Por Carlos Vogt
Em 1905, Proust, o grande autor de Em busca do tempo perdido, que ainda não existia como obra, publica, como prefácio à tradução para o francês do livro de John Ruskin Sesame and Lilies, o texto “Sobre a leitura”, que tive a oportunidade e a satisfação de traduzir para publicação simpática da Pontes Editores, na forma de um pequeno livro que já conheceu três edições (1989, 1991, 2001).
O texto é um elogio do livro e da leitura. Reproduzo, aqui, sua parte final como um convite e um desafio: para ler o texto completo, para sair indiferente à sua beleza e à sua provocação.
“Uma tragédia de Racine, um volume das memórias de Saint-Simon assemelham-se a belas coisas que não se fazem mais. A linguagem em que foram esculpidas por grandes artistas com uma liberdade que faz brilhar a sua doçura e ressaltar a sua força nativa, nos emociona como a visão de certos mármores, hoje inusitados, que empregavam os trabalhadores de outrora. Sem dúvida, nesses velhos edifícios a pedra conservou fielmente o pensamento do escultor, mas também, graças ao escultor, a pedra, de uma espécie hoje desconhecida, nos foi guardada, revestida com todas as cores que ele soube tirar dela, soube fazer aparecer e harmonizar. Trata-se da sintaxe viva na França do século XVII — e nela costumes e uma forma de pensamento desaparecidos — que amamos encontrar nos versos de Racine. São as próprias formas dessa sintaxe, postas a nu, respeitadas, tornadas belas pelo seu cinzel tão franco e tão delicado que nos emocionam nesses torneios de linguagem familiares até a singularidade e a audácia e dos quais vemos, nos trechos mais doces e mais ternos, passar como um traço rápido ou voltar atrás em belas linhas quebradas, o brusco desenho. São essas formas acabadas e tomadas à própria vida do passado que vamos visitar na obra de Racine como numa cidade antiga e conservada intacta. Experimentamos diante delas a mesma emoção que sentimos diante dessas formas abolidas, elas também são arquitetura que não podemos mais admirar senão nos raros e magníficos exemplares que nos legou o passado que os modelou: como os velhos muros das cidades, os torreões e as torres, os batistérios das igrejas; como no claustro, ou sob o ossário do Aitre, o pequeno cemitério que esquece ao sol, sob suas borboletas e suas flores, a urna funerária e a Lanterna dos Mortos.
Além disso, não são apenas as frases que desenham a nossos olhos as formas da alma antiga. Entre as frases — e eu penso em livros muito antigos que foram primeiro recitados —, no intervalo que as separa mora ainda hoje como num hipogeu inviolado, preenchendo os interstícios, um silêncio muitas vezes secular. Frequentemente no Evangelho de São Lucas, encontrando os dois pontos que o interrompem antes de cada trecho quase em forma de cânticos de que ele está recamado, ouvi o silêncio do fiel, que acabava de parar sua leitura em voz alta para entoar os versículos seguintes como um salmo que a ele lembrava os salmos mais antigos da Bíblia. Esse silêncio enchia ainda a pausa da frase que, sendo cindida para cercá-lo, guardou-lhe a forma; e mais de uma vez, enquanto eu lia, trouxe-me o perfume de uma rosa que a brisa entrando pela janela aberta havia espalhado na sala alta onde ficava a Assembleia e que não tinha evaporado por dezessete séculos.
Quantas vezes, na Divina comédia, em Shakespeare, tive esta impressão de ter diante de mim, inserido na hora presente, atual, um pouco do passado, esta impressão de sonho que se tem em Veneza na Piazzetta, diante de suas duas colunas de granito cinza e rosa que trazem sobre seus capitéis gregos, uma o Leão de São Marcos, outra, São Teodoro calcando com os pés o crocodilo — belas estrangeiras vindas do Oriente pelo mar que elas olham ao longe e que vêm morrer a seus pés e que, ambas, sem compreender as conversações trocadas em torno delas numa língua que não é a do país, nessa praça pública onde ainda brilha o seu sorriso distraído, continuam a retardar no meio de nós os seus dias do século XII que elas intercalam nos nossos dias de hoje. Sim, em plena praça pública, no meio de hoje cujo império é interrompido nesse local, um pouco do século XII, do século XII, há tanto tempo transcorrido ergue-se num duplo elã de granito rosa. Em torno, os dias atuais, os dias que vivemos circulam, agitam-se zumbindo em volta das colunas, mas aí, bruscamente, param, fogem como abelhas espantadas; porque elas não estão no presente, estes altos e finos enclaves do passado, mas num outro tempo no qual é proibido ao presente penetrar. Em torno das colunas rosas, voltadas para os seus grandes capitéis, os dias se agitam e zumbem. Mas neles interpostas, elas os afastam, preservando de sua fina espessura o lugar inviolável do Passado: — do Passado surgido familiarmente no meio do presente, com esta cor um pouco irreal das coisas que uma espécie de ilusão nos faz ver a alguns passos, e que, na verdade, estão a séculos de distância; orientando-se em todo seu aspecto um pouco diretamente demais ao espírito, exaltando-o um pouco como, sem surpresa, um espectro de um tempo sepultado; no entanto, ali, no meio de nós, próximo, tangível, palpável, imóvel, ao sol.”