Por Luanne Caires
O neurocientista Alfred Sholl Franco é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador em neurociências básicas e neuroeducação, e adepto da divulgação científica como ferramenta para formar pessoas mais críticas. Nesta entrevista, ele conversa sobre as várias facetas das neurociências, as contribuições das pesquisas na área para a educação e o envelhecimento saudável, além da importância da comunicação científica.
O termo neurociências abrange diferentes ciências, com amplas abordagens. O que caracteriza a base comum de todas elas?
No caso das neurociências, a base comum é o foco no sistema nervoso, e há uma busca das diferentes áreas para demarcarem suas prioridades. Isso não quer dizer que uma área é mais importante do que a outra, mas as visões são sempre direcionadas, dependem do histórico e da formação de quem organiza o grupo de pesquisa. Se em um grupo há dez pedagogos e um biólogo, por exemplo, e no outro há nove biólogos e um pedagogo, os focos serão distintos. Neurociência é um termo abrangente e sujeito a muitos questionamentos. Uma boa maneira de perceber isso é quando uma pessoa se diz neurocientista. É difícil saber exatamente com o que ela trabalha. Eu, por exemplo, coordeno o Núcleo de Estudos em Neurociências e Educação (Neuroeduc). Nele há profissionais e estudantes de fonoaudiologia, educação física, matemática, psicologia, biomedicina. A premissa é um trabalho multidisciplinar e transdisciplinar, que também caracteriza vários outros grupos da área no Brasil, como o Neuroeduca, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e o Instituto do Cérebro, no Rio Grande do Norte.
O termo neuro ganhou muito glamour nos últimos anos e praticamente qualquer conteúdo associado às neurociências chama a atenção. Não é difícil entender o fascínio pelo nosso cérebro, mas a “glamourização” das neurociências tem riscos. Como lidar com isso?
As pessoas colocam o prefixo neuro(-) em tudo. E pesquisas mostram que as pessoas acreditam mais em uma informação se ela vier associada a imagens das neurociências. Há um trabalho que consistiu em apresentar para um grupo de pessoas um resultado científico junto com uma imagem de tomografia ou da anatomia do cérebro e para um outro grupo, apenas o resultado, sem a imagem. A taxa de confiança no resultado foi maior no grupo que viu o material com a imagem. Por causa de reações assim, colocar neuro como prefixo ou uma imagem do sistema nervoso vinculados a um produto ou serviço passou a ser estratégia para oportunismos. O maior remédio para essa glamourização é a informação. As pessoas precisam saber onde conseguir informações corretas e confiáveis. Não adianta ler o blog de qualquer um. Vá ao site de universidades, fontes oficiais, institucionais. E, se for um indivíduo, procure o currículo. A plataforma Lattes, por exemplo, é uma fonte confiável de currículos. Como meus alunos me disseram há um tempo, o Lattes é o Facebook acadêmico.
E isso nos leva ao papel da divulgação científica…
É importante que haja divulgação para que as pessoas conheçam e não tenham medo. Porque se você mitifica um tema, o coloca como difícil, inatingível, ninguém se vê capaz de entender e trabalhar com ele. É importante estabelecer uma relação com o cotidiano, para que as pessoas entendam o quanto aquela informação tem impacto.
Divulgar é importante porque pessoas bem informadas tendem a cometer menos erros de juízos, menos erros de interpretação e, portanto, serão avaliadoras melhores das necessidades da sociedade e ajudarão a tecer políticas públicas. É isso que tentamos fazer com o núcleo Ciências e Cognição, na UFRJ: investir em novos ramos para promover conscientização pública. De modo geral, as neurociências têm caminhado bastante em promover divulgação científica. Uma boa iniciativa aqui no Brasil é a Semana do Cérebro. Começamos há dez anos e há oito ela é nacional, ajudando a estimular mais ainda o processo de alfabetização científica da população.
Parte da conscientização sobre as neurociências passa pela educação. Do mesmo modo, o conhecimento científico pode contribuir muito para as práticas escolares. Quais são os principais desafios em aproximar os avanços no conhecimento e a prática em sala de aula?
Quando ensinamos a criança a discutir, a refletir sobre concepções, estamos investindo não em curto prazo, mas em longo prazo. Por isso estamos criando a RedENeuro no Rio de Janeiro. Essa é uma rede de estudos em neurociências que fomentará o desenvolvimento de pequenos projetos de pesquisa nas escolas. A ideia é formar pequenos cientistas que tenham visões distintas sobre as neurociências, em parceria com professores de física, química, biologia, português, matemática. Vamos tentar fazer a primeira mostra do projeto durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, em outubro.
Outro ponto importante é promover a formação inicial e continuada dos profissionais da educação. São poucas as universidades que ofertam cursos de neurociências para pedagogos e licenciandos, por exemplo – e essa é uma mudança que não ocorre de um momento para o outro e não basta simplesmente mudar o currículo. Uma formação adequada sobre o desenvolvimento é especialmente importante na pré-escola e no ensino infantil, quando a criança está em um período crítico de desenvolvimento cerebral e estabelecimento de circuitos neurais. Muitas vezes vemos creches e escolas infantis onde os pais ou responsáveis pelas crianças são contratados como cuidadores, sem que haja um suporte multidisciplinar realizado por profissionais (pedagogos, professores de artes, de educação física etc). As crianças serão bem cuidadas em termos de alimentação, brincadeiras e troca de fraldas, mas não é só isso que precisam. Assim, uma formação adequada deveria ser oferecida a todos os cuidadores.
Também temos que pensar em por que o conhecimento tem que ser produzido no centro de pesquisa e depois ir para a escola? Por que não podemos capacitar professores, coordenadores pedagógicos e outros profissionais a trabalharem em conjunto com os pesquisadores? Atualmente, os dois mundos (da escola e da ciência) não se veem como pares. A escola acha que os pesquisadores não a escutam e não querem saber do que ela precisa, e os pesquisadores estão preocupados com a captação de verba. Como pesquisador, ao escrever um projeto, uma preocupação é como contemplar o edital. Faltam editais que promovam ou incentivem a integração com as escolas, o que tira, muitas das vezes, a realidade da escola de vista. Outro problema é que as escolas resistem à presença do pesquisador porque ele coleta os dados e nunca volta. Não há um retorno dos resultados da pesquisa para a escola. Assim, para tentar resolver essa falta de diálogo, essa falta de apoio, estamos desenvolvendo a RedENeuro.
Hoje passamos muito tempo trabalhando e interagindo socialmente por meio de telas e redes sociais. Como essa nova dinâmica de ferramentas e relações interpessoais afeta o funcionamento cerebral?
A imersão nesse mundo tecnológico e de redes sociais pode comprometer a capacidade de atenção e dedicação do sistema nervoso. Entretanto, essas mudanças não são ruins nem boas, elas são a realidade atual. Então temos que aprender a lidar melhor com elas. No caso das crianças e jovens que ainda estão em desenvolvimento, por exemplo, não adianta privar. Temos que supervisionar e direcionar o uso, como já aconteceu com o carro e com a televisão. Avaliar o quanto a ferramenta é útil e o quanto é prejudicial para o indivíduo. Às vezes a pessoa passa a preferir o mundo virtual ao real, e isso é ruim. Por outro lado, quantas relações não começaram pela internet? Outro aspecto positivo é o uso na educação. As ferramentas tecnológicas cativam: um aluno assiste a dez pequenos vídeos de três minutos sobre um assunto se você direcionar o que ele deve assistir, mas ele não consegue ler o livro por meia hora. Hoje em dia eu uso aplicativos para ensinar conteúdos de neurociências nas minhas aulas na UFRJ, assim como produzimos materiais em diferentes mídias, disponíveis no nosso site e canal do YouTube.
Que hábitos podemos ter para envelhecer com uma melhor saúde do sistema nervoso?
A saúde do sistema nervoso está muito relacionada com a estimulação, com o aprendizado. Desta forma, é essencial adquirirmos informações no nosso dia a dia, processar essas informações e transformá-las em conhecimento. Nosso sistema nervoso se transforma a partir de cada informação que chega desde que estamos dentro da barriga da mãe. Eu diria que uma boa alimentação, exercício físico e estimulação contínua forma uma boa receita. Não podemos pensar que estamos velhos demais para fazer alguma coisa. Em qualquer momento da vida você pode aprender uma segunda, terceira, quarta e décima língua, aprender a dançar, sair para apreciar o mundo, fazer meditação. É preciso lembrar que o envelhecer é resultado do conjunto de fatores da nossa vida inteira, que começamos a envelhecer desde que somos gerados.
Existem muitas compreensões equivocadas sobre conceitos das neurociências. Quais são os principais equívocos que ainda persistem no imaginário social?
Um equívoco que ainda persiste muito nas escolas, por exemplo, é que a gente não usa o sistema nervoso todo. Muitos alunos e professores acham que só usamos uma porcentagem (o mito dos 10%). Outro mito é o de que o uso de drogas não afeta o sistema nervoso, porque sempre tem aquele exemplo do amigo que usou e não aconteceu nada. Nesses casos, eu costumo dizer para a pessoa esperar dez anos e ver o que acontece. Nosso sistema nervoso trabalha com uma margem de reserva, temos certa plasticidade, mas com a idade pagamos o preço. E há o mito da ginástica cerebral, de que a prática de exercícios no celular ou no computador deixa a pessoa mais inteligente. Ficar encaixando um desenho dentro do outro ou decorando o caminho traçado entre pontos é um bom exercício mental? Sim. Mas isso agiliza o raciocínio, a memória operacional, a atenção, o que é diferente de deixar a pessoa inteligente, melhorar o desempenho no processamento de informações de matemática, linguística, história, geografia. Precisamos articular melhor a divulgação e a alfabetização científica para que as pessoas consigam buscar a informação verdadeira.
Quais serão as próximas grandes descobertas nas neurociências?
Estamos na década da mente. O objetivo é entender melhor como os processos mentais se integram, sejam eles genéticos, comportamentais, sociais, educacionais. Por isso, uma área de grandes descobertas será aquela relacionada à compreensão de como os processos mentais estão conectados. A terapia gênica também é outra área com potencial para grandes revoluções, porque pode diminuir a progressão ou mesmo evitar a instalação de doenças relacionadas ao sistema nervoso.
Luanne Caires é bióloga e mestre em ecologia pela Universidade de São Paulo (USP). Tem especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp) e integra o Programa Mídia Ciência (Fapesp).