Por Samuel Ribeiro dos Santos Neto
Os Jogos Olímpicos de Tóquio, recém adiados para 2021, contarão com a participação de times de atletas refugiados pela segunda vez desde os jogos Rio-2016. A presença dos competidores ganhou espaço na imprensa e mostra uma preocupação das organizações esportivas com os problemas globais, mas essa exposição midiática também pode tornar invisíveis outros aspectos da crise migratória.
Síria, Sudão do Sul, Etiópia e República Democrática do Congo. Esses eram os países de origem dos 10 atletas que competiram nas Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016, como membros do time olímpico de refugiados. No mesmo ano, o time paralímpico independente contou com dois refugiados, um sírio e outro iraniano. Em ambos os eventos os esportistas não representaram seus países de origem, mas sim as bandeiras dos respectivos comitês internacionais.
Para os Jogos Olímpicos de Tóquio, a última previsão era de que o comitê anunciasse a relação dos atletas refugiados ainda em junho deste ano. São 49 atletas bolsistas de 11 países, inclusive os 10 veteranos da última edição, que estão disputando vagas para um time que será maior que da Rio-2016.
A participação de atletas independentes já fez parte de outras edições dos jogos, mas o fortalecimento da figura do refugiado enquanto principal atleta desse grupo se deu no contexto da crise migratória global acentuada a partir de 2015. O relatório Tendências Globais, divulgado pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur) em 2016, apontava que mais de 65 milhões de pessoas se encontravam em situação de deslocamento forçado pelo mundo.
As situações difíceis pelas quais passavam essas pessoas, por motivos de guerra, perseguição ou conflito, aparecia também nas narrativas dos atletas refugiados publicadas pela imprensa e pelos veículos de comunicação ligados à ONU e ao Comitê Olímpico Internacional (COI). Yusra Mardini, nadadora síria refugiada na Alemanha e que competiu na Rio-2016, contou ao The Guardian naquele mesmo ano que a natação salvou a sua vida durante a travessia a barco pelo Mediterrâneo que a levou até a Europa.
A atleta contou que havia 20 pessoas em uma embarcação onde cabiam 6 ou 7 e, com o motor parado, ela ameaçava virar. Yusra, sua irmã Sarah e outra mulher, as únicas que sabiam nadar, saltaram à água e puxaram o barco até a costa. “Pensei que seria uma vergonha se eu me afogasse no mar, porque sou uma nadadora”, afirmou Yusra ao jornal.
Refugiados no mundo esportivo
Foi em setembro de 2015 que o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou a criação do time e de um fundo emergencial de assistência. Para o jornalista Guilherme Silva Pires de Freitas, que é mestre em estudos culturais pela USP, a iniciativa demonstra uma preocupação do COI com as mudanças do mundo, assim como a promoção da igualdade de gênero – um dos compromissos da Agenda 2020 do movimento olímpico – e a abertura para novas modalidades esportivas, como o skate, o surfe, a escalada e os e-sports.
Freitas contou que esse movimento tende a se tornar mais amplo no mundo esportivo. “As federações internacionais estão aos poucos abrindo espaço para os atletas refugiados que estão disputando os eventos pós Rio-2016 como independentes, mas é algo ainda tímido e que acredito que se tornará maior nesta próxima década”, explicou. A Federação Internacional de Natação (Fina) e a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF), por exemplo, já ofereceram espaço para atletas refugiados em competições recentes.
A questão dos refugiados e do esporte vai além das grandes instituições esportivas e passa por iniciativas locais, como é o caso da Copa dos Refugiados, evento futebolístico organizado no Brasil pela ONG África do Coração. A edição de 2019 contou com a participação de mais de 1000 pessoas de mais de 30 nacionalidades. Freitas comentou que houve outros movimentos de apoio aos refugiados na esfera cultural do esporte, como foi o caso das manifestações de apoio das torcidas do futebol europeu durante o pico das migrações em direção ao continente em 2015.
Seja nos contextos locais ou na esfera dos megaeventos, a cobertura midiática tem trazido à tona a questão dos atletas refugiados. Mas segundo Freitas, a imprensa nem sempre aborda o tema de modo aprofundado. “No Rio-2016 muitos jornalistas ficaram impressionados com a jornada de alguns atletas refugiados em entrevistas coletivas, mas foi algo momentâneo. Ao fim dos jogos ninguém mais se importava com o assunto. Esse é um problema atual da imprensa que na maioria das vezes é superficial e perde a chance de explorar mais a fundo a temática do refúgio”, explicou.
Entre heroísmos e apagamentos
A imagem típica dos atletas do time olímpico de refugiados veiculada na mídia é a de sujeitos heroicos e resilientes, cujo mérito individual é exaltado por terem superado as circunstâncias difíceis do processo migratório e se adaptado em uma outra realidade sociocultural. A pesquisadora Ana Isabel Freire, mestra em comunicação pela UFPI e doutoranda em ciências da comunicação pela Unisinos, acredita que não é possível falar em um perfil geral dos atletas refugiados.
“O que tivemos nos Jogos Rio-2016 foram representações de situações específicas de deslocamento forçado e refúgio, que estão longe de dar conta da complexidade do fenômeno migratório”, afirmou. Para ela, que estudou principalmente as notícias veiculadas nas páginas do COI e da Acnur, os discursos sobre os atletas privilegiam certos aspectos da experiência dos refugiados enquanto silenciam outros.
Além da frequente abordagem superficial dos processos migratórios dos atletas, dificuldades de obtenção do status de refugiado e problemas de acolhida nos países de refúgio costumam ser deixados de lado nas narrativas midiáticas. O atleta refugiado acaba se tornando um modelo universal. Segundo Freire, além de alguns aspectos problemáticos do processo migratório, são silenciados também elementos da trajetória dos atletas que não são adequados ao perfil ideal de refugiado e, principalmente, as histórias de outros tipos de refugiados, não tão aceitáveis ou desejáveis como os competidores olímpicos.
“Ao evidenciar um sujeito que é dono de seu destino, capaz de sozinho resolver suas questões e que não lamenta suas mazelas, as organizações silenciam vivências distintas de outros refugiados por meio de discursos que deslegitimam seus sofrimentos quando os colocam em contraste com os exemplos bem-sucedidos dos refugiados olímpicos”, explicou a pesquisadora.
Com as interrupções geradas pela pandemia do novo coronavírus, os atletas que pleiteiam as vagas no time de refugiados têm enfrentado incertezas e desafios. A corredora sudanesa Rose Nathike (refugiada no Quênia) declarou recentemente ao site Olympic Channel que este é o momento de correr com fé no coração e sonhos na cabeça. “Como refugiados, como atletas, nós temos que ser fortes e nunca perder a esperança. Porque mesmo na vida normal você vai enfrentar dificuldades. Algumas situações difíceis na sua vida podem durar anos. Então, se você tem um objetivo você tem que manter o foco nele apesar da situação atual”, afirmou a corredora. Mesmo com o adiamento dos jogos para 2021, as narrativas já estão sendo produzidas.
Samuel Ribeiro dos Santos Neto é mestre em educação física pela Unicamp. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp e bolsista do programa Mídia Ciência, da Fapesp.