Por Beatriz Maia, Cristiane Bergamini e Paula Drummond de Castro
Embora tenham ocorrido avanços, como a diversificação de públicos, o modelo de divulgação centrada nos cientistas ainda prevalece na região.
Democratizar o conhecimento científico e situar o público nos processos que envolvem ciência é um dos maiores objetivos da divulgação científica. Na América Latina, este desafio é particularmente ardiloso, dado o contexto de grande desigualdade social e econômica da região, onde vivem cerca de 630 milhões de pessoas. Pobreza e prosperidade convivem em períodos de recessão e crescimento, mas o cenário atual ainda é preocupante. Segundo dados de 2017 do Banco Mundial, a desigualdade não está diminuindo e 39% dos latino-americanos são vulneráveis à pobreza.
É certo que uma crise econômica atinge os investimentos em pesquisa e desenvolvimento na região, porém podem ser apontadas diferentes iniciativas e políticas de incentivos que visam proteger a produção de ciência. O Relatório da Ciência da Unesco – Rumo a 2030 aponta avanços para os países latino-americanos. Segundo o documento, houve notável melhora em termos de acesso ao ensino superior, mobilidade científica e produção científica. Neste contexto, divulgar o conhecimento científico latino-americano traz o desafio de lidar com questões de fundo como o financiamento à pesquisa local; a estruturação do sistema de ciência, tecnologia e inovação; e a abertura democrática de cada país. Todos esses fatores dão os contornos à relevância da prática de se divulgar a ciência.
Entre as boas notícias, diversas iniciativas no campo da divulgação científica têm se apresentado mais fortemente nas últimas décadas nesses países, com o objetivo de disseminar e popularizar a ciência. Os exemplos incluem, particularmente, esforços para levar a ciência de forma lúdica às escolas e mostrar didaticamente as relações entre ciência, artes e tecnologia, a partir de ferramentas como museus e materiais educativos para a formação de divulgadores.
Luisa Massarani, diretora do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia e diretora da RedPOP-Unesco, Rede de Popularização da Ciência e da Tecnologia para a América Latina e o Caribe, de 2014 a 2017, segue nessa linha afirmativa quando ressalta a importância dos museus de ciência na divulgação científica dos países da América Latina. “Enquanto na década de 1970 contávamos nos dedos da mão quantos museus de ciência existiam, identificamos, hoje, quase 500 no guia que produzimos em 2015. E sabemos que há outros. Há também uma preocupação crescente com a construção do campo acadêmico em divulgação científica, por melhor formação e pela profissionalização”, analisa.
De acordo com Massarani, Brasil e México são os países da América Latina que mais possuem ações em divulgação científica, seguidos por Colômbia e Argentina. Em um levantamento realizado em 2016, a pesquisadora reuniu dados sobre a distribuição de artigos publicados nas três principais revistas de divulgação científica da região, distribuídos pelo país de cada autor. O resultado apontou o Brasil como o país com mais publicações (51%), com México e Estados Unidos em segundo lugar (15% cada um), seguidos por Argentina (10%), Espanha (8%), Chile e Canadá (3% cada). Na área de políticas públicas, dos 35 países da região, apenas 14 possuem políticas de divulgação científica.
Na área de jornalismo científico, o Brasil foi um dos países que saiu na frente, com uma comunidade forte cuja expressão foi a criação da Associação de Jornalismo Científico (ABJC), em 1977. Argentina, Colômbia, Chile e Venezuela também criaram suas associações na mesma época. Já o México, com forte tradição em divulgação científica, só há poucos anos criou sua rede de jornalistas científicos, que segue bastante ativa. Para Massarani, o campo é vulnerável, mas também capaz de se reinventar, quando há indivíduos dispostos. “Esperamos que a geração jovem que está despontando se anime a criar uma rede”, conclui a pesquisadora.
Na publicação La promoción de la cultura cientifica, editada pelo Observatório Iberoamericano de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Organização de Estados Iberoamericanos, Carmelo Polino e Carina Cortassa analisaram o jornalismo científico latino-americano e observaram que a ciência e a tecnologia não estão na pauta rotineira da agenda de notícias da maioria dos países da região. Quando o tema é abordado, geralmente é no contexto de pesquisas de países industrializados, ignorando as atividades científicas locais. As exceções estão no Brasil e na Argentina, que priorizam as pesquisas nacionais. Contudo, observa-se a profissionalização e a institucionalização do jornalismo científico, com diferenças em cada país. A profissionalização, segundo os autores, é maior nos países nos quais a indústria cultural e a mídia estão mais articuladas e a ciência e a tecnologia também mais institucionalizadas. Logo, Argentina, Brasil, Colômbia e México contrastam com Peru, Bolívia, Panamá ou Equador. Os resultados desses estudos indicaram deficiências estruturais no jornalismo de ciência. A cobertura de ciência está mais orientada para a descrição descontextualizada do que por perspectivas analíticas dotadas de antecedentes, e as notícias científicas por vezes se reduzem a “descobertas científicas”. Assim, temas que merecem mais atenção têm pouco espaço, e tendem a ficar sem a cobertura dos riscos, dos interesses e dos impactos, como os sociais e ambientais.
Apesar de tudo, o que se percebe hoje na América Latina é o grande esforço na formação de pesquisadores. O grande desafio para esses países, de acordo com Luisa Massarani, é superar o fato de que uma grande parte da população ainda está à margem das ações de divulgação científica. “Ainda são poucas as iniciativas de avaliação das ações de divulgação científica e de entendimento do que elas significam para os públicos. É necessário sistematizar os esforços de capacitação, tornando-os mais frequentes”, analisa a pesquisadora. Nesse sentido, um dos principais entraves para que se incremente a disseminação e a popularização da ciência nos países da América Latina em comparação aos países de maior desenvolvimento nessa área é a visão centrada nos cientistas, em um modelo que se baseia em pessoas que supostamente sabem para pessoas que supostamente não sabem. “Ainda não envolvemos adequadamente os públicos em todo o processo. Um exemplo disso é que temos poucas iniciativas de ciência cidadã. O segundo deles é a vulnerabilidade desse campo, como já mencionado. Um trabalho de anos, bem construído, pode simplesmente desaparecer rapidamente”, conclui Massarani.
Chile: rumo ao profissionalismo na divulgação científica
O argumento de que o país precisa de mais pesquisas para avançar, parece não funcionar na opinião pública do Chile. Segundo o estudo sobre percepção social da ciência e da tecnologia no Chile, conduzida em 2016, a pesquisa científica está localizada entre as últimas prioridades de investimento público para os estrevistados. Apenas 3,5% dos entrevistados citaram primeiramente “ciência” e 10,5% mencionou entre suas respostas. Mais de 80% dos entrevistados não conhecia uma instituição de pesquisa científica e tecnológica no país. A falta de divulgação científica profissionalizada e institucionalizada é colocada como uma das razões para esse resultado.
Michel Parra, sociólogo e mestre em estudos sociais da ciência e tecnologia pela Universidade de Salamanca (Espanha) e atualmente pesquisador independente no Chile, tem um olhar mais otimista para o cenário. Ele considera que a divulgação científica chilena está crescendo, e atribui o fenômeno a dois fatores: “temos uma comunidade ativa de disseminadores que, com o tempo, ganhou espaço para realizar diferentes tipos de iniciativas com muita criatividade e poucos recursos. E temos um programa público, cujo objetivo foi promover a divulgação científica entre crianças e jovens em idade escolar”, afirma o pesquisador, referindo-se ao Programa Explora de Conicyt, órgão federal de ciência e tecnologia no Chile.
Entretanto, como ressalva Parra, ainda há importantes desafios a serem enfrentados. “Dada a forma como a divulgação científica foi desenvolvida no Chile, de comunidades de prática e com um programa público voltado principalmente para crianças em idade escolar, na maioria das atividades e produtos de disseminação prevalece uma lógica de déficit na forma como a ciência é apresentada à sociedade. Nesse sentido, ainda há uma tarefa pendente, isto é, avançar em direção a iniciativas enquadradas em formas mais complexas e participativas de disseminação da ciência”, afirma o pesquisador.
Parra observa a tendência à diversificação de formas de comunicar a ciência que extrapolam atividades e produtos tradicionais de divulgação, como palestras, conferências, workshops e livros. Como exemplos, menciona redes sociais e formatos mais complexos derivados da interface arte e ciência. Ele percebe o ganho do reconhecimento e valorização das atividades de divulgação no âmbito da comunidade científica e, simultaneamente, o aumento de responsabilidade do cientista em comunicar seus resultados de pesquisa para a sociedade. Segundo o pesquisador, o crescente interesse em divulgação científica no país tem aumentado o número de programas de especialização profissional. Embora no Chile não haja especialidade em jornalismo científico como carreira profissional, na última década proliferaram diferentes oficinas, cursos e, mais recentemente, o primeiro Diplomado em Comunicação Científica da Faculdade de Ciências da Universidade do Chile.
Colômbia: da popularização à apropriação da ciência e da tecnologia
“Na Colômbia houve um ponto de ruptura importante em 2005, com a formulação da Política Nacional de Apropiación Social de la Ciencia la Tecnología y la Innovación, com a qual se incluiu assuntos mais democráticos relacionados a ciência e tecnologia”, introduz Tania Arboleda Castrillón, pesquisadora colombiana independente, com estudos em doutorado em ciências sociais e humanas da Pontificia Universidad Javeriana. “A noção de ‘apropriação’ do conhecimento é um avanço no que antes se chamava ‘popularização’ da ciência”, explica Arboleda. Nesta sutil alteração residem nuances que transformam o conceito de divulgação científica, com diversificação e inclusão de novos atores.
Entre 2005 e 2009, houve um amadurecimento muito tímido das novas ideias advindas dessa política. Em 2010, foi elaborada a “Estratégia Nacional de Apropriação Social da Ciência, Tecnologia e Inovação”, para reforçar as ideias de democratização da ciência e da tecnologia no país.
De acordo com a estratégia nacional colombiana, entre 2005 e 2009 best crossbow, apenas 6% das ações desde a criação da política nacional poderiam ser consideradas como derivadas da nova abordagem democrática que se propunha. Ainda havia o predomínio de ações baseadas em modelos de comunicação de déficit, e destinadas à classe média, público urbano com acesso à educação formal. Essas atividades eram voltadas para a transmissão de conhecimento científico e tecnológico, para aumentar uma avaliação positiva em relação à ciência e tecnologia.
Entre aqueles que poderiam se destacar como exceção ao modelo deficitário está a criação do centro interativo de ciências Maloka voltado para a interação do público com processos científicos. A Colciências, órgão de federal de fomento à ciência, tecnologia e inovação, lançou editais específicos voltados para ampliação do público, como Ciência Cierta, que visaram promover o fortalecimento de experiências cidadãs, individuais e comunitárias, a partir da apropriação social da ciência, tecnologia e inovação envolvendo associações e microempresas.
México: esforços para conhecer o interlocutor
Para Ángel Figueroa, diretor de Meios do Diretório de Divulgação Científica da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), o principal desafio da área no México é promover estratégias de divulgação para os públicos que não estão interessados em ciência. Ele ressalta a necessidade de entender a realidade em que vive o público. “A comunicação da ciência tem sido, em boa parte, elitista, feita a partir das visões do cientista, e temos nos esquecido da visão do cidadão”, pontua. Para ele, é fundamental que se conheça melhor as audiências, seus hábitos, seus interesses reais, e os problemas que enfrentam diariamente. Apenas a partir dessas informações é que se pode traçar estratégias adequadas para uma comunicação que seja útil para os cidadãos.
Para isso, o diretório da UNAM coordenou um estudo chamado “Perfil do mexicano”, que reúne documentos com informações sobre as características da população do país. No estudo, são contemplados temas como hábitos de leitura, questões de saúde, interesse por museus e confiança na ciência. No começo do mês, Figueroa apresentou essa discussão na Public Communication of Science and Technology Conference, em Dunedim, na Nova Zelândia, da qual Massarani também participou.
Figueroa explica que os diferentes indicadores permitem uma visão sobretudo dos grandes públicos, e das classes mais baixas, que representam mais de 60% da população mexicana. Dessa forma, propõe um modelo de divulgação científica que não parte somente dos interesses dos cientistas, ou de comunicar a ciência apenas por dever, mas partir da realidade do interlocutor. “Se vamos comunicar ciência, necessitamos entender bem as duas partes, o que é comunicar, qual é a mensagem, qual é o receptor. Ou não vai servir de nada o que queremos comunicar. Se estamos comunicando a ciência somente para públicos muito delimitados, que querem a ciência, que já buscam informação científica, estamos fazendo um trabalho muito parcial” afirma Figueroa.
Ele pontua o que chama de um “temor” por parte de divulgadores de ciência e pesquisadores em comunicar para públicos que não estão interessados em ciência, que certamente são a maioria da população. Em sua opinião, considerando-se os graves problemas enfrentados pela população do México, como segurança, analfabetismo, evasão escolar e pobreza, a divulgação de ciência não pode se dar ao luxo de perder a oportunidade de levar uma mensagem diferente para a população. Com isso, defende que a divulgação deve ir além da promoção da cultura científica, ou do objetivo de gerar fãs de ciência. “No nosso país, por exemplo, a média de escolarização é de nove anos, e o que se passa depois? A maior parte da população faz suas vidas apenas com esses nove anos de escola. Então, acredito que a divulgação científica tem a oportunidade de levar outro tipo de informação, outro tipo de conhecimento que pode ser muito útil ao cidadão comum para que possa tomar melhores decisões e ter um pensamento mais crítico” completa.
Beatriz Maia é jornalista pela Unesp e aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp.
Paula Drummond de Castro é formada em ciências biológicas (Unicamp), com mestrado e doutorado em política científica e tecnológica (Unicamp). Pesquisadora associada do Geopi (Grupo de Estudos da Organização da Pesquisa e da Inovação). Atualmente é aluna do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).
Cristiane Bergamini é formada em comunicação social (PUCC), com mestrado e doutorado em planejamento de sistemas energéticos (Unicamp). Atualmente é aluna do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).