Por Vivi Whiteman
A visão da moda como linguagem além do consciente é subversiva e questiona as marcas de luxo. É um campo tão interessante quanto minado com bombas de opressão e controle.
Entre os campos de expressão da criatividade humana a moda talvez seja o mais desprezado. Embora as artes plásticas e a música, por exemplo, também estejam há muito organizadas como mercado, reconhece-se nelas com toda razão e verdade um valor em si, uma construção de beleza, de algo que em seu auge é capaz de fazer lugar na esfera do sublime.
Já a moda não está no mesmo registro. De alguma maneira se conecta a uma necessidade básica mais ordinária, a do vestir-se, mas também a desejos normalmente associados a conceitos menos nobres de vaidade e competição.
É aceita, no entanto, a ideia de que a moda seja um canal de comunicação. E nesse sentido é preciso afirmar que seu sistema faz muito mais do que difundir e viabilizar tendências de mercado, levando-as às vias de fato do consumo.
Embora seja apenas em poucos casos que imagens de moda, desfiles ou algum de seus elementos possam ser percebidos como arte, no viés da comunicação esse sistema encontra pontos de encontro com certos aspectos do processo artístico. Nos dois há algo da ordem do inconsciente que fala, que ajuda a organizar representações. Algo que precisa ser escutado.
De fato muitos movimentos de tendências de moda que marcaram gerações inteiras podem ser decupados em partes que podem ser explicadas. As explicações racionais e conscientes vão falar de oferta de matérias-primas, desenvolvimento de novas tecnologias e mesmo de metáforas e metonímias. Os hippies e o poder da flor, os símbolos de paz de diferentes culturas. Os punks e a roupa rasgada, o cabelo que desafia até mesmo a lei da gravidade, símbolos de inadequação, da rejeição do padrão.
Mas isso não dá conta de tudo. A lendária editora de moda norte-americana Diana Vreeland dizia que a moda pode prever revoluções com antecedência razoável. É claro, os caçadores e bureaus de tendências muitas vezes recolhem dados políticos e sociais que entram em jogo nas decisões de cartelas de cores para as próximas estações. Mas mesmo aí nem todas as decisões são conscientes.
Em um período dado de pessimismo, no qual a cartela foi definida em termos de neutralidade e austeridade, outros tons começam a surgir sob a desculpa de “compor” com os já escolhidos. Eles são escolhidos não raro com um processo muito próximo ao de livre associação
Alguns deles tomam força própria com o tempo, outros desaparecem. E, como mágica, entre os que sobrevivem estão os que se encaixam posteriormente, de forma já consciente e analítica, a situações recém-descortinadas.
Em um outro viés, o psiquiatra francês Gaetan de Clérambault fez um estudo muito rico e interessante que relacionava padrões de drapeados de roupas de mulheres árabes com sintomas psicanalíticos e representação de patologias. Seus estudos têm um interesse no fetiche por tecidos, em especial à seda, interesse esse descoberto no contato com suas pacientes psiquiátricas, que chegavam a roubar para melhor poderem aproveitar o prazer de alguma forma fixado nesse material.
Alfred Hitchcock teve muito interesse na linguagem simbólica das cores e mesmo das peças do vestuário feminino. Sua percepção sobre as bolsas por exemplo fazia ligações mais ou menos óbvias com a sexualidade, apresentada nos filmes de maneira inteligente e marcante.
Infelizmente, com a ascensão de um tipo de relação servil, às vezes sadomasoquista, entre marcas e consumidor, boa parte dessa riqueza analítica se perde. Quando tudo é consumo – inclusive a “trend” moderninha do consumidor criador –, algumas dimensões da comunicação se perdem.
A moda fala. E fala de desejos humanos, dos mais elevados aos mais baixos e mesquinhos. A expressão por meio de peças de vestuário não funcionais no sentido de proteger do clima, do terreno ou de outro desconforto da nudez está marcada na história de nossa espécie desde a pré-história. Desde então há registros de colares, anéis e outros objetos de representação que tinham e em grande medida ainda guardam algo de mágico. E isso tudo se relaciona à ordem de uma linguagem para além do pensamento consciente.
Essa visão da moda é subversiva, vai contra os manuais do vestir e questiona as labels do luxo. Ela é importante e merece ser investida de paixão e atenção pelos profissionais que realmente estão interessados no desenvolvimento desse campo tão interessante quanto minado com bombas de opressão e controle.
Vivian Whiteman Muniz foi editora de moda e colunista na recém-extinta revista Elle, da Editora Abril (2015 a 2018), e editora de moda e colunista na “Ilustrada”, caderno de entretenimento e cultura do jornal Folha de S.Paulo (2006 a 2013)