Por Suzana Petropouleas e Monique Rached
Uma das características mais marcantes em crianças e adolescentes é a curiosidade. A ânsia em perguntar sobre tudo aflora, cedo ou tarde, e traz divertidos casos de reflexão – e, frequentemente, constrangimento – nos adultos. A curiosidade latente e interesse pelo mundo tende a se esvair com o tempo, se não estimulados. Esse é um entre muitos desafios da divulgação de ciência para esse público.
Segundo dados da Prova Brasil, apenas 30% dos alunos de 9° ano aprendem o adequado em leitura e interpretação de texto, comprometendo a apreensão mesmo de textos simples de ciência. Ainda assim, existem diversos exemplos do quanto as crianças podem se fascinar. Uma pesquisa promovida pela empresa Michael Page no Reino Unido revelou que a profissão de cientista ocupava o terceiro lugar na aspiração de carreira, tanto de meninos como de meninas (ambos na faixa de 7 a 11 anos). Ainda que o interesse seja grande, a forma de transmissão do conhecimento científico é alvo de debates.
A jornalista Lucy Hawking defende em palestra para o TEDx a união da ciência à metodologia do storytelling e conta que Stephen Hawking, seu pai e cientista falecido em março de 2018, quando perguntado por algumas crianças sobre o que aconteceria se chegassem perto de um buraco negro, respondia de maneira simples e divertida. “Você seria esticado igual a um espaguete”, diria. A resposta é adequada para uma criança de dez anos, segundo Lucy, pois é algo do qual as crianças conseguem criar uma imagem e iniciar a formação de um conceito que será firmado depois. O equilíbrio entre ser didático e condescendente é um desafio constante na divulgação de ciência para crianças, no entanto.
História para criança ouvir
A jornalista Christiane Bueno, especializada em jornalismo científico e cultural pelo Labjor (Unicamp) e autora dos livros Divulgação científica: produzindo notícia, produzindo ciência (Saraiva) e Divulgando ciências para crianças: imagens de crianças, ciências e cientistas na divulgação científica para o público infantil (Novas Edições Acadêmicas), adiciona: “O desafio é enxergar as crianças como um público inteligente, interessado e totalmente capaz de lidar com assuntos de ciências”.
Christiane fez um extenso diagnóstico sobre a divulgação científica para o público infantojuvenil no país durante o mestrado e a pesquisa para a criação dos livros. “A divulgação para crianças no Brasil é escassa, para não dizer inexistente. Há veículos e suplementos especializados, mas que abordam assuntos variados – a ciência está lá, entre outros temas que vão de culinária à cinema, numa verdadeira colcha de retalhos que, muitas vezes, não faz sentido nem desperta o interesse”, explica ela, que também tem um blog de literatura infantil.
Durante o mestrado, feito no Labjor/Unicamp, pesquisou como os veículos infantis divulgavam ciência. “Foi preocupante ver como as imagens que se constroem ainda são carregadas de estereótipos e como a divulgação científica ainda parece não se preocupar em atingir esse público”. Ainda assim, ressalta que “muitos autores conseguem escrever sobre temas considerados complexos e até mesmo controversos para crianças com maestria e sem utilizar linguagem ‘infantilizada’”.
Assunto de menina
Em suas pesquisas, a jornalista apresenta e discute criticamente as imagens sociais da ciência, do cientista e da própria criança. “A divulgação científica para o público infantil deixa mais evidente estereótipos e imagens que estão presentes também na divulgação para adultos, como aquela ideia de um público “leigo” que precisa ser ensinado, de cientistas como detentores do conhecimento, e do público apenas como receptor da informação”.
Christiane notou também como as construções de gênero afetam as narrativas. “Geralmente, os temas de ciências – especialmente das ciências exatas – são dirigidos aos meninos. Na maioria esmagadora das vezes, os cientistas e exploradores são ainda retratados como figuras masculinas. As mulheres aparecem mais quando o assunto abordado é de ciências humanas, ou quando se trata de “cuidar do outro”.
Há uma tendência perceptível em mudar esse quadro, porém esses estereótipos persistem. “Desde a infância, constrói-se uma imagem do que devem gostar, como devem se comportar, com o que devem se identificar (por exemplo, homem explorador, mulher cuidadora). É preciso tomar muito cuidado, pois se as meninas não se veem representadas, se afastam. A ciência continua um campo com participação feminina menor, e não por falta de aptidão”, explica a jornalista.
Em 2016, uma equipe de cientistas do Departamento de Geologia e Paleontologia do Museu Nacional do Rio de Janeiro, formada pelas astrônomas, botânicas, geólogas e paleontólogas Luciana Witovisk, Luciana Carvalho, Andrea Costa, Maria Elizabeth Zucolotto, Eliane Guedes, Viviane Trindade e Taísa Souza espantou-se com a descoberta da existência de uma “escola de princesas”. A reação, com o fervilhar de “cursos de desprincesamento” pelo país, inspirou as pesquisadoras, que trabalham em uma área historicamente masculina. Conforme descrevem, para “mostrar às meninas que é possível ser mulher, trabalhar com ciência e fazer o que se sonha”, criaram o projeto “Meninas com ciência”, curso de extensão voltado para estudantes do 6º ao 9º ano do ensino fundamental.
“A intenção é acolher a todas e mostrar que, para fazer ciência, é necessário ter a curiosidade infinita, espírito crítico, muita disciplina para os estudos e garra para enfrentar os rótulos que nos colocam”, explicam, em entrevista à reportagem. Com oficinas aos sábados, atividades práticas em geologia e paleontologia dividem espaço com discussões sobre a presença das mulheres na ciência, as dificuldades e os encantamentos da carreira. O curso já está em sua terceira edição, que será entre maio e junho de 2018, e a procura é tamanha que é realizado um sorteio online para distribuição das vagas.
As pesquisadoras citam o artigo “Crianças e conhecimento científico: produção de sentidos e marcas culturais“, de Guaraciara Gouvea, como um dos elementos que também motivou a criação do curso. Pela análise de 88 edições da coluna “Quando crescer, vou ser” da revista Ciência hoje para crianças, a pesquisa mostrou que os estereótipos de gênero eram continuamente reforçados. Grande parte das publicações mantém o título, texto, imagens e entrevistas com pesquisadores homens. “São poucas as entrevistas com mulheres nas áreas de ciências exatas e ciências da Terra. As meninas simplesmente não se veem representadas! As áreas cujo título, texto, imagens ou entrevistas referem-se às mulheres são as voltadas à saúde e educação, ou seja, áreas consideradas femininas”, explicam as pesquisadoras do Museu Nacional.
A representação do cientista divulgada para esse público gera indagações curiosas pelas participantes, conta a geóloga Eliane Guedes. “Muitas meninas perguntam sobre a vida de cientista, porque a família e os amigos falam que se elas estudarem e se tornarem cientistas nunca vão casar e vão acabar sozinhas. Mostro que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Conto que eu sou geóloga, cientista, tenho marido e filhos. Eu acho isso muito curioso”.
Com o sucesso da empreitada, as pesquisadoras decidiram torná-lo perene. “A cada turma que recebemos, aprendemos mais e percebemos que fazemos a diferença. As meninas se apropriam do museu, ele deixa de ser uma instituição longe da realidade e vira uma segunda casa. Cria-se um elo afetivo. As turmas são sempre 50% de meninas de escolas públicas e 50% de escolas privadas, que são separadas por um abismo econômico e social e se encontram aqui”.
A iniciativa de divulgação de ciência para jovens meninas foi abraçada pela comunidade do museu. “Isso ficou nítido quando solicitamos que nossos colegas “apadrinhassem ou amadrinhassem” uma cursista. A proposta era que comprassem um livro sobre mulheres cientistas para a “afilhada”. A adesão ampla e imediata mostrou que o curso também mobilizou vários outros setores”, conta a botânica Andrea Costa.
Em 2017, o projeto recebeu menção honrosa do 8º Prêmio Ibero-Americano de Educação e Museus. Dos 148 projetos inscritos de 18 países apenas duas menções honrosas foram para o Brasil. Também faz parte do banco Ibero Americano de Boas Práticas de Ações Educativas. A terceira edição do curso contará com a parceria da gerência de fomento à pesquisa da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
Ciência para todas
Entre visitas guiadas ao museu e discussões sobre rochas, meteoritos e fósseis, meninas de diferentes backgrounds interagem e aprendem juntas. É expressivo o esforço do projeto em levar divulgação da ciência para meninas de baixa renda e contextos de vulnerabilidade. A organização ressalta a importância de famílias e professores da escola pública para a inscrição dessas jovens, e o trabalho conjunto entre esses atores é essencial. “O esforço feito por pais e mães para que as filhas pudessem fazer o curso me emocionou. Alguns passavam o dia inteiro no museu. A partir dessa observação, o museu começou a oferecer atividades paralelas, voltadas para as famílias das cursistas”, diz Andrea.
“Nosso grande desafio é conseguir manter turmas com 25 vagas para escolas privadas e 25 para escolas públicas. As meninas de escolas públicas dificilmente têm apoio em casa, ou por desinteresse/desaprovação dos familiares ou por problemas financeiros, pois não podem arcar com o transporte e a alimentação durante o curso. Há grande desistência após o sorteio. Para preencher as 25 vagas de meninas de escolas públicas, precisamos chamar mais de 40. Por isso, sonhamos em fornecer alimentação e transporte nas próximas edições”, conta Luciana Witovisk, paleobotânica e coordenadora da terceira edição do curso.
O formato mais adequado para despertar o interesse dessa faixa etária, bem como os temas de maior interesse têm sido investigados pela organização. As palestras são um formato de menor sucesso se comparadas às oficinas – somente 51% das participantes avaliaram como muito interessante o conjunto de palestras proferidas pelas pesquisadoras. Já a oficina melhor avaliada pelas cursistas, sobre meteoritos, foi considerada muito interessante por 93%. Em segundo lugar, sendo consideradas muito interessantes por 83% das cursistas, estiveram a oficina de rochas e minerais e a de paleovertebrados.
Polêmicas, críticas e a ciência que transforma e é transformada
Num mundo cada vez mais conectado, com extremismos, pós-verdade e fake news, como as cientistas abordam temas polêmicos como criacionismo e terraplanismo com seu público infantojuvenil? “Caso surgisse este tipo de questionamento, aproveitaria para explicar como a pesquisa científica é realizada, para que possam entender a diferença entre ciência e crença”, diz Luciana Carvalho, paleontóloga e também organizadora do curso.
“As meninas que participaram até agora se interessaram muito pela evolução da vida e do planeta”, adiciona Witoviski. “Ficam maravilhadas com os fósseis e “chocadas” quando eu mostro que a maior paleobotânica do Brasil era freira também e trabalhou lindamente com evolução! Aí sim, entramos em uma discussão sobre religião e ciência. Mostro que as duas não são necessariamente antagônicas. Podem andar paralelas, em paz”.
O sucesso e interesse pelo curso são tamanhos que muitas mães pedem a inclusão dos meninos no projeto. “O museu realiza muitas atividades de extensão, mas esta permanecerá exclusiva para meninas, já que a maior parte dos participantes (dos demais cursos) o ano todo é de meninos”, esclarece a coordenadora.
A posição reflete um esforço consciente em reduzir a desigualdade de gênero na educação e acesso à ciência. Segundo o Atlas de Desigualdade de Gênero na Educação publicado pela Unesco em 2016, quase 16 milhões de meninas entre 6 e 11 anos nunca irão à escola – o número é duas vezes maior que o de meninos. E embora meninas se interessem por ciência na infância, esse interesse tende a ser desencorajado pela socialização que recebem e a se esvair até a vida adulta.
Suzana Petropouleas é economista e aluna da especialização em jornalismo científico no Labjor/Únicamp. Tem bolsa Mídia Ciência (Fapesp).
Monique Rached é bióloga e aluna da especialização em jornalismo científico no Labjor/Únicamp.