Por José Luis Fevereiro [ilustração de Dinho Lascoski]
Não menosprezo o ridículo como fator de desgaste de lideranças ou de projetos políticos, portanto não condeno quem o fez, mas acho que a contrapartida das nossas gargalhadas e deboches foi a secundarização de temas muito mais graves e relevantes como o desmonte do Estado, a quebra dos direitos previdenciários, o fim da politica de proteção ambiental, o libera geral dos agrotóxicos, o subfinanciamento do SUS.
A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 mudou muitos dos parâmetros pelos quais se fazia e se media a disputa politica. Desde o velho recurso às fake news, tão velhas quanto pelo menos a Alemanha de Hitler e Goebbels, agora a bordo de novas tecnologias, como o recurso a debates periféricos como forma de esconder questões mais relevantes a exemplo dos velhos factoides usados pelo ex-prefeito do Rio Cesar Maia.
Há dois elementos distintos nessa ação. Um são os factoides claramente plantados com o objetivo de fazer “passar a boiada” como confessou o ministro Ricardo Salles no seu sincericídio da reunião ministerial de 22 de abril, embora conjunturalmente se referisse a um problema real. Nesta linha estão os diálogos na goiabeira da ministra Damares, estão os erros de grafia propositais do ex-ministro Weintraub, estão os discursos repletos de sandices do chanceler, o golden shower do Bolsonaro no carnaval de 2019, entre inúmeras outras pérolas que pela abundância agora me escapam. Geram memes, debates, manifestações de indignação, reafirmações que circulam entre a bolha progressista, no máximo entre os setores mais letrados da sociedade, mas que não têm maior relevância para a luta política. O uso recorrente desses artifícios nos levanta sincera dúvida se de fato Bolsonaro contraiu a Covid-19 ou se é apenas mais uma manobra narrativa para distrair atenções e passar mensagens políticas de conveniência.
Sobre esses factoides, milhares de teclados pelo país afora foram usados por outros tantos milhares de cidadãos e ativistas da esquerda sem que isso tenha de fato consequências avassaladoras. Não menosprezo o ridículo como fator de desgaste de lideranças ou de projetos políticos, portanto não condeno quem o fez, mas acho que a contrapartida das nossas gargalhadas e deboches foi a secundarização de temas muito mais graves e relevantes como o desmonte do Estado, a quebra dos direitos previdenciários, o fim da politica de proteção ambiental, o libera geral dos agrotóxicos, o subfinanciamento do SUS.
O segundo elemento, esse mais profundo, são as seguidas declarações ameaçadoras contra as liberdades democráticas. Desde mandar os dirigentes da esquerda para a Ponta da Praia ou o exilio, passando pelo “cabo e dois soldados”, as manifestações pela intervenção militar, as notas tonitruantes de generais de pijama macaqueando terem algum poder de fogo real na ativa, as ameaças aos outros Poderes da República, tudo isso teve uma consequência clara que foi desviar o debate para a disputa institucional. Impeachment, caráter das frentes anti Bolsonaro, legitimidade ou anulação das eleições de 2018, debates com os quais as esquerdas tercem armas entre si,mas que têm pouca ou nenhuma incidência na luta política real.
A constatação que Bolsonaro não pode continuar como presidente, muito cara nas hostes oposicionistas, não vem acompanhada de uma receita de execução, porque na prática dialoga com os que já não votaram em Bolsonaro e com poucos mais. Essa manobra que desloca o debate para a institucionalidade não mobiliza nem dialoga com a maioria da população para quem a Covid-19 e a crise econômica são o centro e que buscam para esses problemas reais soluções objetivas – não importa de onde venham nem como.
A disputa que conta e será central nos próximos meses diz respeito à crise econômica e às consequências da Covid-19. Cerca de 70 mil mortos e caminhando rapidamente para algo que ficará entre 100 mil e 200 mil num cenário nem de longe pessimista, obrigam a fazer balanços de responsabilidades. Desemprego avassalador e precarização absoluta do que resta de trabalho por conta própria colocam esses temas como centrais na agenda. A esquerda e a sua militância têm a tendência à grandiloquência das grandes pautas, dos grandes momentos. Nostalgia de revoluções, pode-se dizer. Mas no dia a dia o que conta é o somatório das pequenas disputas.
Como agir para dialogar com o precariado crescente das grandes cidades metamorfoseado em “empreendedor”, sem entender a profundidade da derrota ideológica em que nos metemos quando constatamos que os seus sonhos não combinam com os nossos? Como dialogar com os pequenos empresários quebrados pela pandemia para que não culpem o isolamento social pela sua desgraça, mas a insuficiência total de amparo por parte do poder público? Como recolocar a desigualdade no centro da agenda e escapar da armadilha do moralismo de resultados que transformou a corrupção no problema central do Brasil e centrado no Estado, operação aliás feita com a cumplicidade de parte da esquerda? Como defender o papel do Estado na economia sem resolver a questão anterior? São as perguntas chave e sobre isso a esquerda deve gastar tempo e reflexão.
Da adequada resposta a essas perguntas está a possibilidade de mudança real da correlação de forças e a viabilização de saídas institucionais à esquerda capazes de derrotar Bolsonaro e a agenda neoliberal. Com certeza é mais fácil discutir Damarices, Weintraubices e Bolsonarices bem como espinafrar o Ciro, o Lula, o FHC, a Marina, a Globo ou quem quer que seja, pelo que fizeram ou deixaram de fazer nos verões passados.
Difícil é buscar respostas e soluções para questões que em boa parte estão longe da nossa zona de conforto e que não trazem satisfação imediata de expectativas.
José Luis Fevereiro, nascido em Maputo (Moçambique), é economista formado pela UFRJ. Foi secretário geral do Partido dos Trabalhadores no estado do Rio de Janeiro de 1989 a 1993 e membro da executiva nacional do PT de 93 a 95. Desde 2007, é membro da direção nacional do PSOL.