Por Rodrigo Bastos Cunha
No Brasil, o termo cultura científica contempla a ideia de que a produção e a difusão do conhecimento científico fazem parte de um processo cultural. Esse processo envolve diferentes níveis de complexidade, dependendo da audiência: a comunicação entre os pares nas revistas acadêmicas e nos congressos científicos; a formação de cientistas no ensino superior (graduação e pós-graduação); o ensino de ciência nas escolas; e, por fim, a divulgação da ciência para o público em geral.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), praticamente metade da população brasileira era analfabeta na década de 1950. O número de alfabetizados cresceu continuamente nas décadas seguintes e chegou, nos anos 1980, à proporção de aproximadamente ¾ da população alfabetizada ante ¼ analfabeta.
Essa nova realidade social levou o meio acadêmico brasileiro a refletir sobre novas demandas, principalmente no meio urbano, em relação à cultura escrita. Não bastava conhecer o be-a-bá, ser alfabetizado. Começa a ser usado no campo dos estudos da linguagem e do ensino de línguas o termo “letramento” para designar o efetivo uso da escrita em práticas sociais, desde as mais simples, como identificar uma linha de ônibus, fazer uma lista de compras ou escrever um bilhete, às de diferentes graus de complexidade, como ler reportagens jornalísticas, escrever relatórios ou atas de reuniões, ler um romance, produzir um artigo acadêmico, redigir uma tese e assim por diante.
Além de representar uma ruptura em relação à tradicional dicotomia entre alfabetizados e analfabetos e explicitar a ideia de um contínuo do mais simples ao mais complexo, o letramento está intimamente ligado ao meio social em que ele acontece, sendo a escola o principal, mas não o único, já que as práticas sociais de leitura e escrita também se dão no seio familiar, na esfera religiosa e no trabalho, entre outros.
A mais importante mudança, no entanto – pelo menos do meu ponto de vista –, e que mostrou resultados efetivos não apenas no processo de alfabetização de crianças, mas principalmente na educação de jovens e adultos, foi tentar trazer de maneira mais respeitosa para a cultura letrada aqueles que sempre estiveram fora dela. O que isso significa?
Embora a maioria das pessoas não se dê conta disso, a carga negativa do termo “analfabeto” é e sempre foi muito grande. Não designa apenas “aquele que não conhece as letras, não sabe o be-a-bá”. O analfabeto é tido como um ser cognitivamente inferior, que sabe menos sobre o mundo em que vive.
E daí surgem as derivações com o mesmo tipo de conotação: o analfabeto digital é quem não sabe nada de tecnologia, o analfabeto político não entende nada de política, o analfabeto científico não conhece nada de ciência. Essa é a visão autoritária e arrogante de quem detém determinado tipo de conhecimento, como se só o dele fosse válido. O respeito ao conhecimento do outro é uma forma muito mais convidativa de levá-lo a conhecer outra forma de ver o mundo, contudo, sem impor a ele essa forma como sendo a única possível e aceitável.
No campo da linguagem, esse respeito ao conhecimento do outro implica em reconhecer a diversidade linguística como natural e lidar com a escrita e a norma culta como uma das variedades da nossa língua. No ensino de língua materna, a disciplina que é ministrada em todo o ensino fundamental ainda se chama Língua Portuguesa. Entretanto, o esforço dos estudiosos da linguagem, principalmente os que lidaram, desde os anos 1980, com a formação de professores, resultou em mudanças importantes na forma de se ensinar aquela que não é exatamente “A Língua Portuguesa”, mas sua variedade de maior prestígio, a norma culta, a escrita e suas expressões literárias mais valorizadas pela elite intelectual do país.
Se um professor diz a uma criança falante nativa de português que ela não sabe português, gera um conflito de identidade nessa criança e uma resistência à disciplina e ao professor. Se ele respeita a variedade de fala de seu aluno e se propõe a mostrar outras variedades, sendo uma delas de maior prestígio, sua chance de cativar esse aluno aumenta bastante. Da mesma forma, impor a leitura de obras clássicas e tratar o gosto do aluno como lixo não tem como dar bom resultado. Uma coisa pode ser o ponto para se chegar à outra.
O que seria “letramento científico”?
Partindo dessa noção de letramento, o que seria então o termo que dela deriva, o tal letramento científico, já bastante usado no campo da educação científica, mas talvez ainda um tanto nebuloso para pesquisadores do campo da comunicação da ciência e praticamente desconhecido do público em geral? Assim como o letramento é o uso da escrita em práticas sociais, o letramento científico envolve não apenas o conhecimento sobre a ciência e a tecnologia, mas especialmente sua inter-relação com a sociedade.
Há pelo menos duas formas possíveis de abordar a ciência, tanto no ensino quanto na divulgação científica: uma com ênfase na natureza da ciência – que envolve conceitos científicos, teorias, fórmulas, métodos –; e outra com ênfase na sua relação com a sociedade. É importante frisar que não se trata de abordagens excludentes. São complementares, cada qual com sua ênfase. E quando o foco principal é falar da relação da ciência com a sociedade, isso envolve abordar os benefícios e os riscos das descobertas científicas, as questões éticas a elas relacionadas, os interesses envolvidos, a origem dos recursos que financiam as pesquisas e os possíveis impactos econômicos, ambientais e sociais.
Outro ponto em comum com o termo do qual deriva é que o letramento científico também pressupõe que a aquisição do conhecimento sobre ciência não pode ser tratada como uma questão de tudo ou nada, ou você sabe ou você não sabe (e é um “analfabeto científico”). Há um contínuo que abrange vários níveis de complexidade. No Brasil, foi feito em 2014 um levantamento em larga escala – o único até agora – do letramento científico da população adulta. O Instituto Abramundo se juntou ao Instituto Paulo Montenegro e à Ação Educativa, que já faziam medições bianuais do letramento do brasileiro, para criar esse novo indicador, o qual, assim como o que mede o letramento, possui quatro níveis, do mais simples ao mais complexo.
A terceira característica em comum do letramento científico com a noção de letramento originada nos estudos da linguagem e no ensino de línguas é o respeito ao conhecimento do outro. A ciência é um produto cultural da humanidade, é uma forma de ver o mundo. Não a única, mas a de maior prestígio. Isso pressupõe, entre outras coisas, a valorização do conhecimento tradicional. Envolve, ainda, uma postura menos arrogante e autoritária daquele que vai falar de ciência para um leigo, para uma pessoa não especializada, seja no campo da educação científica, seja no da divulgação científica. A chance de conseguir atingir um público não especializado se torna maior quanto a relação é mais dialógica, e não “de cima para baixo”.
Letramento científico e comunicação da ciência
Em 1975, Benjamin Shen, professor de astronomia e astrofísica da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, publicou um artigo na revista American Scientist, sobre a importância do letramento em ciência tanto em países em desenvolvimento quanto em países industrializados. Para ele, as escolas e a comunicação de massa poderiam ajudar na popularização da ciência. Quando se relaciona a mídia com o letramento, não se trata apenas de jornais e revistas impressos ou, nos dias de hoje, da internet, já que a televisão, o cinema e o rádio também fazem parte da cultura letrada, com seu conteúdo roteirizado.
Shen distingue três formas de letramento em ciência, com diferentes objetivos, público, conteúdo, formato e meio de transmissão. A primeira é do tipo prático e envolve questões como saúde, alimentação e melhoria dos padrões de vida. Dois exemplos que ele apresenta são as vantagens do aleitamento materno em relação à mamadeira e a comparação do valor nutricional de dois produtos com preços semelhantes. A segunda forma, a cívica, envolve o posicionamento do cidadão diante de políticas públicas relacionadas a ciência e tecnologia nas áreas de saúde, energia, agricultura, meio ambiente, comunicação e transportes, entre outras. A terceira, que Shen chama de cultural, envolve o interesse pela ciência como um produto cultural da humanidade, assim como a música ou a literatura.
O biólogo e professor de filosofia da Universidade da Califórnia, Francisco Ayala, que ocupou a presidência da Associação Americana para o Progresso da Ciência em 1995, defendeu o letramento científico em seu prefácio a um relatório da Unesco publicado em 1996. Segundo ele, não se espera que uma pessoa cientificamente letrada saiba a definição de momento angular ou que a expressão do DNA é mediada por uma molécula de RNA transmissor. O que se espera é que essa pessoa saiba se posicionar diante de uma política pública como a utilização do abastecimento de água como veículo para o flúor ou construção de uma usina de energia, ciente de que qualquer intervenção no meio ambiente não é só benéfica e nem só maléfica, e que as decisões envolvem colocar na balança as questões sociais, econômicas e ambientais. Ayala também defende a comunicação de massa como um poderoso agente para a educação em ciência, tanto dos tomadores de decisão quanto de seus eleitores.
Letramento, cultura, percepção e jornalismo
O termo scientific literacy, que traduzo aqui como letramento científico (ver artigo da edição da ComCiência sobre tradução), é bastante difundido nos Estados Unidos. Embora não seja sinônimo, tem pontos em comum com culture scientifique, usado na França, e public understanding of Science, usado no Reino Unido.
No Brasil, o termo cultura científica contempla a ideia de que a produção e a difusão do conhecimento científico fazem parte de um processo cultural. Esse processo envolve diferentes níveis de complexidade, dependendo da audiência: a comunicação entre os pares nas revistas acadêmicas e nos congressos científicos; a formação de cientistas no ensino superior (graduação e pós-graduação); o ensino de ciência nas escolas; e, por fim, a divulgação da ciência para o público em geral.
Assim como a noção de letramento originada nos estudos da linguagem e no ensino de língua e do conceito de letramento científico que dela deriva, o termo cultura científica também pressupõe a aquisição do conhecimento científico como um processo contínuo. E tanto no campo da educação quanto da comunicação, também pressupõe o respeito ao conhecimento de sua audiência, evidenciado nas críticas ao chamado modelo de déficit – segundo o qual haveria uma lacuna de conhecimento (do aluno ou do público leigo) a ser preenchida.
Há muito se discute no campo das ciências sociais a noção de cultura em sua pluralidade. Primeiro, para quebrar o eurocentrismo e estudar as culturas de povos dominados pelos europeus em toda a sua complexidade. Depois, para estudar diversos grupos sociais específicos, com características culturais próprias. Daí passou-se a falar em cultura escolar, cultura periférica, cultura letrada e, entre outras, cultura científica. Isso traz implícita a ideia de que a ciência é um produto cultural da humanidade, assim como a religião, a culinária e a música. Ela é produzida por humanos (e não por semi-deuses). Não é infalível e tampouco desinteressada.
Os interesses envolvidos na produção de ciência e tecnologia, sejam eles políticos ou econômicos, são apenas um dos aspectos da relação entre ciência, tecnologia e sociedade. Outros aspectos dessa relação envolvem os benefícios e os riscos dos avanços científicos e tecnológicos e seus impactos sociais e ambientais.
Assim como a noção de letramento científico dá ênfase ao conhecimento das relações da ciência com a sociedade – e não tanto à natureza da ciência –, os estudos de percepção pública da ciência enfatizam mais as questões sociais relacionadas à ciência do que o conhecimento de conceitos, teorias e fórmulas. As questões dos questionários de larga escala desses estudos giram em torno de interesse e informação sobre ciência e tecnologia, valores e atitudes do público em relação a ciência e tecnologia, e engajamento do público em questões de políticas públicas envolvendo ciência e tecnologia.
O que o jornalismo teria a ver com tudo isso? Embora esteja passando por transformações decorrentes dos avanços tecnológicos, da proliferação das mídias sociais e de novas formas de consumo de informação, o conteúdo jornalístico continua sendo peça central e extremamente valorizada nas sociedades democráticas. E é condição de existência dos veículos de comunicação atingir seu público. Quanto mais amplo esse público, melhor.
O jornalismo científico é a ferramenta mais eficaz para levar a um público mais amplo, de todas as idades, classes sociais ou níveis de escolaridade, as questões de ciência e tecnologia que afetam a vida das pessoas em geral, para engajar esse público nos debates sobre questões éticas na produção científica e tecnológica, para possibilitar o posicionamento desse público em relação a políticas públicas que envolvam ciência e tecnologia, seja na área de energia, de transportes, de comunicação ou saúde.
O próprio ensino em geral já vem incorporando o uso de textos jornalísticos há muitos anos, tanto como material complementar quanto em reproduções nos livros didáticos. Na educação científica, percebeu-se que o texto jornalístico sobre ciência também pode cumprir um papel importante em sala de aula.
Fora da escola, o jornalismo – que também é um produto cultural da humanidade, com seus interesses, falível – pode se voltar tanto para públicos segmentados quanto para audiências mais amplas. E pode contribuir para o maior embasamento dos tomadores de decisão em políticas públicas, assim como daqueles que os escolhem nos processos eleitorais.
Rodrigo Bastos Cunha é doutor em linguística aplicada (Unicamp) e pesquisador do Labjor (Unicamp).