Por Luanne Caires
Na esfera federal, políticas recentes representam retrocessos em mudanças do clima e conservação da biodiversidade, mas o quadro pode ser amenizado pelos municípios.
Na última quarta-feira (5), eventos por todo o país celebraram o Dia Mundial do Meio Ambiente. A data marcou também o lançamento do projeto Juntos pelo Araguaia, que tem o objetivo de revitalizar a bacia do Araguaia por meio da recomposição florestal e da conservação do solo e da água. Durante a cerimônia de lançamento, que ocorreu em Aragarças (GO), o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, afirmou que a dicotomia entre meio ambiente e agricultura deve ser superada e que os brasileiros precisam de um ambiente equilibrado e de medidas que defendam a biodiversidade e a sustentabilidade.
O discurso do ministro se alinha aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela Organização das Nações Unidas em 2015. Cada um dos 17 objetivos é associado a um conjunto de metas específicas para guiar o desenvolvimento dos países, aliando conservação ambiental, crescimento econômico e responsabilidade social. A ideia é que os países cumpram as metas propostas em um período de 15 anos, o que caracteriza a chamada Agenda 2030.
No entanto, a prática no Brasil se distancia cada vez mais do discurso apresentado por Salles, ao menos na área de meio ambiente. Nesta área, os objetivos 13, 14 e 15 da Agenda 2030 destacam, respectivamente, a preocupação com o clima e com a conservação da vida aquática e terrestre.
A jornada na contramão do desenvolvimento sustentável começou desde antes da posse do novo governo, quando, ainda em novembro de 2018, o recém-eleito Jair Bolsonaro cogitou a extinção do Ministério do Meio Ambiente, que seria incorporado ao Ministério da Agricultura. Embora tenha recuado dessa decisão, uma série de medidas tomadas nos primeiros cinco meses do atual governo enfraqueceram a pasta ambiental. Exemplos importantes são o anúncio da revisão de todas as unidades de conservação e potencial extinção de áreas protegidas, bem como o bloqueio de 95% dos R$ 11,8 milhões destinados à implementação de políticas sobre mudanças climáticas no país.
O clima e a perda do protagonismo brasileiro
Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC 2014), a temperatura da superfície terrestre pode aumentar de 0.3 a 4.8°C até o fim do século XXI, a depender do padrão de emissões de gases de efeito estufa. No Brasil, as consequências do aumento da temperatura afetam o regime de chuvas, com previsão de intensificação das chuvas na região Sul e secas mais prolongadas na região Nordeste.
As chuvas impactam também o padrão de vegetação, com destaque para a Amazônia. A perspectiva é que a região amazônica, especialmente na parte oeste, passe por um processo de savanização, com a transformação da floresta em uma vegetação mais esparsa e menos diversa. As previsões fazem parte do relatório “Potência ambiental da biodiversidade – um caminho inovador para o Brasil”, divulgado em dezembro passado no Rio de Janeiro.
Segundo Jean Pierre Ometto, coordenador do Centro de Ciências do Sistema Terrestre, no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CCST-INPE), o Brasil está vivendo um momento de retrocesso no entendimento das mudanças climáticas. Ao longo das últimas três décadas, o país assumiu importante protagonismo internacional nas discussões sobre questões ambientais globais, se empenhando em construir uma imagem de potência ambiental. Essa imagem é baseada, em parte, nas políticas para o clima, mas agora parece haver uma resistência em reconhecer e priorizar questões relacionadas ao aquecimento global.
Além do bloqueio no orçamento para políticas climáticas, o governo recusou sediar a COP-25, conferência que é o maior evento do mundo sobre o clima. Com a recusa, a COP será realizada no Chile, em novembro. Em audiência pública ocorrida na Comissão de Meio Ambiente no Senado, em março deste ano, Ricardo Salles também declarou que a prioridade de sua gestão seria a qualidade de vida urbana, e não o aquecimento global. O ministro também questionou o quanto das mudanças climáticas são decorrentes de atividades humanas.
A mudança de postura na política ambiental brasileira é preocupante e leva à perda do protagonismo do país no setor. “O Brasil chegou a ser considerado um país com imenso potencial de desenvolvimento verde, um ator importante nas negociações internacionais, mas o retrocesso na postura é um problema sério. A administração federal deveria olhar para as mudanças ambientais e do clima de maneira mais sistêmica, não imediatista, incorporando, em seu planejamento, as oportunidades de uma trajetória ambientalmente sustentável para a economia”, diz Ometto.
As oportunidades das quais Ometto fala são uma tentativa de avançarmos em políticas mais integradas, que considerem as mudanças climáticas no planejamento da produção de energia, alimentos e transporte. O agronegócio é um caso emblemático. Nos últimos anos, o crescimento no setor agrícola tem impulsionado o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e, há décadas, o agronegócio apresenta saldos positivos no comércio exterior. Mas é preciso sempre ter em mente que a produção agrícola é dependente do clima.
Entre os produtos que podem ser afetados, destaca-se o café, como aponta estudo feito pelo pesquisador alemão Christian Bunn e colaboradores. A maior parte da produção mundial é representada por duas espécies: Coffea canephora var. robusta (café robusta) e Coffea arabica (café arábica). Os grãos de maior qualidade são produzidos em altitudes mais altas, onde o clima ameno acentua o sabor, a acidez e o aroma. Com as mudanças no clima, a produção de café arábica, que hoje corresponde a 70% da produção mundial, pode ser prejudicada.
Com isso, haveria um deslocamento dos locais de produção para lugares cada vez mais frios, afetando a fonte de renda de milhares de produtores. “No Brasil, o café arábica tem maior adequabilidade climática em Minas Gerais, enquanto o robusta, no Espírito Santo, considerando as condições climáticas atuais. Porém, diante de condições climáticas futuras, as áreas que hoje estão disponíveis para o cultivo não serão mais adequadas, e algumas áreas mais ao sul poderão implementar o cultivo e produção com sucesso”, explica Priscila Lemes, doutora em ecologia e evolução pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e autora do levantamento Biodiversidade e Mudanças Climáticas no Brasil – Levantamento e Sistematização de Referências, lançado no ano passado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF-Brasil).
A ciência em prol da conservação da biodiversidade
Além de espécies de importância econômica, as mudanças no clima também têm impacto direto em várias outras espécies de plantas e animais. O Diagnóstico Regional das Américas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos prevê que as mudanças climáticas serão o principal fator a impactar negativamente a biodiversidade nas Américas em 2050, caso o cenário de emissões não se altere. A análise foi feita pela Plataforma Intergovernamental da Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) em 2018.
Para tentar minimizar o problema, cientistas investem na modelagem dos efeitos do clima sobre as espécies. A área em que uma espécie pode viver depende das condições ambientais físicas que ela suporta (como temperatura e nível de chuvas), das interações com outras espécies e da sua capacidade de movimentação entre localidades. A partir de registros de onde as espécies já foram encontradas e dados ambientais, é possível prever quais áreas são mais ou menos adequadas à sua sobrevivência em diferentes cenários, inclusive cenários climáticos.
Pesquisas assim são importantes porque permitem o acúmulo de evidências sobre como as espécies devem responder às alterações climáticas. As espécies aquáticas parecem ser especialmente vulneráveis às mudanças no clima, em parte devido à menor disponibilidade de refúgios nos oceanos do que no ambiente terrestre. Na terra, plantas e animais podem encontrar microclimas mais amenos embaixo de árvores ou pedras, enquanto nos oceanos escapar do aquecimento geralmente significa ocupar águas mais profundas e frias. Como 93% das espécies oceânicas ocupam as camadas mais superficiais da água, sua habilidade de acessar refúgios profundos é bastante limitada. Os dados são de um estudo feito por pesquisadores dos Estados Unidos, Canadá e Noruega, publicado em abril na revista científica Nature.
Os dados gerados nas pesquisas apontam para a necessidade de políticas mais eficazes de proteção da biodiversidade. Essas políticas incluem a definição de áreas prioritárias para preservação ambiental, como as unidades de conservação. Assim, projetos como a transformação da Estação Ecológica Tamoios em uma “Cancun brasileira” e a autorização do leilão para exploração de petróleo nas proximidades do Parque Nacional dos Abrolhos são alarmantes. Ambas as unidades de conservação são refúgios da vida marinha.
Segundo Priscila Lemes, a prioridade para a conservação não é linear e nem sempre preservar as espécies mais ameaçadas de extinção é a melhor estratégia. Mas isso não significa que não precisamos investir em áreas protegidas. “A pergunta acaba sendo outra: se não podemos salvar todas as espécies, como eleger o que é mais importante? A solução não é simples. É preciso utilizar métodos de análise que permitam uma escolha criteriosa e que inclua, além da biodiversidade, os aspectos econômicos e sociais”, afirma ela.
Ometto complementa explicando que sociedades mais igualitárias são mais resilientes às variações no ambiente. “A desigualdade social potencializa e é potencializada por questões ambientais e climáticas porque as pessoas menos favorecidas, sem acesso adequado a saúde, educação, boa alimentação e uma infraestrutura mínima têm uma vulnerabilidade maior a secas, enchentes, ondas de calor e outros problemas”, diz.
Transformação começa no nível local
Embora a esfera federal esteja na contramão dos ODS para a área de meio ambiente, medidas positivas podem ser tomadas em escalas menores. Neste sentido, as políticas municipais se destacam. A cidade de São Paulo, desde 2009, tem uma política municipal da mudança do clima, que baseou medidas como a implantação de faixas exclusivas de ônibus e do sistema cicloviário. Usinas de aproveitamento de metano dos aterros sanitários também foram implantadas para geração de eletricidade.
Atualmente, um projeto expressivo no município é a compostagem dos resíduos orgânicos de feiras, parques e praças da cidade. Já são cinco pátios de compostagem na zona urbana, processando cerca de 15 mil toneladas de resíduos por ano.
Segundo Laura Ceneviva, secretária executiva do Comitê de Mudança do Clima, ligado à Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, uma das grandes vantagens do projeto é que a compostagem não gera odores. “Por não gerar odores, a resistência da população à política pública é menor. As pessoas têm todo o interesse em buscar o composto orgânico produzido nos pátios, que é de ótima qualidade. E essa iniciativa também libera muitas áreas dentro dos aterros sanitários, diminuindo as emissões de metano”, explica Ceneviva.
Outro passo importante é o desenvolvimento do Plano de Ação Climática para a cidade. A ideia do plano é apresentar diretrizes gerais para que até 2050 o município neutralize seu saldo de carbono. Como o prazo é longo, o alcance das metas depende de uma boa continuidade ao longo de diferentes governos, não só na implementação das políticas públicas, mas também na produção de dados sobre as mudanças do clima na cidade e seus impactos econômicos, sociais e ambientais. Para Ceneviva, esse é um dos maiores desafios, junto com a lacuna entre o tempo de produção de conhecimento pelos especialistas e a assimilação pela sociedade. “A sociedade é heterogênea e demora até que as pessoas entendam o que está sendo discutido e modifiquem seus comportamentos”, diz ela.
Apesar das dificuldades de adaptação individual e coletiva e das incertezas em relação ao futuro do clima e da conservação da biodiversidade, os especialistas apostam na construção de soluções coletivas e no poder do voto como impulsionador de transformação. Sem esquecer, é claro, da valorização do conhecimento científico e do seu papel norteador na tomada de decisão pública de qualidade.
Luanne Caires é bióloga e mestre em ecologia pela Universidade de São Paulo (USP). Tem especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp) e integra o Programa Mídia Ciência (Fapesp).