Por Leandro Carvalho Damacena Neto
Neste breve artigo iremos analisar algumas características de duas pandemias, a gripe espanhola que grassou mundialmente entre 1918/1919 e o novo coronavírus (causador da Covid-19), que ainda faz vítimas no mundo inteiro.
As doenças, os vírus, as bactérias estão presentes no mundo desde os primórdios da humanidade. As doenças grassam de duas formas: de forma endêmica e epidêmica.
As doenças endêmicas, são as moléstias que acometem os seres humanos de forma constante, sem intervalos. E as doenças epidêmicas, grassam na sociedade a partir de uma rápida disseminação sobre um grande número de pessoas, numa determinada população dentro de um curto período de tempo. Uma epidemia se torna em pandemia, quando a doença vai além do espaço geográfico onde atacava e passa a grassar em escala global.
Charles Rosenberg (1992) criou o conceito “dramaturgia das epidemias” com o intuito de compreendê-las. Segundo o autor, os eventos epidêmicos possuem uma dramaturgia própria que impacta no dia-a-dia das sociedades. Iremos denominar de “cotidiano epidêmico”, as sociedades grassadas por doenças epidêmicas.
O “cotidiano epidêmico” é marcado pela “dramaturgia das epidemias”, segundo Rosenberg (1992), essa dramaturgia possui uma lógica própria: 1º) Medo; 2º) rápida expansão da morte; 3º) qualidade episódica; 4º) a coletividade; 5º) os significados da doença para a sociedade. O autor separou essas cinco categorias no intuito didático de compreender as epidemias. Porém, todas as categorias estão imbricadas e são indissociáveis. A rápida expansão da morte nos eventos epidêmicos, ocasionam nas sociedades que assolam, o sentimento de medo nas pessoas, na coletividade, as epidemias são eventos episódicos, a cada dia durante o “cotidiano epidêmico”, temos novas medidas dos poderes públicos, incessantes notícias sobre a rápida disseminação e letalidade da moléstia.
As epidemias, também produzem diferentes significados nas sociedades que grassam: as explicações científicas, as crenças populares, as concepções religiosas, como o castigo divino ainda permanecem no imaginário social, mesmo em pleno século XXI.
Quando analisamos o dia-a-dia de uma pandemia por meio do conceito de “cotidiano epidêmico” a partir das cinco categorias presentes na “dramaturgia das epidemias”, buscamos a compreensão daquele evento episódico: a pandemia; de forma racional e científica, compreendendo os aspectos socioculturais, os impactos, as respostas, ou seja, os significados das epidemias nas sociedades por elas vitimadas.
Na gripe espanhola (1918/1919) e no novo coronavírus (SARS-CoV-2, causador da Covid-19), a qualidade episódica desses eventos epidêmicos, o “cotidiano epidêmico” é marcado pela quarentena e o isolamento social, medida mais eficazes durante a epidemia de gripe espanhola. Naquela pandemia o isolamento social foi fundamental para evitar um maior número de mortes, estima-se que a gripe espanhola vitimou cerca de 35.000 pessoas no Brasil, no mundo, a moléstia ceifou a vida de cinquenta milhões de pessoas entre os anos de 1918/1919, aproximadamente 5% da população mundial.
A atual pandemia, até o dia 09/05/20 vitimou cerca de 10.627 brasileiros e infectou no país, 155.939 pessoas, o número de mortes diária no dia 08/05/20 chegou a 751 mortes e no dia 09/05/20 foram confirmadas 730 óbitos. Em escala mundial, o novo Coronavírus vitimou até o dia 09/05/20, 276.699 pessoas e já são 4.002,835 pessoas infectadas (enquanto escrevo o artigo o número de infectados e mortes aumentam). Diante destes números, não podemos esquecer, que os dados quantitativos em períodos epidêmicos não são precisos, tanto na pandemia de gripe espanhola quanto na pandemia da Covid-19, há subnotificações, portanto, o número de vítimas e infectados são maiores em relação aos dados estatísticos oficiais.
A principal medida estipulada durante a gripe espanhola foi a quarentena e o isolamento social, o mesmo acontece perante o novo coronavírus. As consequências dessas medidas ocasionam: o recolhimento das pessoas em suas casas, o fechamento do comércio, a proibição de aglomerações públicas, a paralisação das aulas, ou seja, a suspensão dos “ritos cotidianos” das sociedades atacadas pelas epidemias. Atualmente, presenciamos por parte do governo federal brasileiro, na figura do presidente da república, a negação inicial da pandemia de Covid-19, “uma gripezinha”, a negação da ciência, as tentativas diárias do presidente para acabar com a quarentena e o isolamento social frente ao discurso econômico, em prol da economia. Temos o crescente discurso da morte de empresas, a morte dos “CNPJ’s”, as “empresas na UTI”, diante deste discurso, as mortes diárias de pessoas são obliterados e não possuem nenhuma importância.
A dicotômica relação entre vidas versus economia é incomensurável. Os países que planejaram a sua quarentena e o isolamento social, sem flexibilização, logo terão, o declínio do vírus, da doença em seus territórios e, consequentemente a reabertura e o retorno a “normalidade” cotidiana em etapas. São os casos atuais de países como a Alemanha, a Nova Zelândia, por exemplo. Enquanto, os países que atrasaram nas políticas de combate a epidemia e depois flexibilizaram a quarentena e o isolamento social, com a reabertura dos comércios e o retorno das atividades cotidianas, como o caso do Brasil, assistimos ao crescente aumento no número de mortes e infectados. Em resposta ao crescente aumento de mortes e infectados, teremos medidas de quarentena e isolamento mais severas como o “lockdown”, constitui-se de medida mais rígida de confinamento durante epidemias, com o funcionamento somente de serviços essenciais e proibição de circulação de pessoas nas ruas, salvo casos essenciais, alguns estados brasileiros já implantaram nas suas capitais.
Os eventos epidêmicos/pandêmicos podem ser classificados como eventos episódicos, ou seja, não acontecem constantemente, mas, esporadicamente. Esse caráter episódico possui algumas características, como o rápido crescimento do número de mortes, em consequência desta característica, as sociedades atacadas por epidemias são perpassadas pelo sentimento de “medo”, o medo da doença infecciosa, o vírus invisível, que transforma o “outro” numa ameaça eminente, a simples ida no supermercado, provoca-nos aflição, e quando nos deparamos com os trabalhadores destes estabelecimentos que estão cotidianamente em contato com os clientes e o inimigo invisível! De acordo com Jean Delumeau (1990), o medo se faz presente em tempos de epidemias, por conta das rupturas provocadas pela moléstia na vida cotidiana e nas relações sociais, fazendo prevalecer inquietude e angústia.
Durante as pandemias, o dia-a-dia, os “ritos cotidianos”, são transformados durante o “cotidiano epidêmico”, os rituais fúnebres são alterados frente a grande quantidade de mortes diárias. Deflagra-se a crise dos serviços de sepultamentos, durante a gripe espanhola de 1918/1919, as cidades atacadas pela moléstia, com o aumento acentuado nos óbitos diários, como na cidade de São Paulo, com a média diária de 1.000 mortes. Os sepultamentos e os rituais fúnebres se tornaram um problema, ocorreram crises no fornecimento de caixões, os necrotérios superlotados, faltaram coveiros para os enterramentos, segundo Damacena Neto (2020a), em várias cidades brasileiras acometidas pelo flagelo de gripe, os corpos foram sepultados em valas comuns/coletivas, com corpos enrolados em lençóis.
Na atual pandemia de Covid-19, pelos jornais chegam até a população brasileira as notícias do colapso dos serviços de sepultamentos e dos ritos fúnebres. A cidade de Manaus, no estado do Amazonas, amarga esse colapso, com necrotérios superlotados, falta de caixões, falta de coveiros, enterramentos em valas coletivas. Tanto na gripe espanhola quanto na Covid-19, os rituais fúnebres foram suspensos, milhares de famílias não puderam velar seus “entes queridos”, não puderam estar junto ao familiar, ao amigo, ao pai, a mãe, ao filho moribundo no ritual de passagem. A proibição dos velórios, os caixões lacrados, o rápido enterramento, ocorrem por causa da doença infecciosa, e a possiblidade da proliferação do vírus. Essa quebra e suspensão do ritual fúnebre ressalta mais uma vez o conceito da “dramaturgia das epidemias”, o caráter episódico do evento epidêmico, os significados da doença para a população (castigo divino, degradação ambiental…), o aumento acentuado de mortes e o medo.
Durante a pandemia de gripe espanhola, a ineficiência da medicina científica frente ao flagelo, nos anos de 1918/1919, a medicina não havia conseguido criar nenhuma vacina e medicamento específico contra a doença. Em decorrência da ineficácia da medicina, tivemos a ascensão das práticas populares de cura, a utilização do limão, do quinino. Conforme Damacena Neto (2020b), a crescente indústria farmacêutica propagandeou nos jornais, remédios que já existiam há longa data como específico para o tratamento da doença de gripe, como o óleo de fígado de bacalhau, conhecido como Emulsão Scott, as aspirinas Bayer, os comprimidos e granulados Dissuran e o Dynamogenol, são exemplos de alguns medicamentos que foram atribuídos para combater aquela moléstia.
Na pandemia de Covid-19, a inexistência de vacina e medicamentos para tratar a doença infecciosa, também fez surgir especulações em torno de remédios eficazes para combater a doença. A hidroxicloroquina sem nenhum tipo de eficácia comprovada no combate ao novo Coronavírus, foi veementemente propagandeada sua eficiência contra o Coronavírus pelo presidente da República. Depois tivemos a possibilidade de utilizar o medicamento Remdevisir, que fracassou em seu primeiro ensaio clínico contra a Covid-19 nos Estados Unidos da América. Posteriormente, empregam o Avigan que é a aposta do Japão no combate ao Coronavírus, mas faltam evidências conclusivas sobre a eficácia ou não do medicamento frente à moléstia.
Enquanto as pesquisas científicas continuam a buscar uma vacina e medicamentos para combater o novo Coronavírus, a doença continua ceifando milhares de vidas mundo afora. A gripe espanhola teve três ciclos mundiais, o primeiro entre março e julho de 1918, foi provavelmente confundida com a gripe comum dos meses de inverno. O segundo ciclo ocorreu entre agosto a janeiro de 1919, foi o ciclo mais letal, onde o vírus teve uma mutação extremamente brutal contra o sistema imunológico. E o terceiro e último ciclo, entre fevereiro a maio de 1919, não tão letal como o segundo. Frente essa “dramaturgia” da gripe espanhola, torço para ela não se repetir durante a pandemia de Covid-19, durante esta primeira fase, o vírus já vitimou milhares de pessoas pelo mundo, um segundo ciclo da pandemia poderia ser mais devastador ainda.
Dito isto, a melhor forma de nos proteger contra a Covid-19 é ficar em casa! Porém, esse ficar em casa deve ser problematizado! O ficar em casa significa que as políticas públicas devem chegar a milhões de brasileiros preteridos pela falta de alimentação, moradia, emprego, saneamento básico e de transporte público. As pandemias acentuam os problemas sociais, durante o “cotidiano epidêmico”, como uma família de 10 pessoas mantém o isolamento social em apertadas moradias feitas de madeira e papelão nas comunidades e subúrbios brasileiros? Lavar as mãos constantemente é uma medida para dirimir o contágio das doenças, porém, como lavar as mãos, em comunidades que a falta de água é uma situação crônica? A culpabilização da população pelo não isolamento e quarentena, continua sendo veiculada nos meios de comunicação todos os dias, mas a falta de gestão dos governantes, são camufladas pelo fique em casa!
A “dramaturgia das epidemias” como: o medo; a rápida expansão da morte; a qualidade episódica; a coletividade; e os significados da doença para a sociedade são percebidas durante a pandemia e no mundo pós-pandemia. As relações de sociabilidade, o retorno por etapas a “normalidade” cotidiana logo após a pandemia, será marcado pelo medo do “outro”, o medo do vírus invisível, do vírus onipresente e onipotente. Durante um prazo maior, os “ritos cotidianos” voltaram a sua “normalidade” e o “cotidiano epidêmico” entrará para o reino do esquecimento, se tornará lembranças e memória daqueles/as que choraram a perda de um ente querido durante a pandemia.
Leandro Carvalho Damacena Neto é doutor em história pela UFG e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás. E-mail: leandro.neto@ifg.edu.br
Referências
Damacena Neto. Leandro Carvalho. A pandemia de gripe espanhola na “metrópole do café” (São Paulo). 2020. E-book – disponível aqui
________________. A epidemia de gripe espanhola em Goiás. O “sertão gripado”. 2020. E-book – Disponível aqui
Delumeau, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
Rosenberg, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge University Press, 1992.