Por João Luis Meloni Assirati
As duas principais direções da revolução moderna na física do século XX são a teoria quântica e a teoria da relatividade, a primeira iniciada por Max Planck em 1900 e a segunda por Albert Einstein em 1905. À diferença da teoria da relatividade, cujos fundamentos foram desenvolvidos no período relativamente curto de 1905 a 1915 e quase que exclusivamente por Einstein, a teoria quântica foi produto do trabalho coletivo de uma multidão de físicos, incluindo o próprio Einstein, e só iniciou sua formulação moderna em 1925, com os trabalhos de Werner Heisenberg, Max Born e Pascual Jordan, passando antes por estágios heurísticos intermediários, como o modelo das órbitas de Bohr. Isso se deve ao fato da teoria quântica (que inclui a mecânica quântica e sua versão mais avançada e relativística, a teoria quântica dos campos, iniciada na década de 1930) apresentar discrepâncias muito maiores em relação à física clássica newtoniana do que a teoria da relatividade, que ainda descreve a natureza em termos de partículas com trajetórias contínuas bem definidas e campos de força. Na teoria quântica, ao contrário, as partículas parecem se mover aos saltos entre estados de energia discreta e seu estado é intrinsecamente incerto, podendo somente ser descrito probabilisticamente.
É principalmente sobre essas duas teorias modernas que se dá o diálogo científico entre Max Born e Albert Einstein nas 120 cartas coligidas por Born em The Born-Einstein letters (As cartas entre Born e Einstein), que abrangem o período de 1916 a 1955, quando morre Einstein. Mas muitos outros temas estão também presentes nessa correspondência, especialmente as duas guerras mundiais que ocorrem nesse intervalo, observações sobre política, crítica social e a tragédia pessoal vivida por inúmeras personagens do meio científico em meio à fome e à destruição. O livro tem um prefácio esclarecedor de Werner Heisenberg e, em seguida, apresenta, sem maiores divisões, a correspondência. Após cada carta, em geral, há um parágrafo com as explicações e interpretações de Born em perspectiva. Esses parágrafos são essenciais à compreensão de muitas das cartas. A marca principal, tanto das cartas quanto desses textos explicativos, é a difícil combinação de profunda amizade e incorruptível honestidade intelectual.
Quase da mesma idade, Born (1882-1970) e Einstein (1879-1955) foram grandes amigos ao longo de toda vida e tinham personalidades profundamente diferentes. Ambos tinham origem judaica, mas a família de Born havia se convertido ao luteranismo e procurava se integrar à sociedade alemã. Einstein era independente e individualista, não teve alunos nem grupo de pesquisa. Born, ao contrário, criou uma escola de física e teve mais de uma dezena de alunos de doutorado. Na carta 14 (1920), Einstein se descreve: “Eu vaguei para lá e para cá continuamente, um estranho em qualquer lugar”. Enquanto Einstein havia se separado da primeira mulher e mal conseguia sustentar os filhos desse casamento, Born tinha uma família estável e se preocupava permanentemente com seu o futuro e bem-estar.
Até 1924, o conteúdo científico das cartas trata principalmente da teoria da relatividade. É o período em que Einstein se torna mundialmente famoso, especialmente após as confirmações experimentais da relatividade geral. Nesse momento, começam a surgir ataques contra Einstein, que é acusado de buscar publicidade, e contra a sua teoria. Em geral essas acusações têm teor antissemita (carta 21).
Após 1924, os assuntos científicos passam a ser quase exclusivamente sobre mecânica quântica e é aí que se revelam as grandes divergências entre Born e Einstein. Born defende a interpretação que se torna padrão, de que os resultados da teoria quântica são essencialmente probabilísticos. É curioso que tal pensamento seja comumente chamado de Interpretação de Copenhagen, e atribuída ao grupo de Niels Bohr. No entanto, foi criada por Born, individualmente, em Göttingen (comentário à carta 71), e lhe rendeu o prêmio Nobel em 1954. Einstein também recebeu o prêmio Nobel, muito antes, em 1922, mas curiosamente não pela relatividade, mas pela explicação corpuscular do efeito fotoelétrico, assunto relacionado à teoria quântica (carta 44).
Apesar do sucesso, dois nomes importantes não aceitam a interpretação probabilística de Born: Erwin Schrödinger, criador da equação, que leva seu nome, para a evolução temporal na mecânica quântica, e Einstein. A princípio, a posição de Einstein é radical: a interpretação probabilística está errada, “Deus não joga dados” (carta 52). Aos poucos, ele evolui para aceitar a interpretação probabilística como correta, mas incompleta (carta 97), até chegar a uma posição de maior aceitação, rejeitando os estados quânticos que atualmente chamamos de gatos de Schrödinger, isto é, estados de corpos macroscópicos que têm probabilidade de localização em dois ou mais pontos diferentes (cartas finais, com a participação de Wolfgang Pauli, discípulo de ambos). Todas as objeções de Einstein à interpretação probabilística são respondidas por Born, que, apesar de venerar Einstein e considerá-lo intelectualmente superior (carta 11), não o poupa de críticas contundentes. É evidente que são essas críticas, pela força dos argumentos, que fazem Einstein evoluir no seu ponto de vista.
As dificuldades causadas pelas guerras mundiais ocupam boa parte das cartas. Born é obrigado a fugir da Alemanha quando é demitido da universidade pela perseguição nazista em 1933 (cartas 67 e 68). Einstein, realizando palestras pelo mundo, decide não retornar e se estabelece na Califórnia e depois em Princeton, nos EUA, onde vive o resto de sua vida. A preocupação em receber cientistas refugiados é uma constante para Born, o que se pode ver em todas as cartas de 1933 até 1945. Aos poucos, Einstein desenvolve uma visão amarga e pessimista da política e especialmente da população, que tende à brutalidade e à covardia (carta 97). Born observa que os americanos podem até mesmo superar os nazistas, evocando os bombardeios de Dresden, Hiroshima e Nagazaki (carta 104).
Uma parte especial das cartas concerne à correspondência entre Einstein e Hedwig, a esposa de Born. Ela era poetisa, bastante religiosa e frequentemente discutia temas relacionados. Na carta 82, discorre sobre a posição de desapego e serenidade de Einstein frente à morte. Mesmo Born se envolve nessas discussões transcendentais. Na carta 83, ele pergunta a Einstein: “como combinar um universo mecânico e determinístico com a liberdade de um indivíduo ético?”. O lado mais humano de Einstein, que em geral não é dado a demonstrações emocionais (ver carta 73, em que comunica friamente a morte da esposa e logo muda de assunto), se revela nessas correspondências.
Born-Einstein letters, 1916-1955: friendship, politics and physics in uncertain times Max Born Palgrave Macmillan
João Luis Meloni Assirati é doutor em física pela USP. jlmassir@gmail.com