Por Adilson Roberto Gonçalves
21 lições para o século 21 é um livro para nos deixar com angústias, não trazer respostas, apenas formular mais e mais perguntas. O autor lapidou seus pensamentos e nos apresenta um texto muito bem escrito, na mesma linha dos anteriores Sapiens e Homo Deus.
Livros de referência sobre os paradoxos dos dias correntes costumam tender para o binômio pergunta-resposta, buscando uma verdade única para questões complexas. O 21 lições para o século 21, do consagrado escritor e historiador Yuval Noah Harari, refuta essa fórmula e se apresenta como um robusto conjunto de indagações e reflexões. Ele não dá as respostas, e coloca o leitor para pensar em soluções, ainda que diversas e adversas.
O autor alerta que o texto passou por um filtro preliminar, constituído por perguntas formuladas em discussões anteriores com leitores, referenciadas ao final do livro. A obra usa frequentemente o contraponto entre indivíduo e sociedade, que se mesclam e se confundem. É baseada em quatro fundamentos: ciência, deus, política e religião, evidenciando, desde o início, sua interessante distinção entre deus e religião.
Harari caminha por segmentos, procurando estabelecer uma linha de raciocínio, o que não impede uma leitura não linear do livro. Inicia com o desafio tecnológico, elencando, como fruto de seus livros anteriores, o grande marco tecnológico da fusão da biotecnologia com a tecnologia da informação (TI). Esse amálgama nos põe diante de mudanças nunca vistas por nossa espécie, uma revolução feita por engenheiros. Harari se pergunta o que faremos com toda a tecnologia, pois sabemos inventar ferramentas, temos sido bons nisso, mas sempre tivemos problemas em definir a melhor forma de usá-las.
A revolução TI-biotecnológica criou também uma desilusão na narrativa liberal – termo usado pelo autor no lugar de narrativa capitalista. Essa narrativa estava sendo útil e aceita até aqui, lembrando que, quanto mais simples a narrativa, mais crível é. No entanto, desilusões aconteceram, cujas marcas principais são o Brexit, a eleição de Donald Trump, a volta do protecionismo e a ascensão de governos tiranos. Ficar sem narrativa é aterrador e Harari usa boa parte de seu texto para discorrer sobre essa questão.
O livro possui grande capacidade de convencimento ao fazer afirmações quase irrefutáveis, como “sabemos muito pouco sobre nossa mente e, em vez de investir na sua exploração, nos concentramos em aumentar a velocidade de nossas conexões à internet e a eficiência de nossos algoritmos de Big Data” (p. 101). Quanto mais informação processarmos, melhor funcionará o sistema. Harari levanta ao longo do livro o questionamento de que a inteligência geraria consciência.
Na sequência, a obra aborda as relações de trabalho, ou melhor, de desemprego, e das decisões subjetivas que poderão ser feitas por inteligência artificial (IA), incluindo decisões políticas e de liberdade.
A obra possui uma natureza distópica, ao afirmar que os donos dos dados serão os donos do futuro, e que o desenvolvimento biológico poderá levar a uma pequena classe de super-humanos e a um enorme contingente de sub-humanos inúteis. Desta forma, segundo Harari, a prosperidade global seria substituída pela especiação. E completa (p. 106): “no século XXI, uma civilização pós-industrial baseada em IA, bioengenharia e nanotecnologia poderia ser muito mais autocontida e autossustentada”.
A cooperação global seria a solução para essas disrupturas, mas é dificultada pelo nacionalismo, pela religião e pela cultura. O nacionalismo, porém, não é intrínseco à natureza humana, pois nossa vida social foi baseada em pequenos grupos. Também Harari reflete que somos geneticamente idênticos, mas culturalmente diferentes. Desta forma, a discussão caminha para mostrar que a comunidade íntima não pode ser substituída por uma comunidade global. Vivemos cada vez mais solitários em um mundo cada vez mais conectado. Não podemos viver sem os corpos, que desconectamos. Podemos viver sem religiões ou nações, mas não sem corpos.
O capítulo sobre a civilização – só existe uma no mundo – lembra A fundação, de Isaac Asimov, e seus psico-historiadores, ao estabelecer valores como legado de ancestrais, mas a mudança é constante, a qual não percebemos ou não queremos notar. Nesse ponto, Harari faz uma interessante discussão sobre globalização e constituição de estados soberanos, baseada em seus símbolos, como o esporte, bandeira, hinos e economia. As guerras ainda existentes são uma luta fraternal dentro de uma única civilização, portanto.
Em sua argumentação, Harari consegue construir países ou povos hipotéticos para explicar seus postulados, com boa desenvoltura. Sua experiência pessoal de israelense e homossexual também é fortemente explorada ao longo do texto.
Ao tratar do terrorismo, alerta o leitor para não entrar em pânico, com alguma ironia, ao estilo do Mochileiro das galáxias, de Douglas Adams. Suas comparações entre número de mortos por ataques terroristas e por doenças ou acidentes dão o tom da concepção ilógica do terrorismo. Para Harari, o terrorismo funciona como um teatro, com pesos diferentes para as cenas apresentadas. O exemplo mais claro é a forma diferente como nos lembramos do ataque do 11 de setembro em relação às torres gêmeas e ao Pentágono. O capítulo sobre a guerra afirma que nunca devemos subestimar a estupidez humana, ainda que as guerras hoje sejam improváveis e ineficazes. Talvez a guerra cibernética tenha algum espaço. Não é um libelo pacifista, mas, sim, uma análise de resultados.
Harari dá peso grande para a questão religiosa, tratada de forma direta em três capítulos (Deus, Religião e Secularismo) e permeando outras discussões como em Humildade (capítulo 12) e Pós-verdade (capítulo 17). A natureza de sua formação judaica pode ter contribuído para isso. Veja como ele apresenta de forma crítica e provocativa a questão religiosa: “as religiões tradicionais são em grande parte irrelevantes para problemas técnicos e políticos. Em contraste, são extremamente relevantes para problemas identitários — mas na maioria dos casos são parte principal do problema, e não uma possível solução”.
A humildade é estabelecida como uma das 21 grandes lições, e Harari usa fortemente o judaísmo como exemplo. É categórico ao afirmar que a religião monoteísta não consagrou a ética. Sua abordagem da natureza funcional da religião relembra Saramago em O evangelho segundo Jesus Cristo. Harari dedica um capítulo específico a Deus, no qual faz uma discussão sobre todas as origens (do homem, da ética e outros) e da própria consciência. Na sequência, trata do secularismo, a negação da religião, que busca a verdade por meio da observação e evidência, não pela fé. Em certo ponto da discussão, afirma que questionar traz mais desenvolvimento às pessoas, que serão mais prósperas e menos violentas. O questionamento é o contraponto à aceitação.
No meio da leitura, Harari alivia um pouco a angústia do leitor ao dizer que, se estiver impotente e confuso com o mundo que está sendo esmiuçado, então está no caminho certo: ninguém é capaz de processar toda a informação contida no livro até aqui. Mas ele alerta para não ser vítima da propaganda e desinformação, assumindo, em seus argumentos, a postura da “necessidade de uma comunidade global para a solução dos problemas globais”. E continua a instigar o leitor, tratando racionalidade e individualidade como mitos, e faz questão de realçar nossa ignorância, pois sabemos menos do que realmente achamos que sabemos.
O interessado crítico deverá ler o livro a fundo, especialmente o capítulo 16, que afirma que nosso senso de justiça está desatualizado. Assim, como todo o resto, o senso de justiça tem antigas raízes evolutivas. O autor continuará suas estocadas, ao afirmar que não somos mais capazes de compreender os grandes problemas do mundo nem as estratégias para lidar com eles em escala global.
Apesar de aceitar a pós-verdade como marca da atualidade, Harari afirma que algumas fake news duram para sempre, ou são determinantes, em alguns casos, para o estabelecimento do poder. Usa exemplos fortes e atuais, como os de Trump e Putin, mas ressalta que o homem sempre foi dependente de criar ficções e acreditar nelas. É um capítulo sobre história e traz questões de cunho religioso: as crenças nada mais são do que fake news eternas. O ato de repetir algo à exaustão para fazer sua propaganda é antigo; repetir uma mentira apenas muda o objeto. É difícil separar a realidade da ficção. É um capítulo recheado de muitos exemplos, atuais e históricos. O próprio autor alerta que crentes fundamentalistas poderão não tolerar suas considerações. Em um momento, compara a Bíblia com Harry Potter para tratar de mitologias inteligentemente construídas.
A ciência é apresentada de forma crítica ao longo do livro. Harari cita, por exemplo, que a ciência tem problemas para perscrutar a mente por faltar ferramentas e instrumentos adequados. Mas também recomenda que, se um fato é considerado importante, que se busque a literatura científica sobre ele. Já na p. 273, algo muito caro aos divulgadores de ciência é questionado: “cientistas esperam poder dissipar concepções equivocadas com educação científica, impressão equivocada de como humanos pensam; a maioria das pessoas não gosta de dados demais e não gosta de se sentir um idiota”. Sua conclusão desse capítulo é perturbadora: um bom filme de ficção científica vale muito mais do que um artigo na Science ou na Nature.
A última parte do livro é sobre resiliência, ressaltando, mais uma vez, que se vive a era de perplexidade, com as narrativas antigas sendo destruídas, mas sem outras para as substituírem. A educação como a única constante da mudança é capítulo fundamental para a compreensão da forma como o autor apresenta suas teses. Os dois capítulos finais (Sentido e Meditação) carregam mais densidade histórica, com abordagem de vários cenários e contextos filosóficos. Talvez sejam os mais difíceis de ler e compreender sem as construções dos capítulos anteriores.
Ao final, estão 30 páginas de notas e um índice remissivo útil para a localização de temas específicos, especialmente para quem se propõe a ler a obra não linearmente.
21 lições para o século 21 é um livro para nos deixar com angústias, não trazer respostas, apenas formular mais e mais perguntas. O autor lapidou seus pensamentos e nos apresenta um texto muito bem escrito, na mesma linha dos anteriores Sapiens e Homo Deus. A tradução de Paulo Geiger foi primorosa, mantendo o fácil fluxo da narrativa.
21 lições para o século 21 Yuval Noah Harari Companhia das Letras, 2018 Tradução de Paulo Geiger, 441 páginas