As cores ao longo da ciência

Por Peter Schulz

A epidemia de Peste Bubônica, que assolou a Inglaterra entre 1665 e o ano seguinte, ficou conhecida como a Grande Praga de Londres[i], mas espalhou-se também por várias cidades menores, inclusive Cambridge, onde se encontrava o jovem Isaac Newton. O Trinity College da universidade local interrompeu as atividades em agosto de 1665 e o recém-formado e já promissor filósofo natural se refugiou em Woolsthorpe, sua cidadezinha natal. Para a História da Ciência o período da epidemia ficou conhecido como Anni Mirabilis, devido às contribuições de Newton ao conhecimento humano realizadas durante seu isolamento. Uma das contribuições é uma Teoria das Cores, cujo ponto de partida foi a observação da decomposição de um feixe de luz branca nas cores do arco íris ao passar por um prisma.

Newton observou que cores diferentes sofriam deflexões (o termo mais apropriado é refrações) diferentes: “os raios menos refrangíveis são dispostos a exibir a cor vermelha […] e os mais refrangíveis exibem uma cor violeta profunda”. Os experimentos de Newton eram engenhosos e as medidas rigorosas para os padrões da época. Alguns anos mais tarde ele publicou sua Nova teoria sobre a luz e cores, de 1672, comentada em detalhe por Cibelle Silva e Roberto Martins[ii] para o leitor interessado.

Sua nova teoria estabelecia uma propriedade física para diferenciar as cores: seus ângulos de refração. Newton criou assim a expressão “espectro de cores”: começando no vermelho, passando por laranja, amarelo, verde, azul, índigo e violeta. No entanto, isso nada dizia sobre a natureza da luz. Newton acreditava que a luz seria composta por um feixe de partículas, que teriam massas diferentes, dependendo da cor. Contemporâneos, como Christiaan Huygens, acreditavam que a luz era composta por ondas que se propagam. Reflexão da luz, que todos conhecemos quando olhamos no espelho, e a refração (o efeito que faz com que, quando observamos uma colher em um copo de água, ela pareça “quebrada”), que ocupou a mente de Newton em seu retiro, não poderiam decidir entre uma e outra hipótese. Era necessário medir algo diferente: ondas sofrem interferência, partículas podem se chocar, mas não interferem. Uma experiência que precisa de interferência da luz é bem mais delicada do que de refração e foi preciso esperar quase um século, desde a publicação do monumental livro Optiks em 1704, no qual Newton coletou suas descobertas sobre o tema, para que isso se realizasse. O autor da façanha foi outro cientista inglês, Thomas Young, que em 1802 publica o seu Sobre a teoria da luz e das cores[iii]. Young é muito cuidadoso para introduzir a teoria ondulatória, contrária à “doutrina” de partículas de Newton, que poucos se atreviam a contestar, mesmo décadas após o falecimento de seu autor.

Young começa seu artigo declarando que no fundo ele não faz nada de muito novo. Anuncia que “as observações ópticas de Newton ainda são incomparáveis e, excetuando algumas inexatidões, nossa admiração somente aumenta por elas, quando as comparamos com tentativas posteriores de melhorá-las”. Afirma ainda (e com razão) que “um exame mais extensivo dos vários escritos de Newton mostram que ele em realidade foi o primeiro a sugerir tal teoria”. Ou seja, Young constrói um discurso que atribui a Newton um arcabouço da teoria ondulatória, afinal o seu antecessor chegara a descrever e interpretar também um fenômeno particular de interferência, que ficou conhecido como “os anéis de Newton”. Young, no entanto, vai muito mais longe e consegue definir as diferentes cores pela medida de frequências das ondas, compiladas na tabela que ilustra esse artigo. Agora as cores passaram a ser definidas não mais por ângulos de refração, mas pelas frequências das sete cores do espectro, substituindo a “doutrina Newtoniana”, mas insistir em desdizê-la seria “desnecessário e tedioso”:

“Os méritos do seu autor (Newton) em Filosofia Natural estão bem além de qualquer contestação ou comparação, suas descobertas ópticas da composição da luz branca  por si só imortalizam seu nome, e, os vários argumentos que tendem a derrubar seu sistema fornecem as mais fortes evidências da precisão admirável de seus experimentos.”

Resultados de Thomas Young para o espectro de cores em frequências

Esses eram os cuidados necessários no começo do século XIX para que se aceitasse finalmente uma nova teoria que se contrapunha a uma que era dogmaticamente aceita. Mas restava um problema: como as cores são percebidas por nós, independentemente de serem ondas ou partículas? Era preciso separar o espectro óptico, analisado até então pelos físicos, da percepção humana das cores. Alguns anos depois do trabalho de Thomas Young, em 1810, aparece uma outra “Teoria das cores” para lidar com o problema. Dessa vez não foi publicada por um físico, mas por um poeta: Johan Wolfgang von Goethe. O autor de Fausto fez experimentos e catalogou cores em seu livro, criticando também a “doutrina de Newton” de um ponto de vista diferente do de Young. Sua teoria teve recepção dividida: influenciou artistas visuais, incluindo a escola de Bauhaus, que, por sua vez, influenciou a ciência[iv]; mas foi rechaçada pela maioria dos físicos. Despertou ainda interesse de filósofos, em particular de Arthur Schopenhauer, que acabou publicando seu Sobre visão e cores em 1816. Os dois alemães discutiram acaloradamente e o filósofo, embora sempre respeitando o poeta, acabou se distanciando deste. Para Goethe, percepção de cores seria algo mais psicológico e para Schopenhauer algo mais fisiológico. Ainda hoje se discute se a teoria de Goethe é ciência ou não[v]. O papel do poeta como cientista e suas contribuições, diretas ou indiretas, à ciência, ainda são vasculhados e discutidos[vi]. O poeta, autodidata em várias áreas, acreditava que seria reconhecido mais pelas suas contribuições científicas do que por sua obra literária.

A roda de cores de Goethe (1809)

A percepção das cores também interessava aos físicos no século XIX, entre eles James Clerk Maxwell, que aliás ganhou um prêmio pelo seu trabalho “Sobre a teoria da visão das cores”. No entanto, esse físico escocês entra nessa história não pela visão das cores, mas por um problema deixado em aberto até aqui: afinal, qual é a natureza da luz? Thomas Young no começo do século XIX demonstrou que a luz seria composta de ondas. Mas ondas do quê? Maxwell, 60 anos depois, demonstrou que oscilações de campos elétricos e magnéticos se propagam como ondas e com a velocidade da luz. Não era coincidência, passamos a entender a natureza do espectro ótico destrinchado dois séculos antes por Newton.

O problema da visão das cores é consagrado também no mais instigante livro texto de Física já escrito, The Feynman Lectures on Physics[vii]. Richard Feynman dedica dois grandes capítulos ao tema: “Visão de Cores”, seguido de “Mecanismos da visão”, onde se lê um possível resumo dessa história toda, além de uma metáfora para a ciência:

“Na verdade, as pessoas que estudam anatomia e o desenvolvimento dos olhos mostraram que a retina é, de fato, o cérebro: no desenvolvimento do embrião, uma parte do cérebro avança para fora e longas fibras crescem para trás, conectando os olhos ao cérebro. A retina é organizada da mesma forma que o cérebro e, como alguém disse graciosamente, ‘o cérebro desenvolveu uma maneira de olhar para fora para o mundo. O olho é uma porção do cérebro que toca a luz, por assim dizer, do lado de fora’”.

Peter Alexander Bleinroth Schulz foi professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). É secretário de comunicação da Unicamp.

[i] Para entender o período, fica uma dica de leitura: Um diário do Ano da Peste de Daniel Defoe, editora Artes & Ofícios.

[ii] Silva, Cibelle Celestino e Martins, Roberto de Andrade. “A teoria das cores de Newton: um exemplo do uso da História da Ciência em sala de aula”. Ciência & Educação, vol. 9, p. 53-65 (2003): http://www.scielo.br/pdf/ciedu/v9n1/05.pdf

[iii] Young, Thomas. “The Bakerian Lecture: On the theory of light and colours”. Philosophical Transactions of the Royal Society of London, Vol. 92 (1802), pp. 12-48. Esse artigo recebeu uma bela tradução comentada de  Breno Arsioli Moura e Sergio Luiz Bragatto Boss: http://www.scielo.br/pdf/rbef/v37n4/0102-4744-rbef-37-4-4203.pdf

[iv] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/dennys-cintra/influencia-da-bauhaus-na-ciencia

[v] Böhme, Gernot. “Is Goethe’s theory of color science? Goethe and the sciences: a reappraisal”, p. 147-173. Boston Studies in the Philosophy of Science, vol.97 (1987)

[vi] Thomas W. Baumann, Marcelo Carnier Dornelas, Mário Luiz Frungillo e Paulo Mazzafera. “A ciência e Goethe: cafeína e flores”. Cienc. Cult. vol.62 nº 1 São Paulo, 2010.

[vii] Karan, Ricardo. “O que diferencia as Feynman lectures de livros tradicionais?” Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 40, nº 4, e4204 (2018)