Por Allison Almeida
“Se entendermos as universidades públicas como espaços de produção de conhecimento e de interação forte com a capacidade produtiva, calcada em inovação, contribuindo de forma substantiva para ampliar o nível de produtividade e competitividade do país, elas seriam a melhor opção de investimento que uma nação pode ter”.
Ronaldo Mota é diretor científico da Digital Pages e membro da Academia Brasileira de Educação. Consultor, escritor e conferencista nas áreas de novas tecnologias e metodologias inovadoras em educação. Entre os cargos que exerceu ao longo da carreira, foi reitor da Universidade Estácio de Sá, secretário nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, secretário nacional de Educação Superior, secretário nacional de Educação a Distância e ministro interino do Ministério da Educação.
Bolsonaro recebeu indicações do seu guru, Olavo de Carvalho, para o Ministério da Educação. O atual dirigente da pasta, o economista Abraham Weintraub, é um ex-aluno de Carvalho e, entre as várias declarações, afirmou que a universidade pública é ideologicamente organizada à esquerda e que se gasta demais com educação pública superior no Brasil. Que recado o governo atual passa às universidades?
Entendo pouco da dinâmica interna deste governo. O que posso atestar, tendo sido secretário nacional de Educação Superior, é que as universidades públicas constituem, do ponto de vista ideológico, um espaço muito plural, sendo praticamente impossível identificar, claramente, uma tendência dominante.
Acho mais razoável observar o contrário, nos outros países onde morei (Canadá, Reino Unido e Estados Unidos) as universidades me pareciam mais envolvidas diretamente com os temas nacionais, em geral complexos, polêmicos e mais sujeitos a visões politizadas.
Sobre gastar demais, a reposta está longe de ser simples. Depende do papel que concebemos, enquanto sociedade, para as universidades públicas. Se forem entendidas somente como centros de ensino, de transmissão simples de conhecimento, elas, de fato, seriam muito caras, podendo sugerir um certo desperdício. Porém, se as entendermos como espaços de produção de conhecimento e de interação forte com a capacidade produtiva, especialmente calcada em inovação, contribuindo de forma substantiva para ampliar o nível de produtividade e competitividade do país, neste caso as universidades seriam a melhor opção de investimento que uma nação pode ter.
A produção científica brasileira é realizada prioritariamente dentro das instituições públicas. Porém, desde 2013, o governo vem cortando sistematicamente as verbas para elas. No momento, há um bloqueio de 5,8 bilhões do orçamento para as universidades públicas. Como esses cortes podem prejudicar a evolução científica do país?
De fato, boa parte da pesquisa é realizada dentro de universidades públicas no Brasil. Isso, que pode e deve ser visto como um elogio a elas, paradoxalmente, pode refletir um problema grave para o país. Precisaríamos ter uma melhor distribuição, caminhando para um novo contexto onde parte substantiva da pesquisa, tanto básica como aplicada, fosse também desenvolvida dentro de empresas e organizações privadas em geral.
Quanto, especificamente, ao bloqueio no orçamento das universidades federais, ele impacta indiretamente (neste caso, indiretamente não quer dizer desimportante) a pesquisa, dado que, de fato, esse corte atinge mais diretamente despesas básicas (limpeza, segurança, água, luz etc.). As verbas especificamente para pesquisa vêm, principalmente, de outras fontes (FNDCT, CNPq, Capes, Finep etc.), as quais têm sido também, fortemente, impactadas. Seja de uma fonte ou outra, o resultado líquido é que vivemos um período de estrangulamento que terá impactos imediatos no presente, podendo comprometer nosso futuro.
As nações que ancoram seus desenvolvimentos econômicos, sociais e ambientais sustentáveis em conhecimento não hesitam, especialmente em épocas de crise, em garantir e ampliar os financiamentos de ciência, tecnologia e inovação. Estamos, infelizmente, fazendo o contrário, o que gera menos perspectivas sobre como sairemos da crise em que nos encontramos.
Em 2017, um estudo do Banco Mundial sugeriu a privatização do ensino público no país. Como o senhor observa esse movimento de ordem econômica que defende a privatização das universidades?
Nosso ensino superior já está em boa parte privatizado, lembrando que mais de três quartos das matrículas já estão nesse setor. A questão é saber como estabelecer modelos de gestão adequados à figura das universidades públicas, especialmente as federais, tal como gostaríamos que elas fossem. Como elas estão hoje, amarradas nos termos gerais da administração pública, em nada favorece aquilo que está disposto na Constituição brasileira, a qual no seu art. 207 estabelece uma autonomia, da qual elas jamais desfrutaram.
Caso venham a desfrutar, também não serão simples os desafios, mas acho que é uma experiência que elas precisariam passar. Algo como dispor de figura especial, onde um orçamento global viria acompanhado de um conjunto de metas, periodicamente analisadas por comitês externos de especialistas (como se faz em várias partes do mundo, muitas vezes com pesquisadores e gestores estrangeiros) e renováveis, à luz dos resultados. Essa abordagem é muito mais interessante e factível do que o debate raso acerca de cobrar mensalidades ou não cobrar.
Esta discussão envolve a sociedade ter claro o que ela espera das universidades públicas (neste aspecto, distintas do setor privado que atende a outra lógica) e definir mecanismos de cobranças de médio e longo prazos. Não de detalhes burocráticos de processos, mas sim de resultados objetivos conforme contratualizados anteriormente. Para tanto, não sejamos ingênuos, haverá que ser aprovada uma lei que regulamenta e complementa o art. 207, estabelecendo a figura específica das universidades públicas federais. Dificilmente fugiremos desse salutar, estratégico e tardio debate.
Quais medidas o Brasil deve seguir para ampliar a democratização do acesso às universidades públicas e como melhorar o vínculo das instituições com a população em geral?
Temos democratizado, a olhos vistos, as universidades públicas, mas é ainda insuficiente. A mais efetiva ferramenta, da qual ainda não fizemos uso devido, seria a melhoria substantiva da qualidade do ensino médio público. Estreitar os compromissos das universidades públicas com essa missão (melhorar o ensino médio público) é uma tarefa hercúlea, mas vejo poucos objetivos mais urgentes e imprescindíveis do que esse. Por sinal, tem a ver com a questão anterior. Entre os itens do “contrato” que a instituição deveria estabelecer com a sociedade, imagino que esse compromisso deveria ter um peso substantivo.
É verdade que uma parte dos ingressantes nas universidades públicas vem do ensino médio público, mas é igualmente observável que nos cursos mais concorridos, a maioria vem de escolas privadas. Não há problema algum que ingressantes venham também de escolas particulares, porém, há prejuízo grave quando desperdiçamos talentos ao não permitirmos que aqueles oriundos de escolas públicas, mesmo que talentosos, possam concorrer em pé de igualdade.
Em suma, sem prejuízo das infinitas outras possibilidades de vincular as instituições com a população em geral, creio que a especificidade de contribuir com o ensino público de nível médio deveria ser uma prioridade e ser um dos focos das universidades públicas.
O mundo acadêmico discute a melhor forma de integrar educação, tecnologia e inovação dentro do ensino superior. Quais os grandes desafios para a universidade pública nos próximos anos, em termos de currículo, conteúdo de aprendizado e utilização de tecnologia visando uma formação acadêmica mais ampla?
Integrar educação, tecnologia e inovação dentro do ensino superior implica em saber exatamente que profissional um país precisa. Uma pista seria identificarmos as ferramentas com que medimos o que seja qualidade. Por exemplo, no Brasil, os formandos do ensino superior atendem a um exame denominado Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade).
Os objetivos do Enade têm sido avaliar e acompanhar o processo de aprendizagem e o desempenho acadêmico dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos previstos nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do respectivo curso de graduação, incluindo também mensurar suas habilidades para compreender temas contemporâneos e ligados a outras áreas do conhecimento.
Vários estudos têm destacado a incapacidade de tratar, de forma adequada, os elementos centrais de aprendizagem e criticam o processo por ser demasiadamente dispendioso e sem contrapartida clara que evidencie resultados confiáveis.
Além disso, a sua aplicação trienal por área de conhecimento, findou estabelecendo, como prática quase geral, preocupações diferenciadas entre aquelas turmas que farão e as que não farão o exame. Para as turmas que fazem o exame, a visão restrita de preparar para as questões de maior incidência acaba por distorcer as próprias DCNs. Para as que não fazem o exame, não há evidências de que os resultados obtidos estejam sendo utilizados para a melhoria contínua de aprendizagem.
O Enade permite analisar aspectos comparativos entre os que fazem a mesma edição do exame, porém, é inadequado para fornecer um diagnóstico comparativo entre edições diversas. Mesmo entre os formandos de uma edição específica, os processos de ajustes de curvas fornecem insuficiente informação acerca de quão satisfatório, em termos absolutos, foi o processo de aprendizagem. Um possível novo Enade deveria mensurar a transversal capacidade de aprender continuamente e alguns aspectos comportamentais do formando, permitindo ser aplicado, anualmente, o mesmo teste a todas as áreas de conhecimento.
Ao se incorporar essa abordagem, que corresponde ao estado da arte em termos de teoria de aprendizagem, a proposta mais adequada seria que o exame fosse revelador da maturidade intelectual do formando, no que diz respeito a itens tais como: i) capacidade de desenvolver raciocínios críticos, lógicos e abstratos; ii) domínio do método científico, na solução de problemas e missões; iii) habilidade de entender textos complexos e de escrever de forma a se fazer entender claramente pelos demais (letramento sofisticado); iv) letramento matemático substantivo, indo além de operações matemáticas simples; v) capacidade de juntar conhecimentos de áreas diversas do saber, propiciando resolver problemas que demandam multidisciplinaridade e olhares múltiplos; vi) entender processos que envolvem programação simples, elementos de modelagem e simulação, ingredientes inerentes aos temas contemporâneos; e vii) demonstrar domínio de habilidades socioemocionais associadas a enfrentamentos, em equipe, de temas complexos.
Não há receita simples ou única para atingirmos um desenvolvimento econômico e social sustentável, mas, por certo, educação superior, integrada à tecnologia e inovação, é parte relevante dos ingredientes. Podemos formar profissionais para um passado, o qual, ainda que próximo, vai ficando distante, ou para um futuro, que, sem pedir licença, já começou. A forma como medimos a qualidade de nossos formandos ajuda a definir nossas perspectivas, enquanto nação.
Você defende a tese de que, num futuro próximo, o professor se transformará numa espécie de designer educacional. No que consiste esta tese e como, se colocada em prática, ela poderá ajudar a educação pública superior no Brasil?
Todas as profissões estão sofrendo mudanças radicais à luz das tecnologias contemporâneas, incluindo os docentes. Ainda que o setor educacional tenha sido até aqui relativamente menos atingido que outros, ele será muito em breve um dos mais afetados, com profundo impacto no papel reservado ao professor.
Educar, nesse novo contexto, não está ficando mais simples, está ficando mais complexo. Sem prejuízo dos conteúdos tradicionais, incluindo letramento, matemática e gosto pelas ciências, pelas artes e pelos esportes, os professores terão que explorar novas habilidades, como o uso inteligente das tecnologias digitais, habilidades interpessoais, aprendizagem autônoma e capacidade de inovação.
No cenário contemporâneo, o professor vai gradativamente se transformando em um designer educacional. Designer educacional é o profissional responsável pela tradução de conteúdos acadêmicos via diferentes mídias e recursos, envolvendo análise e escolhas para melhor disponibilizar os assuntos, considerando o público a ser atingido e a linguagem a ser utilizada. Assim, da mesma forma que um arquiteto se preocupa com a questão da acessibilidade, o designer educacional deve projetar cursos apropriados para pessoas ou grupos, sempre levando em contas suas especificidades e peculiaridades.
Além de manter as tarefas originais de transmissão de conhecimento, ao designer educacional caberá coordenar a construção de interfaces digitais sofisticadas, as quais serão portais educacionais com funcionalidades múltiplas e complexas que, para serem desenvolvidas, exigirão equipes com profissionais de diversas origens e faixas etárias.
O professor designer educacional é a expressão maior e mais completa do mestre contemporâneo, indo além de ministrar o conteúdo, sendo também responsável por preparar o educando para o hábito de aprender a aprender e estimular as atividades colaborativas em equipe, desenvolvendo capacidades de aprendizagem que são consideradas imprescindíveis aos profissionais e cidadãos do mundo do futuro que começou ontem.
No livro Educando para inovação e aprendizagem independente, você avalia, entre outras, ser necessário repensar a educação para que ela se volte à inovação. Existe algum movimento nesse sentido acontecendo no ensino superior brasileiro ou o que você descreve ainda é uma realidade distante nas universidades do país?
Educar, no século XXI, tende a ser progressivamente uma arte — arte que inclui a técnica, mas a transcende, contemplando também criatividade, inovação, empreendedorismo, metacognição e muito mais. Não se trata de minimizar o ensino, como o conhecemos hoje, mas de evidenciar sua insuficiência no mundo contemporâneo e no futuro próximo.
Educação, dentro dessa abordagem, contribui com erodir a separação entre vida e arte.
A arte da educação viabiliza entender melhor o educando, o educador e, consequentemente, a vida. Educação, arte e vida, conjuntamente, esclarecem complexidades e preparam a todos para desafios que somente assim se permitem serem decifrados e resolvidos. Educar em consonância com as exigências deste século é sim uma forma de arte.
Embora estejamos todos convencidos acerca da relevância crescente da inovação, ainda sabemos pouco sobre como educar para a inovação. O que sabemos é que, à medida que exploramos a capacidade de aprendizagem independente, que todos temos, caminhamos na direção da emancipação do educando e de sua preparação para a educação permanente ao longo de toda a vida.
Você é um entusiasta do uso da tecnologia para a aplicação de metodologias de ensino a distância. Na sua visão, a universidade pública precisa ter mais protagonismo nesse modelo de educação? Se sim, como deve proceder?
Antes de tudo defendo a importância de incorporar, na educação contemporânea, a aprendizagem mediada por tecnologias. Educação a distância é o nome da modalidade que nos anos passados nos obrigou a pensar mais e melhor sobre o papel das tecnologias digitais na educação.
Os avanços econômicos mais recentes do Brasil têm sido, principalmente, ancorados no incremento na exportação de alimentos, fruto do aumento de competitividade do agronegócio, e no aumento de demanda mundial por algumas commodities, especialmente minérios. Por mais relevantes que essas áreas sejam, é preciso contextualizá-las numa dinâmica acentuada de mudanças econômicas no cenário global.
No contexto atual, a possibilidade de um desenvolvimento econômico, social e ambiental sustentável depende de múltiplos fatores, mas há relativo consenso de que a variável mais relevante de todas é o aumento da produtividade média. O principal ingrediente para o incremento de produtividade é educação de qualidade, viabilizando que trabalhadores, empresários e gestores, privados e públicos, possam contribuir mais efetivamente com a produção de bens e serviços.
Para tanto, ao lado do letramento avançado (produção e compreensão de textos complexos) e do letramento matemático (facilidade nas operações matemáticas mais sofisticadas), precisamos estar preparados para o letramento digital (domínio de plataformas, softwares e elementos básicos de programação). No que diz respeito ao conteúdo, além dos conhecimentos clássicos, os procedimentos específicos de cada área e as técnicas associadas à educação, atualmente, exige contemplar, com muito mais ênfase, habilidades individuais e coletivas.
Quanto às habilidades individuais, incluem-se as flexibilidades cognitivas (aprender em contextos diversos) e metacognitivas (aprender a aprender em um cenário de educação permanente ao longo de toda a vida) e as habilidades socioemocionais, a compreensão crítica de realidades históricas e geográficas complexas, acrescidas de espírito empreendedor e capacidade criativa. No que diz respeito às habilidades coletivas, há que se cultivar educacionalmente o trabalho em equipe e a gestão de pessoas, calcados na tolerância, na empatia e na compaixão. Frutos de tais predicados, estimulamos a formação de profissionais e cidadãos preparadores, mais completos e cientes dos contextos em que eles desenvolvem seus ofícios e administram suas vidas.
As universidades, especialmente as públicas, precisam estar fortemente envolvidas nesse debate, para que sejam atores ativos desse processo complexo de transformações em curso.