Por Sophia La Banca de Oliveira, Maria Letícia Bonatelli e Sarah Azoubel Lima
Em sua maioria, as reportagens guiadas por dados são focadas em política ou economia. Porém os cadernos de ciência também podem se beneficiar da abundância de dados coletados nas pesquisas científicas.
Em 2018, o Data Journalism Awards, prêmio internacional para reportagens guiadas por dados, recebeu o maior número de concorrentes desde sua origem, em 2012. Foram 630 submissões de 58 países. A tendência é que aumente ainda mais, considerando a quantidade de dados captados, armazenados e transmitidos no mundo.
O volume enorme de informação disponível cria um problema: dar um sentido a todo esse material. Porém, para os jornalistas que encaram as longas tabelas e páginas de códigos, os dados geram muitas oportunidades. “Encontramos histórias nos dados. Tentamos chegar com o mínimo de preconceito sobre as conclusões”, conta Sérgio Spagnuolo, jornalista e fundador do Volt Data Lab, uma agência independente de jornalismo e pesquisas com dados.
A investigação pode levar o jornalista a descobertas inesperadas. Segundo Daniel Bramatti, editor do Estadão Dados e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), “muitas conclusões de nossas análises são contra intuitivas. Um exemplo é a reportagem que fizemos sobre a principal variável associada à mortalidade infantil: pensamos inicialmente que seria a falta de saneamento, mas os dados mostraram que é a educação dos pais”.
Grandes veículos internacionais já assimilam profissionais competentes em análise de dados em suas redações. No momento, o americano Washington Post está expandindo sua demanda por jornalistas e desenvolvedores dedicados à investigação e visualização de dados. O The Guardian, do Reino Unido, também conta com uma equipe especializada no setor. Bramatti aponta que “no Brasil, o jornalismo de dados está crescendo. Ainda é uma área com poucos participantes e pouco investimento, mas as equipes estão se formando e o número de trabalhos publicados aumenta”. Atualmente, o Estadão Dados conta com apenas dois jornalistas, e a dupla trabalha com o apoio das outras editorias e dos infografistas do jornal.
Em sua maioria, as reportagens guiadas por dados são focadas em política ou economia. Porém os cadernos de ciência também podem se beneficiar da abundância de dados coletados nas pesquisas científicas. Um bom exemplo vem do The New York Times, que criou um time de análise e visualização de dados dedicado a cobrir as mudanças climáticas. A equipe liderada por Hanna Fairfield, que possui formação em jornalismo e geoquímica, já criou matérias impressionantes, como a que simula as linhas de derretimento de gelo na Antártida ou ilustrando a expansão de dias muito quentes no globo.
Jornalismo de dados: o que é e o seu começo no Brasil
Jornalismo de dados (ou jornalismo guiado por dados) é um termo que surgiu na metade da década de 2000 e que se refere às práticas jornalísticas que utilizam dados como base para gerarem notícias. Apesar de o termo ter sido cunhado recentemente, pode ser considerado um desenvolvimento de outros dois conceitos: jornalismo de precisão (JP) e reportagem assistida por computador (RAC). Esses termos foram propostos entre o final da década de 1960 e início de 1970, e foram impulsionados pelos avanços tecnológicos.
O jornalismo de precisão trouxe o rigor acadêmico ao jornalismo, utilizando metodologias adotadas nas ciências sociais. O exemplo mais clássico de JP foi a história de Philip Meyer sobre os conflitos raciais que ocorreram em Detroit, em 1967, que ganhou um prêmio Pulitzer. Já a reportagem assistida por computador, como o próprio nome sugere, consistiu na implementação de computadores para reunir e analisar os dados utilizados para fazer uma notícia. Na época, tanto o JP quanto a RAC representaram mudanças importantes na forma como os jornalistas analisavam os dados coletados.
Mais recentemente, grandes avanços na captação de informações em diversas áreas da sociedade – governo, indústrias, pesquisa, mídias sociais – provocaram outra transformação significativa na forma de enxergar e trabalhar dados. O termo jornalismo de dados foi utilizado pela primeira vez pelo desenvolvedor de software Adrian Holovaty, em 2006. No texto “A fundamental way newspaper sites need to change”, Holovaty expressa a importância de usar técnicas de gerenciamento de dados na redação dos jornais, advogando a necessidade de o jornalista se capacitar para explorar o Big Data. No cenário hiper-tecnológico de hoje, o caminho predito por Holovaty tornou-se indispensável.
No Brasil, o jornalismo de dados começou a ganhar destaque em 2012. Nesse ano, surgiram dois blogs dentro de grandes meios de comunicação, o FolhaSPDados e o Estadão Dados (que continua ativo). Desde então, várias agências e escolas voltadas aos jornalistas de dados têm surgido no país. “A demanda está crescendo, e o mercado precisa de pessoas que saibam lidar com dados. Mas ainda há poucos jornalistas que estão nesse nível, e acabamos buscando profissionais em outras áreas”, afirma Spagnuolo.
A evolução do jornalismo de dados nacional já é notável: em 2017 o grupo brasileiro da Abraji ganhou um dos prêmios do Data Journalism Awards com o trabalho CTRL-X, que monitora ações judiciais contra divulgação de informações. Além disso, já foram realizadas duas edições da Coda.Br, a conferência nacional de jornalismo de dados, e, a partir de 2018, as reportagens brasileiras guiadas por dados estão sendo compiladas no site DDJBR (Data Driven Journalism Brasil), lançado pelo Volt Data Lab.
Jornalismo de dados na ciência
Com a circulação de fake news e teorias da conspiração, visualizações gráficas de dados científicos podem fazer toda a diferença. Em uma reportagem de 2015, o Wall Street Journal mostrou graficamente o impacto das vacinas. Com as imagens criadas, o leitor pode identificar facilmente a expressiva queda no número de pessoas infectadas após o início das campanhas de vacinação. O site espanhol Medicamentalia, premiado pelo Data Journalism Awards, usa dados para investigar a precariedade no acesso à saúde ao redor do mundo. E o já mencionado New York Times gera visualizações que ilustram as consequências do aquecimento global de maneira palpável. No Brasil, o Nexo publicou uma reportagem mostrando a concentração de pessoas com doutorado nas diversas regiões do país. A visualização reflete como a ciência nacional se concentra nas capitais e no eixo sul-sudeste.
Cada vez mais, as descobertas científicas são baseadas em grandes conjuntos de dados. Em um artigo para o site Data Driven Journalism, mantido pelo Centro de Jornalismo Europeu, o jornalista Frank Odenthal afirma: “A comunicação dessas pesquisas é um desafio não só para os cientistas, mas também para os jornalistas. […] Apesar da dificuldade, o jornalismo científico pode causar um grande impacto quando ajuda o público a fazer sentido dos números e fatos.”
Segundo Daniel Bramatti, “uma das definições do jornalismo de dados é que é a aplicação do método científico no noticiário. Gosto dessa abordagem: propor uma hipótese, ir aos dados, testar e comprovar – ou refutar.” Essa aplicação do método científico coloca o jornalista também em posição de pesquisador. Bramatti acredita que o jornalismo de dados e o jornalismo científico teriam a ganhar com uma convivência mais intensa. Mas o editor ressalva que “são duas áreas com escassez de pessoal nas redações”.
Desafios
Apesar da facilidade de acesso às informações ter sido um fator importante no surgimento do jornalismo de dados, nem sempre a liberdade de acesso, que é garantida por lei, é cumprida. No Brasil, a transparência dos dados públicos é garantida desde 2011 pela lei de acesso à informação (LAI) – mas o levantamento realizado pela ONG Artigo 19 mostra que 56% dos pedidos são negados e 12% são atendidos apenas parcialmente. Além disso, ainda existem 4 estados e muitas cidades (entre elas, 5 capitais) na qual a LAI ainda não foi regulamentada.
Uma das formas de se lidar com esse desafio é a compilação dos próprios dados. “Acredito bastante em fazer coisas orientadas por levantamento, e não só depender de dados levantados por terceiros”, aponta Spagnuolo. “Boa parte do que fazemos no Volt Data Lab é compilar dados. Desenvolvemos e bancamos um projeto que faz a conta dos passaralhos [demissões em massa] nas redações brasileiras. Somos responsáveis pela organização e inteligência por trás dessas informações”, continua.
Mas essa não é a única dificuldade enfrentada. No Brasil, as próprias redações não se mostram preparadas para esse novo modelo. “A principal dificuldade é a falta de recursos. Jornalismo de dados exige investimento considerável, principalmente em pessoal, e o conteúdo geralmente é produzido de forma mais demorada”, diz Bramatti. Essas dificuldades são potencializadas pelo ritmo acelerado das redações, como exemplificado por Spagnuolo: “O jornalista já tem muitas atribuições, tem que cobrir de enchente à eleição. No meio disso tudo, acaba encarando a análise de dados como uma tarefa a mais. Chegamos a ficar até dois meses fazendo uma investigação maior. Seria difícil fazer essas análises numa redação sem ter uma equipe dedicada para isso”.
Diante desses desafios, é difícil acompanhar as mudanças. No capítulo “Jornalismo de dados no Brasil: tendências e desafios”, do livro Monitoramento e pesquisa em mídias sociais: metodologias, aplicações e inovações, Soraia Lima, professora de jornalismo na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), discute a entrada do jornalismo brasileiro no ambiente digital. “Embora os portais jornalísticos sejam uma realidade há quase 20 anos, eles apresentam-se de maneira caricata, reproduzindo modelos editoriais e de negócios vigentes em mídias tradicionais, o que faz com que o espaço virtual não seja aproveitado em termos de potencialidade, interatividade, usabilidade e navegabilidade”.
Formação dos jornalistas
A formação dos jornalistas também não é adequada a essa nova realidade, destaca Gustavo Faleiros, do InfoAmazonia: “Para continuar fazendo seu papel, essa mudança de escala está cobrando uma nova especialização do jornalista, bem mais voltada para a ciência e para a análise de dados”. Para ele, o Brasil se encontra defasado nesse sentido: “Nos últimos anos tenho sempre trabalhado em parceria com alguma organização americana. Dá para ver que está muito avançado, seja nos jornais, nas escolas, nos treinamentos, nos recursos e nas pessoas”.
A história de alguns dos atuais jornalistas de dados do país mostra que o conhecimento das técnicas envolvidas foi aprendido autodidaticamente. “Comecei na marra, sempre trabalhei com dados. Como jornalista, usava dados que existiam por aí, e mexia com algumas planilhas, nada muito avançado. A partir de 2014, comecei a me interessar mais e a me especializar. Aprendi tudo por tutorial online” aponta Spagnuolo. Faleiros também mencionou que, durante a graduação em jornalismo, não teve nenhum conteúdo neste sentido.
É certo que existe um descompasso entre o conhecimento recém desenvolvido – seja dentro das universidades ou pelos programadores de software – e o ensino formal nas universidades. No entanto, Faleiros aponta que os grandes jornais ou agências de notícias, como Bloomberg, Reuters, New York Times, Washington Post e Wall Street Journal já esperam, dos jornalistas, conhecimento nessa área “O profissional tem que ser jornalista (saber fazer entrevista, ter trabalhos publicados) e saber HTML, CSS, Java Script, com trabalhos publicados. Excel, SQL, são linguagens básicas para filtrar dados. O mercado já espera isso dos profissionais”.
Assim, o perfil dos profissionais que trabalham nessa área aproxima-se a valores da cultura hacker. Marcel Träsel, em seu trabalho “Jornalismo guiado por dados: aproximações entre a identidade jornalística e a cultura hacker” observa traços da cultura hacker nesses profissionais, como “a tendência à apropriação de tecnologia, a valorização da liberdade de informação e a disposição para o trabalho colaborativo”. De fato, muito do que é pioneiro nesta área surge por meio de reuniões informais, ou meet-ups, e plataformas abertas de códigos, como o GitHub.
Mas existem iniciativas importantes para capacitar os profissionais brasileiros. Spagnuolo oferece cursos através do Volt Data Lab “O Volt dá cursos para iniciantes, de introdução de jornalismo de dados. Ensinamos como criar uma narrativa com os dados, e algumas análises mais básicas, mas não programações avançadas”. A Abraji e o Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados oferecem cursos online sobre jornalismo e análise de dados e, em 2017, a Folha de S. Paulo, em parceria com a Google News Lab, ofereceu um programa de capacitação em jornalismo de dados. O Knight Center também oferece treinamentos à distância em português. E a Escola de Dados tem um braço no Brasil pelo qual organiza cursos e encontros de análise e jornalismo de dados. Ainda são poucas os cursos de graduação em jornalismo que possuem disciplinas de análise e visualização de dados e a oferta de cursos ainda é tímida frente à demanda por profissionais qualificados.
Aprender a lidar com o volume de dados gerados e trabalhar com eles será essencial para extrair notícia e agregar valor e significado aos dados. “Um amigo me disse que precisava pagar o curso de código para seu filho, e eu respondi: “pague, porque é o novo inglês”, explicitou Faleiros.
Sophia La Banca de Oliveira é farmacêutica (UFPR), mestre em bioquímica (USP) e doutora em psicobiologia (Unifesp). É aluna do curso de jornalismo científico do Labjor e bolsista Mídia Ciência.
Maria Letícia Bonatelli é formada em ciências biológicas (Unicamp), com mestrado e doutorado em ciências (USP). É aluna do curso de jornalismo científico do Labjor e bolsista Mídia Ciência.
Sarah Azoubel Lima é doutora em biologia pela Universidade da Califórnia em San Diego e mestre pela Unicamp. É aluna do curso de jornalismo científico do Labjor/Unicamp.