Percepção da cor na leitura de obras de arte por pessoas daltônicas

Por Vanessa Pavelski da Gama e Joedy Luciana Barros Marins Bamonte

A denominação popular unifica a diversidade rotulando invariavelmente como “daltonismo” qualquer identificação cromática divergente do geralmente observado por aqueles que ‘’percebem todas as cores’’. Dessa forma, no senso comum não existe margem para especificidades como deuteranopia, pronatopia e tritanopia, mencionando apenas três tipos diferentes “da visão normal”. Um universo de diversidade perceptiva é trivializado e isso é problemático para a própria integração de tal diversidade na sociedade ativa, que consome cultura visual diariamente.

A significação de palavras que designam fenômenos ocorrem desde conversas cotidianas à definição desses fenômenos entre as pessoas. Uma vez que ocorre com base na percepção humana, a interpretação constitui um fenômeno incerto. No ato de perceber as cores e, o que vem a ser a cor observável, pontua-se uma das generalizações cotidianas que impedem o reconhecimento de dificuldades sociais como a relação de pessoas “daltônicas” com o dia-a-dia em um mundo projetado para aqueles que “percebem todas cores normalmente”.

Dentro da cultura normativa da percepção visual, na relação entre o indivíduo que possui algum tipo de diferenciação da percepção da imagem e, consequentemente da cor, a leitura das características de uma obra de arte pode constituir um desconforto silencioso. Singularidades pessoais, que tanto interessam às artes visuais no que dizem respeito à internação entre sujeito e objeto, são interrompidas por questões além da abordagem fisiológica, em diferentes graus de absorção e distinção das cores.

Da problemática da generalização do ato de perceber, a denominação popular dos “daltônicos” também unifica a diversidade existente na maior parte da população mundial, rotulando, invariavelmente, como “daltonismo” qualquer identificação cromática divergente do geralmente observado por aqueles que ‘’percebem todas as cores’’. Dessa forma, no senso comum não existe margem para especificidades como deuteranopia, pronatopia e tritanopia, mencionando apenas três tipos diferentes “da visão normal” que contemplam exemplos de grandes grupos não-uniformes de diagnóstico de variações de percepção da cor. Em cada um desses grupos existem variações de intensidade, isto é, um deuteranopo pode possuir deuteranopia ou deuteranomalia, nas quais essa deuteranomalia pode ser parcial, em um espectro de sensibilidade e distinção de verde e vermelho, por exemplo.

Um universo de diversidade perceptiva existe e é muitas vezes trivializado e isso não é apenas problemático pelo apagamento da individualidade de milhares de pessoas como é problemático para a própria autoestima e integração de tal diversidade na sociedade ativa, que consome cultura visual diariamente.

O desenvolvimento de filtros para dispositivos eletrônicos e filtros ópticos oferecidos em óculos adaptados, como os EnChroma Glasses, que auxiliam na estabilização da cor captada pelo olho do indivíduo com discromatopsia, são ferramentas disponíveis no mercado para proporcionar melhor qualidade de vida e segurança para daltônicos.

A aguçada percepção cromática humana possui, como as demais percepções sensíveis (como também a audição e o tato), funcionalidade para a distinção, qualificação, reconhecimento e associação de objetos, coisas ou outros seres vivos com os quais o ser humano vem a interagir. Uma aranha-marrom e uma aranha-avermelhada fornecem dados de atributos de sua forma e estado essenciais para o reconhecimento de perigo, por exemplo. Dessa forma, a percepção sensível visual e a percepção da cor que compõem a significação da imagem dizem respeito a mecanismos de interação entre o ser humano e o seu meio exterior, fundamentais para todas as relações durante a vida do indivíduo.

Sendo assim, as relações desse grande grupo diversificado de pessoas que apresentam algum tipo de discromatopsia e dos subgrupos específicos como dos deuteranopos (sensibilização interrompida da distinção plena de cores oriundas do verde-vermelho) com o meio em que vivem podem acarretar desconfortos de experiências tanto no que diz respeito à sobrevivência como também à relação subjetiva com objetos de reflexão e interação pessoais. Nesse aspecto, citam-se as operações mentais e sensações oriundas entre o ser humano e as obras de arte, das quais fazem parte a funcionalidade da cor para distinção de estados da matéria e assim fazendo parte de um sistema de qualificação das coisas.

A cor participa ativamente da constante assimilação das coisas ao nosso redor, mesmo em preto e branco. A cor nem mesmo é superficial, um fenômeno isolado na luz. É um fenômeno que entrelaça a estrutura molecular de um objeto com seu meio de exposição e seu receptor, no caso dos humanos, o aparato fisiológico da visão e o sistema nervoso central. Mesmo ‘’para aqueles que percebem todas as cores’’, a cor não diz respeito apenas a um dos aspectos de composição da imagem, mas sim de absorção da proporção, dimensões, expressividade.

Ademais, é importante enfatizar que a percepção da cor não é a mesma, mesmo em indivíduos com visão tricromática plena e a cor da imagem, por si só, não passa um estado variável pelo espaço e por quem o observa. Isto é, um quadrado azul colado em uma parede branca possuirá diferentes tons de azul em diferentes momentos do dia, quando exposto à luz natural. Será diferente sob exposição de luz artificial, pois mesmo lâmpadas possuem diferentes mecanismos de emissão de luz, variando quimicamente e, consequentemente, no resultado cromático observado em objetos expostos nesse espaço. Uma fotografia desse quadrado azul, quando impressa, será diferente da imagem armazenada em um computador, que por sua vez será diferente nas telas de outros dispositivos.

Pessoas que se enquadram na diversidade dos tipos de daltonismo fazem parte dos 8,5% aproximados da incidência mundial daqueles que possuem anomalias tricromáticas, dicromáticas e monocromáticas. O tipo de discromatopsia mais comum, ou tipo de daltonismo mais comum, é a deuteranopia e a deuteranomalia, afetando a distinção e a percepção total ou parcial das cores oriundas de espectros vermelhos e verdes. É incorreto dizer que apenas as cores vermelha e verde são afetadas nos deuteranopos, já que todo espectro visível, isto é, todo sistema de percepção das cores é modificado por não ter total sensibilidade aos tons vermelhos e tons verdes. Tons de rosa, roxo, marrom, transições para o branco dessas cores também são afetados.

Além da deuteranopia e deuteranomalia, há também os grandes grupos incidentes de protanomalia e protanopia, variantes da dificuldade parcial ou total de distinção entre ‘’verde e vermelho’’, e por fim, o tipo de sensibilidade parcial ou totalmente comprometida dos tons de azul e amarelo (e suas misturas e variações): a tritanomalia e a tritanopia.

Considerando o exemplo do quadrado azul na parede, a variação existente devido às mudanças do meio, mesmo quando o receptor possui visão cromática plena, aqueles que possuem tritanomalia poderiam ter dificuldades, especialmente com a incidência de luz solar no ambiente, em identificar o azul do quadrado, podendo atribuir ao quadrado o tom de verde. Já quem possui tritanopia, enxergaria o quadrado azul na parede branca e a invariável luz do ambiente, atribuiria o tom de verde ao quadrado. Já para aqueles que possuem deuteranopia ou deuteranomalia, as variações dos tons azuis do quadrado mediante diversas situações entre estar presencialmente diante do quadrado azul, ou de uma imagem fotográfica deste mesmo quadrado, ou ainda a visualização em monitor, não haveria distinções bruscas daqueles que não possuem algum tipo de daltonismo. Um azul mais amarelado, mais esverdeado, mais claro ou mais escuro, como as discussões frequentes das pessoas identificando objetos de cores sólidas em um ambiente iluminado não destoariam significativamente de quem possui protanopia ou protanomalia, no exemplo do quadrado azul.

A reflexão acerca das variações de percepção da cor pode auxiliar também para aproximar as pessoas que possuem discromatopsia de forma a também inseri-las por suas singularidades no meio social. Isso possibilitaria evitar generalizações acerca do tipo de daltonismo, justamente para poder aprofundar estudos sociais e científicos com o objetivo de incluir o grupo mencionado na cultura da imagem, seja por meio do desenvolvimento de filtros de maior precisão para cada necessidade adaptativa ou de novas mídias e material visual.

Já no exemplo da experiência com o objeto artístico, para aqueles que possuem discromatopsia, a reflexão de todas essas variações possíveis do objeto e sua cor no espaço e de quem o observa toma proporções diferenciadas de um simples quadrado azul em uma parede qualquer. A relação da percepção da cor na arte seja para aqueles que não possuem ou possuem algum tipo de daltonismo é fundamental para a interação entre sujeito e objeto e suas variações podem gerar incômodo. Durante pesquisa de iniciação científica realizada em 2019, mediante financiamento da Fapesp, depoimentos de pessoas com deuteranopia demonstraram essa problemática: “Saber que se enxerga diferente do que realmente é” resultava em parcial frustração quando havia relação com obras de arte como pinturas em museus.

A partir do depoimento de deuteranômalos, a problemática da percepção da cor na obra de arte por pessoas daltônicas se consolidou como uma questão não apenas fisiológica, mas também socio-cultural. A partir daí, foram desenvolvidos protótipos e, posteriormente, algumas pinturas adaptadas para aqueles que possuíssem deuteranomalia. Essas pinturas desenvolvidas durante a pesquisa, não utilizando filtros, foram elaboradas para que ambos grupos de deuteranômalos e não-deuteranômalos pudessem apreciá-las igualmente, sem a preocupação de não estarem observando as obras de arte como realmente são.

Dessa forma, para além do oferecimento de uma melhor qualidade de vida para pessoas com discromatopsia, o diálogo da não generalização da diversidade perceptiva visual foi abordado para vir também a complementar um melhor mapeamento estatístico da incidência de cada tipo de daltonismo, promovendo pesquisas de acessibilidade específica para diferentes graus de discromatopsia. A integração à cultura, um elemento que não diz respeito apenas à sobrevivência mas à vivência do meio onde o ser humano se encontra, poderia vir a desenvolver-se amplamente com o desenvolvimento de tecnologias e materiais específicos para cada necessidade e conforto dentro da diversidade da percepção da cor.

Vanessa Pavelski da Gama é artista plástica graduada pela Unesp, campus Bauru, e pesquisadora das temáticas da percepção das cores e do desenvolvimento de técnicas de pintura adaptadas a indivíduos com deuteranomalia.

Joedy Luciana Barros Marins Bamonte é artista visual e doutora em ciências da comunicação (ECA-USP). É atual coordenadora e docente do Curso de Artes Visuais da Unesp, Bauru. É líder do Grupo de Pesquisa em Artes Visuais e Audiovisual e pós-doutoranda em pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

Nota:
Artigo desenvolvido a partir da pesquisa de iniciação científica com bolsa Fapesp com o título “A pintura realista e a discromatopsia: aspectos relacionais entre cor natural e percepção temporal em obras de arte adaptadas e não adaptadas para indivíduos com deuteranopia” (2019).

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