Por Daniel Pompeu
Intérprete de males (Biblioteca Azul, 209 páginas) é uma ode aos conflitos de todos aqueles que se encontram distantes da cultura na qual foram criados e se constituíram. Seja pela migração por motivos de refúgio, ambição ou a ânsia por se distanciar das raízes e trilhar seu próprio caminho, os contos de Jhumpa Lahiri passeiam por situações e personagens em estado de inadequação, isolamento, saudade e busca por adaptação em meio a situações desconhecidas e hostis.
Lahiri é inglesa, mas seus pais são indianos de origem bengali. Essa herança cultural perpassa todos os nove contos de Intérprete de males e é de grande importância para entender a uniformidade temática da obra. Publicado originalmente em 1999, a coletânea foi o primeiro livro publicado de Lahiri e rendeu à autora o prêmio Pulitzer de ficção, reservando a ela um espaço importante na literatura contemporânea.
Previamente publicados em revistas como The New Yorker, a maioria dos contos tem como pano de fundo a presença de um indiano (ou uma família de origem indiana) nos Estados Unidos. Nem sempre a situação de migrante é o ponto em evidência, entretanto o que Lahiri tenta mostrar é a capacidade de resiliência e adaptação do ser humano em situações desconfortáveis. Algumas histórias caminham para resoluções através de paciência e diálogo, em outros através do conflito e, em alguns, pela indiferença e distanciamento.
Muito da riqueza ficcional presente em Intérprete de males está no uso de narradores para oferecer diferentes lugares de visão dos personagens e seus conflitos. Em “Quando o senhor Pirzada vinha jantar”, somos apresentados ao protagonista por meio da visão de uma menina. O ano é 1971 e todas as noites o homem que conhecemos como senhor Pirzada, um solitário professor indiano em uma renomada universidade norte-americana, janta na casa de uma família de mesma origem. A criança e narradora, apesar dos pais de origem indiana, é nascida nos Estados Unidos e tem pouca familiaridade com as relações de afeto e solidariedade cultivadas entre os pais e o professor. A menina inicia uma investigação emocional de tal relação, que percebemos ter raízes na particular empatia causada pela melancolia de estar longe da terra natal, de tudo que lhe foi familiar por grande parte da vida e das incertezas que isso pode causar.
Visão semelhante é a que temos no conto “A senhora Sen”, em que uma imigrante indiana se torna babá de uma criança ocidental. Com o narrador silencioso, é possível acompanhar as sucessões de estranhamentos por parte da criança e sua mãe com a senhora Sen e seu marido ao longo da história. No caso da mãe, há um distanciamento e aversão crescente aos costumes daquele casal, enquanto a criança se adapta à situação e cria sentimentos de afeição pela babá. Paralelamente, acompanhamos os esforços da protagonista para manter vivos os costumes indianos em terras norte-americanas, apesar de todos os obstáculos. Trata-se de um conto comovente, que mostra que apesar dos abismos culturais e de costume, é possível encontrar caminhos que levam à boa convivência e à amizade.
Há, ainda, contos que se passam inteiramente na Índia, como é o caso de “Um durwan de verdade” e “O tratamento de Bibi Haldar”. As duas histórias são protagonizadas por mulheres, que, de uma forma ou de outra, sofrem pela negligência e isolamento social, justificados hora ou outra pelos costumes culturais indianos. No primeiro, a protagonista é uma refugiada, que se torna uma espécie de zeladora ou porteira de um prédio residencial. Após uma série de acontecimentos, a mulher, em seu estado vulnerável, é injustiçada por aqueles que antes a haviam acolhido. Já no segundo conto, Bibi Haldar é uma mulher que já passa dos seus 30 anos, nunca despertou o interesse de um marido e, afligida por uma doença misteriosa, se tornou um fardo para os familiares ainda vivos. A mulher, que passa pelas mais desafiadoras situações, prova sua resiliência contando apenas com a solidariedade de outras mulheres. Em contos como esses, Lahiri parece partir de certos estereótipos ocidentais sobre a cultura do oriente e subverter certezas sobre situações de opressão e fragilidade.
“O terceiro e último continente” é o emocionante texto que finaliza Intérprete de males. O enredo se passa no tempo de uma vida, e conta a jornada de um bengalês ao se mudar para a Inglaterra e depois para os Estados Unidos. Tal trajetória é cheia de percalços, mas extremamente engrandecedora. Ao entrar em contato com pessoas diferentes, com noções distintas de mundo e costumes, o protagonista evolui emocionalmente ao longo do processo narrativo. A capacidade que tais choques culturais têm de promover a tolerância e como pessoas tão diferentes podem conviver de forma enriquecedora é o tema tão bem explorado no conto. A tolerância é central nesse processo, e, como bem explicitado na história, tem a capacidade de ultrapassar gerações.
Há outras histórias não citadas aqui, mas que também têm valor imprescindível para a temática construída com a coletânea. Ao terminar a leitura, fica a sensação de que tivemos contato com uma amostra da complexidade humana e de como a cultura e as mudanças geográficas podem definir as trajetórias de vida. O contato com o desconhecido (do lado ocidental ou oriental) é prevalente, e somos convidados a ler histórias sobre empatia, contraste e resiliência. Intérprete de males é um livro para nos sentirmos mais humanos, mesmo frente às profundas diferenças impostas por nossas origens.
Daniel Pompeu é jornalista e aluno do curso de especialização em jornalismo científico e cultural (Labjor/Unicamp).