Por Beatriz Maia
A história do ambiente das refeições passa por episódios assustadores e criativos, contados a partir de invenções básicas
Ainda que comer seja uma ação tão corriqueira, é difícil pensar sobre como esse ato passou por drásticas mudanças ao longo do tempo. Para a jornalista britânica de culinária e pesquisadora da história da gastronomia, Bee Wilson, os utensílios que usamos são o que fazem a diferença mais significativa na maneira de atendermos a essa necessidade humana vital. No livro Pense no garfo! Uma história da cozinha e de como comemos, a autora explora como os implementos usados na cozinha afetam profundamente a maneira de comermos, e o que sentimos a respeito disso.
O livro é dividido em oito grandes temas que cercam as atividades culinárias: Panelas, frigideiras e afins; Faca; Fogo; Medição; Moagem; Servir e comer; Gelo; e Cozinha. Ao final de cada capítulo, uma breve história de um utensílio de uso bastante específico, relacionado ao tema da seção. Os assuntos se desenvolvem a partir de uma abordagem histórica que traça o caminho dos primeiros registros da invenção, passa pelas transformações sofridas ao longo dos séculos e chega até os instrumentos que usamos nos dias de hoje.
A obra é recheada de curiosidades históricas, como, por exemplo, a provável razão pela qual as regras de etiqueta francesa repudiam o corte das verduras da salada no prato. Até a fabricação de talheres de mesa em aço inoxidável, no começo do século XX, as lâminas de aço comum das facas escureciam em contato com os molhos ácidos, o que deixava um gosto metálico desagradável. Pelo mesmo motivo as facas para peixe possuem até hoje um formato diferente, criado para separar as confeccionadas em prata especialmente para a função.
Mais do que um manual de curiosidades, os episódios chamam atenção para as pistas que os registros culinários deixaram sobre as sociedades que os produziram. Em uma receita de panqueca de 1393, recomenda-se bater a massa “por tempo suficiente para cansar uma ou duas pessoas”. A receita, nas palavras da autora, “evoca uma cozinha em que haveria um exército permanente de criados, dispostos como uma porção de utensílios. Quando um subalterno fica esgotado, outro toma seu lugar”. Ao contrário das receitas que conhecemos, feitas para serem seguidas pelo leitor, as instruções não eram destinadas a quem executaria o trabalho.
Dessa forma, Wilson demonstra que a tecnologia culinária utilizada nas cozinhas diz respeito a tudo que a cerca: suas instalações, as vidas de ricos e de criados, as estruturas social e familiar, o estado da metalurgia e outras inúmeras variáveis. Pensemos no fogão, aparelho básico para se cozinhar, e que há poucos séculos não havia sido inventado. Antes de sua versão mais rudimentar – uma caixa metálica abastecida com lenha -, assamos carnes em lareiras abertas dentro de casa, sem ao menos uma chaminé para escoar a fumaça. “Todo o estilo de vida que sustentava a preparação da comida na lareira tornou-se obsoleto […] Assar a carne diretamente no lume condiz com toda uma cultura que se perdeu”, escreve a autora.
Ainda assim, há que se tomar o cuidado para não cair em uma espécie de determinismo culinário, que, se fosse real, teria extinguido iguarias como queijos e embutidos, inventados pela necessidade de conservar alimentos sem refrigeração. Para a autora é um anacronismo ainda nos deliciarmos com salames, linguiças e parmesão, porém, ressalva, somos criaturas de hábitos, e aprendemos a gostar de alimentos um dia criados por necessidade. As mudanças tecnológicas também trouxeram hábitos de consumo que pouco se relacionavam com o paladar, e mais com os modismos de seus tempos. Os iogurtes do começo do século XX, por exemplo, eram pouco saborosos, mas compunham um belo cenário dentro das recém-compradas e caríssimas geladeiras, e por isso tomaram o lugar dos agora antiquados mingaus. “Pela primeira vez na história, quase todas as pessoas tinham acesso ao gelo durante o ano inteiro. Às vezes, simplesmente não sabíamos o que fazer com ele”, escreve Wilson.
E se pensarmos no garfo, como recomenda o título, é bom sabermos que ele é uma invenção relativamente recente, que provocou desdém e risadas quando surgiu. Os garfos semelhantes aos que usamos hoje foram considerados estranhos até o século XVII, exceto entre os italianos, que desde a Idade Média já o utilizavam para comer macarrão. Para a autora, os utensílios de mesa são, sobretudo, objetos culturais. Eles incorporam em si próprios “uma visão para cada comida e de como devemos nos portar em relação a ela”.
O livro se dedica a preencher a história da tecnologia com a história da comida. Wilson destaca que “há tanta inventividade num quebra-nozes quanto num projétil”. O lugar da comida nas narrativas históricas sobre os avanços industriais fica restrito ao contexto da agricultura, e ignora o trabalho doméstico da cozinha. Se houve pouquíssimo interesse em criar tecnologias para a cozinha praticamente até o final do século XIX, é porque as camadas privilegiadas da população dispunham de mão de obra abundante para as tarefas extenuantes. Apenas quando não se tolerou mais o trabalho escravo e infantil é que o mercado se mobilizou para criar aparelhos básicos em qualquer cozinha moderna, como o liquidificador. Nas palavras de Wilson, os utensílios são libertários, e inúmeras refeições antes temperadas pela dor estão hoje livres de problemas.
Nossas cozinhas são cheias de fantasmas, conclui a autora. Ainda que entremos nelas sem lembrar as histórias de oleiros que fizeram os primeiros potes e permitiram que a humanidade fervesse a água, ferreiros que forjaram as facas, ou engenheiros que projetaram geladeiras, eles estão lá. “A comida que preparamos não é apenas uma montagem de ingredientes. É produto de tecnologias passadas e presentes”, arremata Wilson.
Pense no garfo! A história da cozinha e de como comemos
Bee Wilson
Editora Zahar
2014
Beatriz Maia é jornalista pela Unesp e aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp.