Por Maria Clara Ferreira Guimarães e Matheus Antonino Vaz
Pesquisa divulgada pelo Barômetro das Américas (Lapop), vinculado à Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, em junho deste ano, apontou que 58% da população brasileira está insatisfeita com o funcionamento da democracia no país. O mesmo levantamento revelou que 79% dos entrevistados acreditam que a maioria dos políticos é corrupta e 38% acham que o presidente pode dissolver o STF (Superior Tribunal Federal) e governar sem ele – em 2012, este número era de apenas 13%. A pesquisa foi conduzida entre janeiro e março deste ano e entrevistou 1498 brasileiros, em parceria com a FGV (Fundação Getúlio Vargas) e com o Ibope.
Os números divulgados pelo Lapop evidenciam um descontentamento da população brasileira com a política tradicional e a descrença nas instituições democráticas do país. A alta abstenção nas eleições de 2018 reforça esse processo: no segundo turno, mais de 52,2 milhões de pessoas não votaram, de um total de 147,3 milhões de eleitores cadastrados.
Para entender esse processo e verificar se existe, de fato, uma crise na democracia brasileira e nas instituições, a ComCiência conversou com Andréa Marcondes de Freitas, professora no Departamento de Ciência Política da Unicamp, mestre e doutora em ciência política pela USP e autora de O presidencialismo da coalizão (Konrad-Adenauer-Stiftung, 2016), e Marcos Nobre, professor livre-docente de filosofia na Unicamp, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e autor de Imobilismo em movimento – da redemocratização ao governo Dilma (Companhia das Letras, 2013).
Ambos os especialistas afirmam haver crise; destacando como marco histórico as manifestações de 2013; e tomam critério duplo para analisar a situação. Enquanto Andréa enxerga a rejeição ao sistema político e aos partidos como a base para a crise da democracia no país, Nobre aponta as quebras de dois “contratos“ da democracia com o povo: não houve maior participação democrática nem melhoria da qualidade de vida.
A ameaça a esse sistema político não é um problema exclusivamente brasileiro, segundo Nobre, mas um processo globalizado, que já vem de vários anos. No mundo todo, as promessas da democracia de massas eram de uma melhoria nos padrões de vida e de distribuição de renda, e de uma democracia sempre mais inclusiva e participativa – mas as crises econômicas neoliberais desde 2008 quebraram essa expectativa e trouxeram desalento.
No Brasil ainda não havia, em 2013, uma crise econômica. Porém, Nobre explica que a revolução digital, que trouxe possibilidade de interatividade imediata entre as pessoas, maior participação, abertura e compartilhamento de ideias e informações, já havia gerado mudanças significativas na sociedade. E essa nova conformação social era muito diferente de como é a política tradicional, com partidos e um sistema que trabalham num modus-operandi analógico e fechado. Esse descompasso entre as novas formas de interação e sociabilidade na sociedade e as formas de se fazer política culminou num descontentamento geral. Assim, observou-se a “quebra” da primeira promessa, quando as pessoas não se sentiram participantes, nem incluídas, na política.
O marco da crise no Brasil como 2013 é uma referência, embora ela tenha raízes mais profundas. Para Andréa, a rejeição explícita ao político e aos partidos começa com o escândalo do mensalão e se agrava nos processos eleitorais seguintes. Como o discurso anticorrupção é unânime a todos os partidos – portanto, pouco crível – e os dois principais partidos apresentavam discursos sociais parecidos (pois PSDB e PT se aproximam nas pautas sociais), para o cidadão médio distingui-los se torna muito difícil.
Quando a crise econômica chegou ao Brasil, em 2015, é quebrado o segundo contrato da democracia, citado por Nobre. Como não houve uma repactuação do sistema político com a nova forma de sociabilidade, o ciclo das crises globais se fechou. A ideia antissistema já estava enraizada, e a população recusou o mundo político, já que ele não deu conta de suas demandas.
Renovação e crise nas instituições
Um dos reflexos dessa rejeição à política tradicional foi a nova composição da Câmara dos Deputados, eleita em 2018, em que 27,5% de sua composição é de parlamentares que nunca exerceram cargo público antes. Parte deles pertencente à extrema direita, que melhor entendeu a nova sociabilidade digital, e soube capitalizá-la de um ponto de vista eleitoral.
Como Bolsonaro se intitula antissistema, ao ser eleito continuou com postura excludente: não fez nenhuma coalizão, utiliza decretos presidenciais para diminuir a participação do Congresso, fechou ou reduziu a participação da população em conselhos, como no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), personificou a instituição da presidência e toma atitudes como indivíduo e não como instituição. A personificação das instituições é, para Nobre, o colapso das instituições, e para Andréa é a definição do antidemocrático e ameaça à democracia.
Ao falar de soluções para a proteção da democracia, Nobre ressalta a urgência de discutir a repactuação entre a rotina diária e a política. Democracia, afirma, é uma forma de vida, é para além de um sistema. “Democracia vem de baixo, depende de uma cultura política, deve ser exercida no cotidiano”. Então, é necessário que ela acompanhe as novas formas de sociabilização, que seja mais aberta, transparente do ponto de vista partidário, de distribuição de recurso, das candidaturas. Porém, o mais urgente não é defender ou estabelecer pautas, mas entender que essa discussão de repactuação deve ser aberta, convocando todas as forças democráticas.
Maria Clara Ferreira Guimarães é graduada em linguística pela Unicamp. Atualmente é aluna da especialização em jornalismo científico no Labjor/ Unicamp.
Matheus Antonino Vaz é formado em jornalismo pelo Mackenzie. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.