Moda, poder e loucura

Por Angela Brandão

Não temos muita dificuldade em reconhecer o caráter político das camisetas utilizadas pela candidata à vice-presidência, Manoela D’Ávila, nas eleições gerais no Brasil de 2018. Tratam-se de claras manifestações, em forma de frases curtas, estampadas sobre esses objetos de pano que revestem seu corpo: “nossas ideias são à prova de bala”, “rebele-se” ou “lute como uma garota”.

A força dessas inscrições, como palavras escritas, não são lidas apenas como frases sobre um papel, mas dinamizadas como ideias grafadas sobre o próprio corpo. A potência política desse objeto simbólico foi notada por seus opositores, a ponto de, às vésperas de uma das eleições presidenciais mais dramáticas de nossa história, à beira do abismo da barbárie, estamparem falsamente a frase “Jesus é travesti” sobre sua imagem, para ganhar votos de cristãos. Embora a falsificação fotográfica da frase sobre sua camiseta tenha sido comprovada como fraude e desmentida pela imprensa, os efeitos políticos da manipulação já teriam atingido, ao menos em parte, o objetivo eleitoral[1].

O episódio faz recordar da força política que as roupas têm, a partir do livro de Carolina Weber, A rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução Francesa[2]. Neste estudo fascinante, a autora demonstra, detalhadamente, tanto o violento processo de transformação da jovem Maria Antonieta para adaptar seu corpo e seus modos ao rigor da corte francesa, a fim de contrair casamento com o futuro rei Luís XVI; quanto sua busca pessoal e seu interesse pela moda, tornados verdadeiras obsessões. Ao adaptar-se à rigorosa etiqueta, foi levada ao extremo, ao exagero, à exaustão, com excessos de luxo em vestir-se e pentear-se. No entanto, com o correr das ideias iluministas do século XVIII e a valorização da vida do campo, especialmente a partir da pensamento de Rousseau, o ímpeto da rainha em acompanhar as transformações da moda, permitiu-a despojar-se dos trajes tradicionais da corte francesa e adotar um modo mais simples, quase camponês, de vestir-se. Chegou a usar,  por exemplo, modestos vestidos de musselina branca e chapéus de palha. Por outro lado, passara a frequentar lojas de roupas situadas nas ruas de Paris, especialmente o ateliê de Rose Bertin (que ficaria conhecida como a ministra da moda).

No esforço de acompanhar as transformações do pensamento e da moda e fixá-las por meio de sua imagem, Maria Antonieta deixou de vestir-se como rainha e vulnerabilizou seu corpo até a morte na guilhotina da Revolução Francesa. Para Carolina Weber, enfim, as mudanças da moda executadas pela rainha Maria Antonieta contribuíram para o esfacelamento do ancien régime[3].

Observar as camisetas de Manuela D’Ávila às vésperas da eleição de 2018 no Brasil; pensar nas transformações das roupas de Maria Antonieta no alvorecer da Revolução Francesa, leva-nos a refletir sobre o peso da moda a partir de outra personagem do século XVIII: a rainha D. Maria I de Portugal, a piedosa ou, como ficaria conhecida mais tarde: a louca.

  1. Maria I de Portugal foi acometida por uma doença não conhecida em sua época, uma espécie de melancolia, acompanhada de insônias e dores no estômago, tratada ao modo da medicina do tempo, com sangrias e etc. que só fizeram piorar seus males. Talvez, hoje, seu quadro poderia ser classificado como depressão. As explicações biográficas a respeito de sua “loucura” constam nos livros portugueses dedicados ao assunto e a relacionam especialmente às mortes sucessivas de pessoas próximas à rainha[4].

Gostaria de propor, aqui, no entanto, não uma explicação de caráter biográfico, mas pensar a “loucura” da rainha num âmbito cultural mais coletivo. Porém, o que isso tem a ver com moda ou roupas de que falávamos há pouco?

Dediquei, em outra ocasião, algumas linhas para compreender não exatamente as roupas, mas o espaço destinado ao vestir-se (e despir-se) de D. Maria I, as quais gostaria de retomar aqui resumidamente[5]. Tratava-se do toucador da rainha, no palácio de Queluz, em Portugal. A decoração do espaço foi realizada entre 1762 e 1767 e constituía um ambiente composto pelo teto de decoração floral, em forma de cesta, em diálogo com a decoração do piso em parquet; além de uma rica decoração parietal em rocaille de pasta de papelão dourada e policromada (papier maché) que emoldura espelhos e telas pintadas com figuras de crianças, como “amorini” ou “ignudi vestidos” com roupas da época. As pinturas foram atribuídas a João Valentim, sob direção do mestre de desenho e pintura do Paço, José Conrado Rosa[6].

A sala do toucador da rainha, no palácio de Queluz, consiste em impressionante exemplo de espaço representativo da cultura de moda do século XVIII, também denominado pelo termo francês boudoir. Esse lugar passou a definir claramente o sentido da privacidade e da intimidade[7] que se encontrava num espaço transitório entre o quarto de dormir e o quarto de vestir-se, uma espécie de alcova que sintetizava  a cultura libertina própria das cortes europeias do Setecentos. O boudoir passou a representar um sentido específico nas residências burguesas e aristocráticas do século XVIII, tornando-se uma espécie de “esconderijo preferido para o devaneio, a volúpia e o luxo[8]” ou um “enclave de sonho, de evasão e de vertigem[9]”.

Território essencialmente feminino, decorado com requinte, muitas vezes com pinturas de temas licenciosos, iluminação calculada e espelhos, o boudoir se tornou, na literatura libertina, o “local privilegiado da expressão das fantasias, dos segredos amorosos e também do autoerotismo[10]”.

O século XVIII confere ao vestir-se, à moda, um papel fundamental como depositária do luxo, dos detalhes, do refinamento e do controle sobre o corpo combinado, por oposição, à licenciosidade dos prazeres.

A moda, como a conhecemos, afirmou-se justamente no decorrer do século XVIII[11], constituindo-se o que Daniel Roche chamou de “cultura das aparências”[12]. Não raro, o Setecentos foi compreendido como século dos excessos, da extravagância do Antigo Regime ou o século de Madame de Pompadour e de Maria Antonieta[13]. O consumo da moda se difundiu, a partir das cortes europeias e sobretudo francesa, atingindo Portugal de modo relativo, voltado para frivolidades, para usar as ideias de Lypovetsky, a partir de meados do século XVIII, desencadeando o “culto moderno consagrado ao efêmero”. Para o autor, “a dignificação social e estética da moda caminhou ao lado da promoção de inúmeros assuntos menores, agora tratados com a maior seriedade (…)”[14].

Com efeito, as roupas e a preparação do corpo se tornaram elementos de um ritual complexo e elaborado, associado à auto-observação no espelho[15]. O boudoir do palácio de Queluz constitui, deste modo, um percurso iconográfico completo sobre a “toilette” masculina e feminina do século XVIII, que pode ser seguido em suas diversas fases através dos onze painéis de pinturas que decoram o ambiente, onde crianças se vestem e se enfeitam[16].

De resto, é notável, no toucador de Queluz, a importância dada aos espelhos na decoração. O espelho, em maiores dimensões e quantidades, tornou-se uma novidade de decoração que passou a fazer parte das casas aristocráticas e burguesas, associado à cultura do supérfluo e da libertinagem no contexto do século XVIII, como uma exaltação do amor próprio, felicidade e prazer que tem sua origem no conhecimento e na observação do próprio corpo – como uma etapa para a sedução[17].

Espaços como o boudoir representam, de fato, para a sensibilidade libertina, “lugares equipados amorosa ou cinicamente para a libertinagem solicitar todos os sentidos. Eles organizam uma concentração de efeitos, uma saturação de impressões e sugestões[18]”. As decorações, tomadas pela ideia de luxo, voltam-se para estímulos sensoriais, como parte da experiência de sociabilidade para sediar os prazeres, mediados pelos sentidos. Esse processo promove, ao mesmo tempo, novas perspectivas sensuais em relação ao corpo e à sexualidade. A descoberta do desejo, por meio dos sentidos, revela uma promessa de felicidade e prazer, cuja origem está na descoberta do próprio corpo. Porém, a “privatização da vida sensorial e sensual funciona também como um lembrete do lado obscuro e caótico por trás da razão, da ordem e das hierarquias[19]”.

Compreender o programa decorativo do boudoir de Queluz, ao sabor das transformações sensoriais ocorridas no século XVIII, em pleno século das luzes e da razão, nas quais os prazeres do corpo e da beleza migram do universo de condenações aos pecados da luxúria e da vaidade para o deleite autorizado, permite verificar que o regramento das vaidades do corpo e dos prazeres fez com que que a moda fosse rigorosamente emoldurada pela etiqueta e pelo bom gosto.

Ao mesmo tempo em que, a julgar pelo boudoir da rainha, por suas roupas e penteados nos retratos, D. Maria I havia se adaptado plenamente à moda de seu tempo, de influência francesa, mas ainda guardava uma ligação muito profunda com os sentimentos religiosos da centúria anterior, do século XVII, uma religiosidade mística, obscura, barroca, por assim dizer, não-iluminista. Um dos médicos que tratou da rainha chegou a supor que as imagens religiosas perturbavam sua saúde mental[20]. Narra-se, em sua biografia, o episódio de um roubo ocorrido em uma igreja em Portugal, quando ladrões deixaram hóstias esparramadas pelo chão. A rainha, por isso, decretou luto oficial, em todo o país, por longos três dias. Os sentimentos religiosos respondiam a um momento cultural oposto, em Portugal, aos ventos da cultura iluminista e libertina francesa e inglesa, ao mesmo tempo da razão e de descoberta do corpo, das sensações e do prazer tátil e visual em relação ao corpo, aos tecidos, à roupa e ao espelho.

Considerando o ambiente do toucador da rainha, não parece estranho que uma personalidade fortemente marcada pelo sentimento religioso, sofresse, naquele espaço caleidoscópico, uma vertigem que poderia conduzi-la à loucura. No mesmo período em que D. Maria I mandou punir os envolvidos na Inconfidência Mineira, com a condenação de Tiradentes à morte, entre 1789 e 1792, vemos seus retratos, em pinturas e gravuras, com o olhar perdido, as roupas e o enorme penteado “pouf” à moda de Maria Antonieta, ainda fiel ao rigor da etiqueta francesa do Antigo Regime. Porém, alguns anos depois, seria retratada com os novos ares do período pós-revolucionário francês, com cabelos mais soltos e naturais e com vestido branco despido dos excessos de luxo.

Não podemos assegurar, no limite destas linhas, que a melancolia ou a enfermidade psicológica que afetou a saúde de D. Maria I, impedindo-a de seguir atuando como monarca de Portugal, pudesse estar relacionada às tensões culturais de seu tempo. No entanto, cabe refletir que o desequilíbrio da rainha poderia representar um aspecto das profundas contradições culturais do século XVIII. De um lado, a permanência dos sentimentos religiosos ainda “barrocos”, superstições e obscurantismos; de outro lado, as luzes do Iluminismo, combinadas com filosofias que se voltavam para as sensações – como forma de conhecimento do mundo e de si mesmo. A decoração do boudoir da rainha, no palácio de Queluz, indica o valor de um espaço destinado às roupas, aos penteados, à aparência e apresenta, para nós, elementos para compreender as ligações entre moda, poder e loucura.

Angela Brandão é professora do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo.

Referências:

Brandão, A. “As estações e os sentidos: um convite aos prazeres do palácio de Queluz”. In: Anais do XXXVII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. História da arte em transe: (i)materialidades na arte. Salvador, 2016. (no prelo)

Cerqueira, B. S. A.  “A primeira chefe de Estado do Brasil. D. Maria, a louca?” Cadernos ASLEHGIS. Jan./abr. 2014. Pp. 151-170.

Condillac, É. B. Le traité des sensations (1745). Paris: Fayard, 1984.
Ferro, M. I. Queluz, o palácio e os jardins. London: Scala Arts & Heritage, 2014

Lipovestsky, G. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia de Bolso. Companhia das Letras, 2009.

Marques, M. T. Fanny e Margot, libertinas: o aprendizado do corpo e do mundo em dois romances eróticos setecentistas. São Paulo: FAP-Unifesp, 2015.

Necho, A. C. “A melancolia do poder: representações e imagens de D. Maria I, a piedosa”. IV EJIHM Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna. Resumo da Dissertação “A melancolia do poder: representações e imagens de D. Maria I, a Piedosa” (1734 – 1799). Mestrado em história, 2012, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Neto, R. D. T. “Melancolia degenerada em insanidade: a loucura de Dona Maria I de Portugal”. Disponível em https://rainhastragicas.com/2016/08/26/a-loucura-de-dona-maria-i-de-portugal/ acesso em 12 de julho de 2018.

Roche, D.  A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII e XVIII). São Paulo: Senac, 2007.

Rybczynski, W. Casa: pequena história de uma ideia. Rio de Janeiro: Record, 1999

Weber, C.  A rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Notas

[1] Inscrição sobre Jesus em camiseta de Manuela D’Ávila é falsa. Foto foi modificada digitalmente por um editor de imagens; imagem original não tem frase sobre travestis e Jesus. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/inscricao-sobre-jesus-em-camiseta-de-manuela-davila-e-falsa.shtml. Acesso em 05/10/2018.

[2] Weber, C. 2008

[3] Ibid. Idem.

[4] Necho, A C. 2014.

[5] Brandão, A. 2016.

[6] As pinturas poderiam até mesmo ter sido realizadas, sem comprovação, no decorrer de um restauro entre 1799 e 1800, ordenado pela princesa Carlota Joaquina, portanto posterior, o que enfraqueceria nossa hipótese. Cf. Ferro, Maria Inês. Queluz, o palácio e os jardins. London: Scala Arts & Heritage, 2014. pp. 89-92.

[7] Ver Rybczynski, W. Casa: pequena história de uma ideia. Rio de Janeiro: Record, 1999

[8] Marques, M. T. Fanny e Margot, libertinas: o aprendizado do corpo e do mundo em dois romances eróticos setecentistas. São Paulo: FAP-Unifesp, 2015, pp. 72-73.

[9] Delon, M. L’invention du boudoir, p. 20 apud Marques, M. T. Op. Cit. p. 73

[10] Marques, M. T. Op. Cit. p. 73

[11] Lipovetsky, G. O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia de Bolso. Companhia das Letras, 2009.

[12] Roche, D.  A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII e XVIII). São Paulo: Senac, 2007.

[13] Lipovetsky, G. Op. cit. p. 96.   Weber, C. Op. Cit.

[14] Lipovetsky, G. Op. cit. p. 99.

[15] Marques, M. T. Op. cit.  p. 121.

[16] Ferro, M I. Op. cit. p. 89

[17] Marques, M. T. Op. cit. 118, 220.

[18] Delon, M. Le savoir-vivre Libertin. p 145. Apud. Marques, M. T. Op. cit., p. 99

[19] Marques, M. T. Op. cit., p. 101, 220, 136 ver Condillac, É. B. Le traité des sensations (1745). Paris: Fayard, 1984.

[20] Neto, R. D. T. “Melancolia degenerada em insanidade: a loucura de Dona Maria I de Portugal”. Disponível em https://rainhastragicas.com/2016/08/26/a-loucura-de-dona-maria-i-de-portugal/ acesso em 12 de julho de 2018.