Coronavírus expõe ausência de verbas para o cuidado da população idosa asilada

Por Rafael Revadam e Roberta Bueno

Risco de infecções e mortes em massa volta atenção a instituições de cuidado aos idosos; entidades iniciam campanhas por doações

A pele não tem o mesmo viço de anos atrás e os movimentos já não são tão precisos. A voz sai trêmula e a memória, às vezes, falha. Os idosos que vivem em asilos e casas de repouso, por opção ou imposição, enfrentam mais uma situação delicada: o novo coronavírus. Sob a alcunha de ‘grupo de risco’, a população envelhecida encontra na doença mais um fator que a distancia do restante da sociedade. Em paralelo, as instituições responsáveis pelo cuidado deste público estão vivendo em cautela. Ao reunirem perfis vulneráveis pela Covid-19 em um mesmo lar, a possibilidade de infecção e morte em massa é um medo eminente.

“A princípio, nossos idosos não estavam conseguindo entender direito o motivo da ausência das famílias e de outras visitas. Os meios de comunicação, como a TV, fizeram com que eles ficassem apavorados. Nós intervirmos com palestras explicativas, rodas de conversa, filmes, atividades internas, entre outros. Isso amenizou muito na fase inicial [da pandemia]. Alguns funcionários entraram em pânico e foram afastados para não transferirem esses sentimentos aos idosos”, conta Sandra Lagoa, assistente administrativa do Abrigo Irmã Tereza. Localizada em São Caetano do Sul, no Grande ABC paulista, a casa de idosos tem 62 hóspedes, entre pessoas com vínculo familiar e abandonadas, e vive principalmente de doações. Com a chegada do novo coronavírus, o abrigo suspendeu todas as visitas a partir do dia 19 de março, e criou um protocolo interno de prevenção à Covid-19.

A situação não é muito diferente na casa de repouso Nova Canaã, localizada na cidade de Atibaia (cerca de 100 km da capital paulista), embora seja uma instituição privada. Nadja Vieira da Silva Cardoso, proprietária da casa, conta que o isolamento social foi comunicado aos hóspedes no dia 10 de março — mesmo dia em que a pandemia foi decretada pela OMS (Organização Mundial de Saúde). “A rotina foi alterada, as atividades diárias foram suspensas. Nós passamos a utilizar a tecnologia como aliada. As sessões de fisioterapia, por exemplo, estão sendo realizadas duas vezes por semana. Esses exercícios são gravados em vídeo pela fisioterapeuta e enviados para mim”.

De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no Brasil existem mais de 28 milhões de pessoas com idade maior ou igual a 65 anos – os chamados idosos, o que corresponde a 13% da população — número que pode chegar a cerca de 40 milhões em 2030. Já os idosos que vivem em casas de repouso ou asilos, agora denominados ILPIs (Instituições de Longa Permanência para Idosos) são, aproximadamente, 100 mil, segundo a última estimativa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 2018. Desses, 60 mil estão em instituições públicas e filantrópicas.

“A maior parte das instituições sobrevive com 70% do rendimento da pessoa idosa, o que é liberado por lei. Elas também vivem de doações, festas, entre uma série de coisas que são feitas para arrecadação de fundos. Só que neste momento da pandemia, você não está tendo nenhuma dessas iniciativas. Então, a arrecadação das instituições foi brutalmente diminuída”, explica a professora e pesquisadora Yeda Aparecida de Oliveira Duarte, da Faculdade de Saúde Pública da USP.

A pesquisadora também destaca a verba dedicada à população idosa que é encaminhada pelo Governo Federal às ILPIs. “O repasse federal para as instituições deveria ser de, pelo menos, um salário mínimo por idoso. Hoje ele gira em torno de R$ 60 a R$ 90, o que é uma imoralidade”, critica Yeda.

Apoio político

Para a deputada federal Lídice da Mata (PSB-BA), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa da Câmara dos Deputados (Cidoso), a situação se agrava com a falta de políticas públicas em tempos de coronavírus. “Encaminhamos aos ministros Onyx Lorenzoni, da Cidadania, e Damares Alves, da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, solicitação de prioridade na liberação de recursos orçamentários para atendimento às pessoas idosas face à pandemia da Covid-19, principalmente aquelas que vivem nas ILPIs”. Até o fechamento desta reportagem, a comissão não recebeu os pareceres dos ministérios acionados.

No último ano, a Cidoso aprovou uma emenda orçamentária no valor de R$ 502 milhões para a proteção de públicos em situações de vulnerabilidade, o que engloba a população idosa. No entanto, desse valor, apenas R$ 300 mil foi sancionado. “Também solicitamos prioridade para testes e equipamentos de proteção [equipamentos de proteção individual, os EPIs] a funcionários e residentes de ILPIs. Mas é importante esclarecer que, regimentalmente, as comissões não estão funcionando em sua totalidade, porque a prioridade agora são as votações de projetos relacionados com a pandemia. Além disso, o isolamento social imposto pelo estado de calamidade pública ocorreu antes que as comissões pudessem ter efetuado as eleições de seus membros para este ano legislativo”, pontua a deputada.

Residentes da Casa de Velhinhos Ondina Lobo (divulgação)

A ausência de EPIs é uma realidade vivida pela Casa de Velhinhos Ondina Lobo, na zona sul de São Paulo. “O que nós temos de material de EPI, como avental e luva, é uma quantidade pequena. E isso está muito difícil de comprar. Hoje, a gente tem uma necessidade premente de doações. Estamos tentando, junto a governos e empresas, doações de luvas, aventais descartáveis e máscara N95, estas para os profissionais que estão tratando das pessoas em quarentena”, relata Paulo Coelho, diretor da entidade.

A Ondina Lobo é uma instituição filantrópica criada há 69 anos, que abriga atualmente 62 idosos. Com ajuda da iniciativa privada, a entidade conseguiu testes da Covid-19. Ao aplicar aos seus moradores, oito foram diagnosticados com a doença. “Nós chamamos o Samu. Porque não somos uma casa de saúde, e não temos estrutura para tratá-los”, detalha Paulo. Dos oito enfermos, seis estavam sem sintomas e seguiram na entidade. Já dois foram encaminhados para exames e uma idosa segue internada por estar debilitada, consequência de patologias além do novo coronavírus.

Holofote

De acordo com a psicóloga e membro do Grupo de Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias (Gelep) da Unicamp, Regina Celia Celebrone, o novo coronavírus trouxe um olhar à população idosa. “O idoso sempre esteve na margem. A nossa sociedade está começando a envelhecer agora. Estimativas apontam que vai triplicar o número de idosos no país até 2050. E, ao mesmo tempo, ninguém quer saber de ficar velho. Velhice lembra morte, coisa feia, pelanca, um corpo que não é o mais bonito de se ver na sociedade do espetáculo, dos corpos perfeitos”.

A psicóloga aponta que, ao classificar o idoso como grupo de risco, isso trouxe um olhar ainda mais odioso à população já isolada. “Esse isolamento aumentou a depressão? Em quem já tinha traços, sim, e nem precisa ser idoso. Agora, o idoso ainda sofre um olhar maior da sociedade: você não pode sair, você não pode colocar os pés para fora de casa ou você é uma ameaça para a gente. Se sai na rua, as pessoas olham feio. E será que as pessoas já não olhavam feio para o idoso? Por ele ser uma ameaça como fim de vida?”

Esta visão do idoso como foco na pandemia também é compartilhada pela deputada federal Lídice da Mata. “A pandemia fez a sociedade se voltar mais para este público, e para o quanto as pessoas idosas precisam da atenção de governos e da sociedade”, pondera. “O Brasil tem uma política pública tímida para esta parcela da população e o orçamento hoje disponível para o setor beira ao ridículo. A maior parte das ILPIs vive de caridade, de doação. É preciso agora, neste momento da pandemia, organizar doações, mas, principalmente, ter no governo os recursos necessários para estados e municípios garantirem às pessoas idosas o acolhimento e os cuidados necessários com a saúde e com uma velhice mais tranquila”.

Para quem vive nas casas de idosos, as rotinas impostas com a pandemia são uma novidade. Zulma Pedrinha de Nardes Siqueira, de 93 anos, moradora da casa de repouso Nova Canaã, em Atibaia, conta que nunca viveu nada parecido, mas lembra das conversas de sua mãe sobre a epidemia da febre amarela, que também causou muitas mortes. “Eu estou angustiada, triste. Eu nunca passei por um momento como o que estou passando agora. Aqui, festejamos a Páscoa e comemoramos os aniversários. Inclusive, minha família me viu por vídeo e achou muito bonita essa união. Ficaram contentes de me verem sorrindo. Mas eu estou longe. O contato é por telefone, é a única coisa que tenho agora”.

Íngrida Weiss, da casa de repouso Nova Canaã (divulgação)

Colega de Zulma na Nova Canaã, Íngrida Weiss, se considera uma jovem com seus 78 anos. “Eu ainda me julgo muito jovem, apesar da idade. Sou assim, alegrona sempre, mas senti dificuldades em sair do meu lar. Eu era muito independente, sozinha, ia pra cima e pra baixo. Hoje, não temos mais atividades e nem os cultos. Isso faz muita falta, mas eu ouço a palavra de Deus pelo tablet e pela televisão. No domingo de Páscoa fiquei a manhã toda recordando a minha vida. Senti saudades da família. Minha irmã me ligou, e minha sobrinha comprou um ovo de páscoa”. Para ajudar a matar as saudades, a administração da Nova Canaã fez chamadas em vídeo com moradores e seus familiares, e Íngrida viu sua sobrinha. “Minha sobrinha ficou tão contente em me ver e eu também de ouvir a voz dela, me senti amparada”, ponderou, esperançosa por dias mais leves.