamento. O usuário de Internet não é um mero leitor, ele pode repassar a matéria jornalística a outros (compartilhar), pode comentar a notícia, pode interagir com ela avaliando-a (estrelinha, coraçãozinho, joinha). Mais do que isso, ao avaliar ele interfere em algoritmos que vão governar a própria distribuição daquele pedaço de informação.
Uma pesquisa, muito pertinente para o momento, sobre sensacionalismo e o vírus da Zica nos informa um pouco sobre a dinâmica entre sensacionalismo e engajamento. Os autores (Ali e outros, 2019) investigaram usuários do Facebook relacionando o comportamento destes (responder, compartilhar, avaliar) a notícias sensacionalistas, de fontes noticiosas ou não. Quando o conteúdo transmite medo, até um certo nível o engajamento aumenta e sobe a comunicação interpessoal. Mas quando o nível de medo é muito grande, as pessoas podem ter comportamentos defensivos, de desatenção ou negação. O sentimento de raiva, por outro lado, atenua a percepção de risco e leva a menos cuidados.
Com a notícia sendo distribuída nas plataformas, o eixo de poder se desloca das empresas de mídia para as empresas de redes sociais (Ekström e Westlund, 2019), mais especificamente para como essas empresas contabilizam a interação entre leitores e notícias. Quem organiza a distribuição, gerencia e mensura como os conteúdos se espalham. Se já se cogitava afirmar que assistir comerciais na TV correspondia a um trabalho, na era da Internet esse trabalhador ganha novas tarefas, na base da nova fábrica informacional.
Mas isso está só na superfície, ou no que nos é mais aparente. Quando examinamos além é que a relação entre capitalismo de vigilância e economia da atenção ganha mais tração. Ao contabilizar as ações de seus usuários, as plataformas não somente fazem uso econômico dessa sua ação momentânea, ou seja, o tempo que alguém passa em determinado link, o quantas vezes repassa aquilo para diferentes amigos ou como ele avalia aquilo que leu. As plataformas acumulam aí dados sobre os próprios usuários, seus gostos, suas fragilidades (aquela fofoca que roubou sua atenção no meio do expediente), suas conexões pessoais. É um esquadrinhamento, uma produção de transparência, dos indivíduos mas também de suas relações sociais.
Engajamento e atenção são instrumentais para ambos, para a economia da atenção e para o capitalismo de vigilância, mas este último opera também com capturas mais passivas. O celular no bolso enquanto fazemos compras informa à empresa a que lojas damos preferência. O relógio que mede o seu batimento cardíaco vai gerar dados que as empresas vão relacionar com o perfil de milhões de usuários e disso vão se depreender informações sobre saúde que poderão ser usadas por empresas de seguros ou pela indústria farmacêutica.
Enquanto conceitualmente a ideia de economia da atenção mira nos olhos e nas ações dos indivíduos, que viram moeda de troca no mercado, o conceito de capitalismo de vigilância atrela isso a um processo mais insidioso de conhecimento sobre nós e sobre o social (a previsão de ações) somados a uma interferência direta sobre os indivíduos (as operações de mudança ou condução de comportamento).
Um novo poder
Ao formular a ideia de capitalismo de vigilância, Shoshana Zuboff o liga diretamente à emergência de uma forma específica de poder, o poder instrumentário, o qual é comparado com o totalitarismo, em sua virulência, mas dele diferenciado. Enquanto o totalitarismo operaria na transformação da alma dos sujeitos, de seu motor interior (pensemos em como Winston Smith, em 1984, é submetido a diversos processos de re-educação), o instrumentarismo atua tratando os indivíduos como máquinas informacionais ou como animais em experimentos do behaviorismo radical. São estímulos elaborados para a obtenção de determinadas ações.
O modo de atuação do instrumentarismo envolve um conjunto complexo e variado de influências sutis, pouco ou nada perceptíveis, que operam sobre nós no contato com o digital. Zuboff cita como um dos exemplos o jogo para celulares PokemonGo, que também serve para conduzir o fluxo de jogadores para as proximidades de determinadas lojas. Ela também fala sobre como redes como o Facebook, ao expor e facilitar a comparação entre indivíduos, fomenta um processo de extensão ou regressão a comportamentos adolescentes, quando em busca de uma identidade individual acabamos replicando gostos e comportamentos do círculo próximo de amigos.
Com seus likes e ranqueamentos numéricos, as redes sociais colocaram parte substancial dos formadores de opinião, agora transformados em “influenciadores”, em plataformas comparativas e competitivas. Os indivíduos são “instrumentados” a buscarem o máximo de atenção e engajamento para si – e, em decorrência, para a plataforma – de modo a maximizarem seu bem-estar, seja financeiro ou psicológico.
A ema e a cloroquina
Talvez esse tipo de instrumentação maquínica, em favor da atenção individual e ao assunto “do momento” – que chega a corresponder ao ciclo de um dia, mais rápido do que a bicada de uma ema –, ajude a explicar o fracasso dos atores sociais que postulam um momento de ruptura em fazer avançar sua agenda. Nos tornamos reféns da arena diária de maximização dos likes para fazermos acontecer a mobilização pública em torno de políticas consistentes e científicas de combate ao novo Corona e em favor de uma renda básica de cidadania permanente, por exemplo.
Já os proponentes da aceleração e da exceção, até o momento, conseguiram fazer convergir seus objetivos. Em um intervalo de meses, tecnologias que até então vinham sendo adotadas com mais cautela e cuidado, sendo discutidas em suas vantagens e prejuízos, passaram a ser adotadas em velocidade emergencial. Pensemos no ensino a distância, que vem sendo utilizado desde o ensino fundamental ao superior, sem combinação com atividades presenciais. A ânsia em nos enganarmos que este momento seria breve (uma exceção), levou escolas a adotarem gambiarras educacionais como práticas educativas que nos servem sem maior discussão. Soluções ruins, e que fortalecem o poder instrumentário ao transformarem o professor em YouTuber, que parecem ter vindo pra ficar. E dá-lhe ficar competindo pela atenção de alunos com a última notificação que acabou de pingar no celular.
A exceção se torna permanente, acelerada por novas tecnologias combinadas com velhas práticas de exploração. Os entregadores de comida seguem arriscando suas vidas, em cima de uma moto que precisa chegar rápido ou do contato com as lojas que o cliente não pode fazer. O trabalho precário sustenta o home office “consciente” do executivo, que de quebra não se desloca e não polui o ambiente com sua SUV. As domésticas já voltaram ao trabalho. Em alguns países, as tecnologias digitais de rastreamento de contato vigiam deslocamentos e exames, e buscam minimizar o risco de contaminação, já que a produção não pode parar, mesmo em tempos de exceção.
No Brasil, o auxílio emergencial é dosado na medida, nem muito pouco que produza revolta, nem muito alto que diminua o fluxo de mão de obra barata. De quebra, ajuda a buscar a mítica imunidade de rebanho. Quando os descartáveis já tiverem feito o seu papel o mundo parecerá mais seguro a todos os outros. Nada disso é exatamente novo ou desconhecido. E não é que não nos incomode ou não queiramos afirmar a urgência da ruptura e produzir mudanças. De fato o presidente mostrando cloroquina pra ema é ao mesmo tempo patético e muito engraçado, eu preciso subversivamente compartilhar.
Rafael Evangelista é antropólogo, pesquisador do Labjor e professor do programa de pós-graduação em Divulgação Científica e Cultural da Unicamp. Autor de Para Além das Máquinas de Adorável Graça: cultura hacker, democracia e cibernética
Bibliografia
JHALLY, Sut; LIVANT, Bill. Watching as Working: The Valorization of Audience Consciousness. Journal of Communication, v. 36, n. 3, p. 124–143, 1986.
EKSTRÖM, Mats; WESTLUND, Oscar. The Dislocation of News Journalism: A Conceptual Framework for the Study of Epistemologies of Digital Journalism. Media and Communication, v. 7, n. 1, p. 259–270, 2019.
ALI, Khudejah; ZAIN-UL-ABDIN, Khawaja; LI, Cong; et al. Viruses Going Viral: Impact of Fear-Arousing Sensationalist Social Media Messages on User Engagement. Science Communication, v. 41, n. 3, p. 314–338, 2019.
EVANGELISTA, Rafael. Aceleração, exceção e ruptura: disputas tecnopolíticas num mundo pandêmico. ComCiência, v. 217, 2020. Disponível em: <http://www.comciencia.br/aceleracao-excecao-e-ruptura-disputas-tecnopoliticas-num-mundo-pandemico/>. Acesso em: 3 ago. 2020.
BUENO, Claudio. The Attention Economy: Labour, Time and Power in Cognitive Capitalism. [s.l.]: Rowman & Littlefield Publishers / Rowman & Littlefield International, 2016.
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. Edição: 1. [s.l.]: PublicAffairs, 2019.