Por Luis Felipe Miguel
Compatibilizar a vontade de democracia com a necessidade de representação é o desafio em aberto, porque os representantes são estimulados a prestar contas prioritariamente a detentores de recursos importantes (financiadores de campanha, meios de comunicação), em vez de prestá-las aos seus eleitores. A redução da democracia à competição eleitoral representa o abastardamento do ideal de igualdade política e de soberania popular que era associado a ela. A experiência histórica demonstrou os limites da solução liberal padrão, que é afirmar uma igualdade na lei e julgar que, com ela, as assimetrias presentes na sociedade serão suspensas na política.
Há bastante tempo, a “democracia” é um valor reivindicado por praticamente todos os atores políticos[1]. Candidatos disputam eleições sempre garantindo que são mais democratas que seus adversários. A Coreia do Norte se denomina oficialmente “República Democrática da Coreia”. Jair Bolsonaro garante no Twitter, dia sim, dia também, que é um verdadeiro democrata.
Esse consenso esconde uma disputa acirrada sobre o significado da democracia. A palavra tem origem grega e significa “governo do povo”. Em nenhum dos países que se dizem democráticos, porém, o povo realmente governa. As decisões são tomadas por um pequeno grupo de pessoas.
Nos regimes políticos em geral aceitos como democráticos, o que ocorre é a delegação do poder decisório por meio do voto. Mas o voto foi, na maior parte da história do pensamento político, percebido como um instrumento estranho à ordem democrática. A democracia grega se caracterizava pela participação direta na tomada de decisões; os ocupantes de cargos públicos eram em geral escolhidos por sorteio. Quando Montesquieu dizia que “o sufrágio por sorteio está na natureza da democracia; o sufrágio por eleição está na da aristocracia”, já em meados do século XVIII, ele estava só confirmando o senso comum ilustrado da sua época.
Um marco da virada na teoria democrática, que permitiu que o conceito de “democracia” se afastasse das noções de poder popular direto e de igualdade política, foi a obra do economista austríaco Joseph Schumpeter. Seu livro Capitalismo, socialismo e democracia, de 1942, propõe explicitamente uma “nova doutrina da democracia”, em que o componente central é a concorrência de minorias pelo voto popular. O povo não governa, apenas decide quem vai governar. Essa decisão é quase aleatória, uma vez que ele enfatiza que as pessoas comuns, por estarem muito afastadas das decisões públicas e presas às suas próprias preocupações imediatas, são incapazes de fazer escolhas políticas consequentes.
Schumpeter promoveu, na verdade, uma brutal redução do conteúdo normativo da democracia. Sua façanha foi compatibilizar a democracia – da maneira como ele a redefiniu – com uma corrente de pensamento que nasceu no final do século XIX exatamente com o intuito de mostrar que qualquer ordem democrática era impossível, a chamada “teoria das elites”. Ele percebeu, porém, que no mundo contemporâneo nenhuma outra forma de governo era capaz de angariar legitimidade. Sua democracia redefinida gira em torno da eleição, momento em que o povo pensa que está exercendo o poder, mas está apenas decidindo quem vai exercê-lo em seu nome.
O sucesso da “virada schumpeteriana” na teoria da democracia se deve à conveniência política. Sua democracia concorrencial é desenhada à imagem e semelhança dos regimes políticos ocidentais, que assim podiam ostentar de maneira verossímil o rótulo de “democráticos”. Mas é inegável que Schumpeter toca em outro ponto importante, que é a dificuldade de compatibilização entre o modelo da democracia direta ateniense e a realidade das sociedades contemporâneas, nas quais a representação política é inevitável.
O motivo mais óbvio para justificar a impossibilidade de democracia direta diz respeito à grande população dos Estados contemporâneos. Mas há outra característica da democracia contemporânea que trabalha contra a possibilidade de que ela se torne direta. Na Grécia antiga, o “povo” que tomava as decisões, isto é, os cidadãos, era formado por uma minoria bastante homogênea. Não tinham acesso à cidadania as mulheres, os escravos e os metecos (qualquer pessoa que não fosse filha de pai e mãe atenienses), além dos menores de idade. Com isso, vários dos principais conflitos de interesses na sociedade não se manifestavam na arena política. É de se supor que caso, por exemplo, escravos estivessem presentes, as assembleias corressem sério risco de evoluir para um confronto intratável.
No contexto das democracias contemporâneas, houve uma gradativa expansão do acesso à cidadania política. Trabalhadores e não-proprietários do sexo masculino e depois mulheres ganharam o direito de votar e de disputar eleições. A inclusão, fruto da luta dos grupos sociais antes excluídos, é um dos grandes avanços dos regimes democráticos liberais. Mas significa que a arena política passa a incorporar todos os grandes conflitos de interesses presentes na sociedade.
A intermediação promovida pela representação política funciona, assim, como uma maneira de amenizar o choque entre grupos antagônicos, que poderia colocar em risco as instituições. Os representantes ganham experiência para filtrar as demandas e negociar compromissos, contribuindo para manter o conflito social em níveis administráveis. Dependendo do ponto de vista, isso pode ser considerado uma traição à vontade dos representados ou uma forma de perseguir seus melhores interesses. Seja como for, trata-se de uma função crucial desempenhada pela mediação representativa nas democracias contemporâneas.
Portanto, qualquer modelo de democracia que se queira construir para o mundo atual deve ser representativo. O problema que se coloca, do ponto de vista da teoria e da prática política, é que essa necessidade não anula o fato de que a expressão “democracia representativa” encerra uma contradição em termos. É, como já visto, um governo do povo no qual o povo não governa. Compatibilizar a vontade de democracia com a necessidade de representação é o desafio em aberto.
É possível mesmo dizer que a representação é inerente à política. Agir politicamente é pretender agir em nome de um grupo. Mesmo na democracia antiga, o cidadão que não participava ativamente dos debates na ágora estava tendo suas posições representadas pelos discursos de outros. A diferença – além do fato de que, no final, todos votavam para decidir as medidas que seriam tomadas – é que ninguém estava condenado a essa posição. Se alguém julgava que nenhum dos oradores da ágora contemplava adequadamente suas opiniões, podia se inscrever para falar pessoalmente. Hoje, o cidadão comum não tem condições de interromper os debates no parlamento e falar por conta própria quando acha que os representantes eleitos não o satisfazem. Ou seja: a posição de representado deixou de ser voluntária para se tornar compulsória.
A ciência política chama de accountability o fato de que os representantes devem prestar contas aos eleitores e se submeter a seu veredito, concorrendo a novas eleições. A accountability é o principal mecanismo para garantir que a representação política realize, de alguma maneira, o ideal de governo do povo que está presente na noção de democracia. O representante é democrático na medida em que dialoga com seus representados, em que responde a eles e é sensível a suas preferências.
O problema é que, nas circunstâncias concretas das democracias contemporâneas, os mecanismos de accountability tendem a funcionar mal. Uma participação política restrita ao voto nas eleições não fornece estímulo suficiente para a qualificação dos constituintes, que assim ficam despreparados para a interlocução com seus representantes. O fluxo de informações também tende a ser defeituoso, refletindo os filtros da mídia. Os representantes são estimulados a prestar contas prioritariamente a detentores de recursos importantes (financiadores de campanha, os próprios meios de comunicação), em vez de prestá-las aos seus eleitores.
Enfim, há o fato de que a representação política é multifuncional, ao passo que o voto, que é no final das contas a única forma que o eleitor tem de indicar seu veredito sobre o comportamento do representante, é pouco expressivo. No exercício de suas funções, o representante decide sobre uma multiplicidade de questões (política econômica, política externa, política ambiental, política trabalhista, política educacional etc.). O eleitor deveria colocar tudo na balança, dar o devido peso a cada item, chegar a uma resultante e expressá-la com seu único voto, o que constitui uma tarefa quase impossível.
Os ruídos na relação entre representante e representado, porém, são diferenciados de acordo com a posição social. Os grupos subalternos são aqueles que se encontram mais distanciados dos espaços de exercício do poder, aqueles que têm menos familiaridade com o vocabulário e a sintaxe da política. Muitas vezes, adotam como representantes pessoas oriundas de outras posições sociais, exatamente porque tais pessoas transitam melhor nos espaços de exercício de poder. Mesmo seus próprios integrantes, caso se tornem representantes políticos, são catapultados para outro universo social e tendem a adotar um novo modo de vida. Em todos os casos, o fosso entre representantes e representados acaba sendo maior. Ou seja: o ruído que a representação política impõe à expressão dos interesses dos representados costuma ser tanto mais significativo quanto mais eles estão afastados das posições sociais privilegiadas.
O impacto das desigualdades ocorre por diferentes vias. Em primeiro lugar, a possibilidade de intervenção eficaz no processo político depende de recursos materiais que estão desigualmente distribuídos. Dinheiro significa possibilidade de acesso direto aos líderes políticos por meios como o financiamento de campanhas eleitorais, o lobby, o controle dos meios de comunicação de massa ou mesmo a corrupção. Trabalhadores controlam menos riquezas do que patrões – por isso, já largam atrás na competição por influência política.
Na verdade, mesmo na ausência de tais tentativas deliberadas de influência sobre os tomadores de decisão, numa economia capitalista os controladores dos meios de produção estão em situação de vantagem política. Eles definem o nível de investimento econômico, que por sua vez impacta a arrecadação de impostos, que é o financiamento necessário para a sobrevivência do próprio Estado. Por isso, mesmo na ausência de pressões expressas, os gestores do Estado precisam estar atentos aos interesses do capital.
Um importante recurso material, condição necessária para qualquer forma de participação política, é o tempo livre. Empregados têm em geral muito menos tempo livre do que patrões, não só porque estão submetidos à jornada de trabalho. Trabalhadores e pobres tendem a perder mais tempo em seus deslocamentos, já que em geral vivem mais longe e utilizam meios de transporte mais morosos. E são mais dependentes de serviços públicos que costumam impor a seus usuários longas filas e esperas.
As mulheres são duplamente prejudicadas nesse aspecto. Elas costumam controlar menos riquezas, por motivos culturais ligados ao padrão vigente de dominação masculina, e são as principais responsáveis pelas tarefas domésticas, que consomem grande quantidade de tempo. Mulheres que trabalham em emprego remunerado fora de casa – e, portanto, potencialmente têm maior acesso à esfera pública e às redes de contato que propiciariam mobilização política – continuam respondendo pela gestão da unidade doméstica, o que comprime severamente suas oportunidades de participação.
As hierarquias presentes nos espaços de vivência cotidiana reforçam o distanciamento de mulheres e de trabalhadores de ambos os sexos em relação à atividade política. Nas empresas e no lar imperam, em geral, estruturas autoritárias, que são o oposto do chamamento à participação democrática. O treinamento social que oferecem empurram para a passividade política.
Na medida em que estão em geral colocados nas posições de menor poder econômico, imigrantes e integrantes de grupos étnicos ou raciais subalternos costumam também estar desprovidos dos recursos materiais que facilitam o acesso à política. Essa situação gera ainda um efeito simbólico. Uma vez que a política se torna um espaço social em que estão virtualmente ausentes as mulheres, os trabalhadores, os negros e os imigrantes, reforça-se a impressão de que tais grupos realmente não pertencem a esse lugar.
O sentimento de distância em relação à política é ampliado pelo fato de que nas democracias eleitorais o cidadão comum é poucas vezes chamado a participar. No século XIX, ao fazer sua defesa do sufrágio universal, Stuart Mill ainda julgava que o direito de voto seria um poderoso estímulo à qualificação política popular. Hoje, com a vantagem da experiência histórica, nós sabemos que não é assim. Tendo só um voto em meio a muitos milhares, talvez milhões de outros, portanto com pouquíssima possibilidade de definir o resultado e sendo convidado a se expressar apenas uma vez a cada dois ou quatro anos, o eleitor não é levado a acompanhar e a compreender a política.
Isso não quer dizer que a democracia eleitoral seja irrelevante, do ponto de vista dos dominados. A eleição obriga que seus interesses sejam levados em conta, mesmo que de forma lateral, e permite que eventualmente o jogo político das elites seja desorganizado por “surpresas” que surgem de baixo. Por isso, por vezes interesses poderosos se sentem tentados a intervir contra resultados eleitorais que julgam prejudiciais a eles. Na história recente do Brasil, servem de exemplos o golpe de 2016, que depôs uma presidente legitimamente eleita, e a prisão arbitrária do candidato favorito às eleições de 2018, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que o cientista político Renato Lessa chamou de “impeachment preventivo”.
Ainda assim, é correto dizer que a redução da democracia à competição eleitoral representa o abastardamento do ideal de igualdade política e de soberania popular que era associado a ela.
O que ocorre, portanto, é que as desigualdades sociais transbordam sistematicamente para a arena política, fazendo com que alguns poucos tenham uma capacidade muito maior de influenciar na tomada de decisões. A experiência histórica demonstrou os limites da solução liberal padrão, que é afirmar uma igualdade na lei e julgar que, com ela, as assimetrias presentes na sociedade serão suspensas na política. Todos têm direito de voto e os votos têm o mesmo peso, as leis são as mesmas para todos: tudo isso é um avanço igualitário não desprezível. Mas trabalhadores e patrões no capitalismo, mulheres e homens numa sociedade sexista, negros e brancos numa sociedade racista continuam tendo possibilidades muito diferentes de ocupar cargos de poder, de participar das deliberações políticas e de ter seus interesses levados em conta nas decisões do Estado.
Para muita gente este é simplesmente um fato imutável das sociedades humanas, contra o qual não vale a pena se revoltar. A democracia que temos – limitada à delegação de poder por meio do voto, com a maioria da população afastada das decisões, permeável a todas as assimetrias – seria tudo o que podemos ter. Outros, porém, vão tentar apontar caminhos que produzam uma ordem democrática mais genuína, em que a igualdade política seja ampliada e cheguemos mais perto do ideal de autonomia coletiva, isto é, que as regras sejam produzidas em conjunto por todas as pessoas que serão submetidas a elas.
Sem pretender esgotar a discussão que ocorre no âmbito da teoria democrática, cabe destacar um ponto: para que a democracia se aprimore, é necessário ampliar os momentos em que as pessoas comuns são chamadas a decidir. É necessária a democratização da vida cotidiana: nos locais de trabalho, nas escolas, nas vizinhanças, nas famílias.
Além de ampliar a autonomia de todos e de cada um, a participação na vida cotidiana produz educação política. Ela gera entendimento sobre o funcionamento da política e da sociedade. O resultado líquido seria uma capacidade maior de interlocução com os representantes políticos e de fiscalização de seus atos. Isto é, a accountability, que na democracia eleitoral tende a funcionar precariamente, seria aprimorada com o treinamento oferecido pela participação na base.
Uma democracia política mais autêntica depende, portanto, de uma sociedade democratizada. No momento, parece um sonho irrealizável. Há um processo de refluxo da democracia em todo o mundo, com o avanço de práticas e discursos abertamente autoritários. O Brasil é um triste exemplo. Mas cabe perguntar se a democracia não está em crise também por ter se acomodado a um modelo tão pouco exigente, que convivia com toda a sorte de desigualdades e não realizava quase nenhuma de suas promessas de emancipação. Talvez a democracia mais sólida que desejamos construir para o futuro precise ser também uma democracia mais radical.
Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Editora Expressão Popular, 2019), Dominação e resistência – Desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Ed. Unesp, 2017), Notícias em disputa – Mídia, democracia e formação de preferências no Brasil (com Flavia Biroli, Contexto, 2017), O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Editora UnB, 2015), Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014) e Mito e discurso político (Editora Unicamp, 2000).
[1] Este texto resume, reelabora e atualiza o artigo “Democracia representativa e desigualdades sociais”, publicado no livro O que é democracia? (org. de Carlos Serra; Lisboa: Escolar, 2017).
Leia também, do mesmo autor:
Os meios de comunicação e a democracia (Dossiê Pós-verdade, março de 2017)