Por Guilherme Henrique Vicente
Esqueça os ponteiros do relógio. A verdadeira natureza do tempo está além da nossa compreensão.
São necessários 5 segundos para ler do começo até o ponto que encerra esta frase. Contudo, esse breve intervalo pode passar mais rápido, desde que você esteja em um local mais alto ou andando rápido a bordo de um veículo em movimento enquanto lê essas linhas. Embora tal efeito seja ínfimo em termos práticos, ele é sustentado pela física, principalmente pelas teorias de Albert Einstein, e comprovado por experimentos que contradizem a maneira como percebemos o tempo.
Por meio de exemplos parecidos com o do parágrafo anterior e tendo em mãos ciência, filosofia e literatura, o físico italiano Carlo Rovelli destrincha a natureza do tempo no livro A ordem do tempo. A obra é a terceira escrita pelo autor visando a um público mais amplo: antes dela, Rovelli já havia assinado Sete breves lições de física e A realidade não é o que parece, todas já publicadas no Brasil.
“O que denominamos tempo é uma complexa coleção de estruturas e de camadas. À medida que o estudo do tempo avançou, essas camadas se perderam, uma depois da outra, um pedaço após o outro”, escreve Rovelli, logo nas primeiras páginas. Tal introdução serve de guia para o percurso que o autor traça na primeira das três partes que compõem A ordem do tempo. Ele busca desconstruir nossa noção de tempo, que faz com que tenhamos ilusões similares àquelas que nos transmitem as ideias de que a Terra seria plana ou de que é o Sol que giraria ao redor do planeta.
Essa desintegração é levada ao limite: aprendemos que o tempo não é único e universal e de que só o percebemos como uma flecha que vai do passado em direção ao futuro porque vemos o mundo ao nosso redor de maneira aproximada e desfocada, o que nos impede de visualizar os mínimos detalhes de qualquer situação. Nem mesmo a ideia de um tempo presente se sustenta, já que ele é apenas uma espécie de bolha da realidade ao redor de cada um, fazendo com que cada indivíduo tenha um presente para chamar de seu. E não para por aí: se avançarmos ao estranho mundo das partículas quânticas, podemos nos deparar com um local onde o tempo sequer existe, a não ser como probabilidade.
Nesse instante é que as coisas ficam ainda mais peculiares e, em certa medida, incompreensíveis. Rovelli aborda, na segunda parte, as consequências de um mundo sem tempo – pelo menos da forma que convencionamos achar que ele era, antes de ler a primeira parte. Com isso, teríamos um mundo feito não de coisas, mas de eventos, que não se organizam em uma linha, mas se amontoam e acontecem a todo instante. “A diferença entre coisas e eventos é que as coisas permanecem no tempo. Os eventos têm duração limitada”, escreve o autor.
Essas ideias parecem estranhas. E são. Mesmo a linguagem não colabora para a melhor compreensão do que nos cerca. Nossa gramática é incapaz de se adaptar à noção de que passado e futuro não tenham um significado universal, mas sim um significado sempre em constante mutação. A estranheza é complementada pela aridez desse trecho da obra, na qual o autor faz elucubrações sobre sua área de pesquisa, a gravidade quântica em loop. É necessário ter atenção e alguma pesquisa auxiliar para compreender essas páginas, o que pode ser um pouco entediante. Se isso não for suficiente, ainda é possível contar com a compreensão de Rovelli, que sugere aos menos afeitos ao tema pular a leitura desses trechos mais complicados.
Porém, quem atravessa essas páginas é recompensado. Ainda que incapaz de reconstruir totalmente nossa percepção de tempo, o autor separa os últimos capítulos da terceira parte para voltarmos para aquela que é, em uma instância, a fonte do tempo: nós.
Somos conectados a eventos passados por fios que damos o nome de memória. Ela é um importante componente de identidade e permite refletir sobre quem somos e qual nossa relação com o tempo. “Compreender a nós mesmos significa refletir sobre o tempo. Mas compreender o tempo significa refletir sobre nós mesmos”.
Até a estrutura cerebral humana, resultado de milhões de anos de evolução, contribui para isso. O que seria a memória senão a capacidade de utilizar o passado para tentar prever o futuro? Junto com isso, as reflexões de Aristóteles, Santo Agostinho, entre outros filósofos de diversas épocas, permite concluir que o tempo existe apenas na nossa mente, possibilitando nossas interações com o mundo, ainda que de forma bastante rápida e imperfeita.
Ao final das quase 200 páginas do livro, o tempo continuará existindo para nós da mesma forma como sempre lidamos com ele: um fluxo universal, uniforme e ordenado. Esse é o tempo que nossa experiência nos permite acessar. Isso significa que o relógio continuará despertando toda manhã de dia útil, continuaremos nos atrasando para nossos compromissos e reclamaremos da falta de tempo enquanto procrastinamos mais uma tarefa que já está sendo adiada há muito. Por isso, é melhor garantir que seu relógio esteja marcando a hora certa.
A ordem do tempo
Carlo Rovelli
Editora Objetiva, 2018
Guilherme Henrique Vicente é jornalista (Unesp) e aluno do curso de pós-graduação em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.