Por Sarah Azoubel Lima
Não é espantoso que animais como golfinhos se beneficiem da interação com seus grupos sociais. Afinal, nós entendemos bem esse tipo de toma-lá-dá-cá. Mas quando se fala em cooperação animal, nem os golfinhos, nem os humanos, ocupam a posição mais extrema no gradiente da socialidade.
Num mar de águas calmas na Flórida, nos Estados Unidos, um golfinho rodeia um cardume de peixes. Os outros golfinhos do grupo esperam em volta, formando uma barreira que aprisiona os peixes dentro do círculo. Encurralados, os peixes pulam para fora d’água, tentando escapar. É uma armadilha. Todos os golfinhos, já preparados, abocanham no ar os peixes fujões.
Stefanie Gazda, pesquisadora da Universidade da Flórida, estudou essa estratégia de pesca dos golfinhos-nariz-de-garrafa. “Num grupo, o golfinho que rodeia é sempre o mesmo, e os golfinhos que agem como barreiras também mantêm seus papéis”.
Gazda explica que esse foi o primeiro exemplo reportado de uma divisão de tarefas com especialização de papéis em golfinhos-nariz-de-garrafa. O seu primeiro estudo detalhando essa cooperação entre os animais foi publicado em 2005.
“É como num time de futebol, você não colocaria o seu atacante em outra posição, porque ele é o melhor atacante. O time pode até ganhar com ele em outro lugar, mas se sairá melhor se cada um exercer sua função específica”, conta Gazda. Segundo ela, outros cetáceos, como as orcas, também usam técnicas de caça especializadas, mas não é claro se dividem as tarefas por indivíduos.
Ela acredita que esses comportamentos não são instintivos, e sim adquiridos através de aprendizado. “Mas, até o momento, não sabemos exatamente como os golfinhos aprendem essa estratégia de pesca. Se aprendem com os pais, ou com indivíduos da mesma geração. Para entender isso, precisaríamos estudar as suas relações familiares e acompanhar grupos sociais por vários anos”.
Não é espantoso que animais como golfinhos se beneficiem da interação com seus grupos sociais. Afinal, nós entendemos bem esse tipo de toma-lá-dá-cá. Mas quando se fala em cooperação animal, nem os golfinhos, nem os humanos, ocupam a posição mais extrema no gradiente da socialidade.
Nessa posição, estão os chamados insetos eussociais. Os mais conhecidos entre esses são as formigas, os cupins e as abelhas melíferas. “Nas espécies eussociais, as colônias de insetos podem ser caracterizadas como um superorganismo”, conta Lucas Marques de Camargos, doutorando em entomologia pela Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. “É como se centenas de formigas, por exemplo, agissem como um único indivíduo”.
As abelhas melíferas (Apis mellifera) são um dos principais modelos de estudo da divisão de trabalho. A primeira divisão é baseada em quais indivíduos se reproduzem, e quais não se reproduzem. Em cada colmeia existe uma abelha rainha, a fêmea reprodutora e progenitora dos outros indivíduos da colônia. Já os machos, chamados zangões, possuem a função exclusiva de fecundar as rainhas virgens durante o voo nupcial. Por fim, a grande maioria das abelhas são as operárias, fruto da reprodução sexual da rainha e do zangão. As operárias não se reproduzem e executam diversas tarefas necessárias para manutenção da colônia.
Entre as operárias, as tarefas realizadas são dividas de acordo com a idade das abelhas. Na primeira metade da vida – um período que normalmente dura cerca de 15 dias – as operárias trabalham dentro do ninho. Nessa fase, elas alimentam e cuidam das larvas, atendem aos favos da colmeia e produzem geleia real. Já na segunda metade da vida, as glândulas de produzir cera e geleia real se degeneram. E as abelhas saem do ninho para forragear, buscando o néctar das flores.
“Em geral, as operárias vivem por 30 a 35 dias. Todas passam por esse desenvolvimento, trabalhando primeiro dentro e depois fora do ninho”, diz Klaus Hartmann Hartfelder, que pesquisa abelhas melíferas na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.
Um ponto interessante é que o tempo de vida das operárias é determinado a partir do momento em que as abelhas começam a forragear. Quando começam a voar fora do ninho, as abelhas morrem, de causas naturais, em aproximadamente 15 dias. Em regiões temperadas, como alguns países da Europa, as abelhas operárias chegam a viver três meses dentro da colônia para se proteger do inverno. Mas quando finalmente saem para buscar alimento, não escapam da contagem regressiva de 15 dias.
Em contraste, as rainhas vivem de um a três anos. Embora rainhas e operárias apresentem corpos e funções distintas, a diferença entre as duas não está na sequência do código genético, o DNA. Nesse aspecto, elas são praticamente idênticas.
A maior definição da vida das abelhas vem da alimentação que elas recebem enquanto larvas. Quando necessário, as operárias separam algumas larvas para alimentar com a geleia real. A geleia real, por sua vez, provoca diversas alterações nas larvas, fazendo com que se transformem em rainhas.
Essa transformação é mediada por alterações no padrão de ativação e repressão dos genes nos cromossomos. Esse fenômeno é chamado de epigenética. Dessa forma, dois organismos com a mesma sequência de DNA podem expressar seus genes de maneiras diferentes, se diferenciando drasticamente.
Hartfelder compara a diferenciação das larvas de abelha com o ato de soltar uma bola do alto de uma montanha. “A bola começará a rolar montanha a baixo. No caminho, o trajeto da bola será desviado por pedras e árvores, que definirão o seu destino final. Duas bolas iguais podem encontrar obstáculos diferentes, e no fim acabarem em locais distintos”. As modificações epigenéticas atuam como as pedras e árvores, controlando o caminho da “bola” – que representa a larva.
Segundo Camargos, não é difícil traçar paralelos entre a nossa sociedade e as sociedades dos insetos. “Existe essa pergunta que passa na cabeça de todos que estudam eussocialidade: e nós humanos?”. É possível interpretar que alguns aspectos da sociedade humana atendem vários, se não todos, os requisitos da eussocialidade. Várias gerações vivem juntas, alguns indivíduos cuidam da prole de outros (como parentes, professores ou babás) e existe uma divisão do trabalho em castas, mesmo que essas não sejam necessariamente baseadas na reprodução.
“Edward O. Wilson, um dos maiores biólogos comportamentais e especialista em formigas, afirma que nós poderíamos ser considerados um animal eussocial, ainda que essa eussocialidade não seja estruturada por padrões de desenvolvimento embrionário como nos insetos, e sim por nossas normas culturais”. Mas Camargos aponta que existe um debate científico na área. “Essa visão não é aceita por todos, mas acho que não precisamos nos considerar eussociais para entendermos que somos uma espécie bastante social”, completa.
Tanto Hartfeld como Camargos ressaltam que uma espécie de mamífero possui uma organização bastante parecida com a dos insetos eussociais: o rato-toupeira-pelado. Nativos do leste africano, esses roedores vivem em colônias compostas por uma fêmea reprodutiva e vários indivíduos estéreis que atuam como operários. “São animais muito curiosos”, diz Hartfeld.