Por Daniel A. Gross, ilustração de Ellen Weinstein, tradução de Amin Simaika.
Publicado originalmente na revista Nautilus
Em uma noite do fim do verão de 2015, no South Street Seaport, uma quadra na extremidade sul de Manhattan (Nova York), centenas de pessoas colocavam fones de ouvido para mergulhar em seus próprios mundos. Era uma noite clara, perfeita para uma caminhada, mas elas não estavam interessadas nas lojas ou restaurantes. Estavam muito ocupadas sintonizando e curtindo uma “discoteca silenciosa”.
A discoteca silenciosa é um concerto que os passantes mal podem escutar, mas que pode ser customizado pelos participantes ao toque de um botão. Nesse evento, um sinal sem fio permitia aos dançarinos escolherem sua lista favorita entre três playlists. Cada par de fones de ouvido cobria as orelhas e emitia um brilho robótico. “É a isso que ficamos reduzidos: dançarmos sozinhos”, diz um bailarino a um repórter do New York Times.
Para alguns observadores, a discoteca silenciosa representa uma forma peculiar de isolamento compartilhado — uma maneira de aumentar o volume da alienação moderna, parecer social mas permanecer solitário. “Os fones de ouvido estão penetrando em atividades musicais que, antigamente, eram sociais”, lamenta o escritor e músico de jazz Eric Felten no Wall Street Journal.
A discoteca silenciosa, acrescenta Felten, é apenas mais uma de muitas atividades que estão “atomizando” nossa sociedade. “É uma pena transformar casas de shows ou clubes de dança em mais uma multidão solitária”, escreve. “Esses locais deveriam ser supersociais, não antissociais”. Os fones de ouvido podem silenciar as ruas de nossa cidade, reza o argumento, mas também podem silenciar nossas conexões sociais. Parafraseando a letra da música Private Idaho do grupo musical B-52s, os inovadores filósofos pop de Athens, estado da Georgia, “estamos todos vivendo em nossos próprios Idahos particulares”.
Seja como for, esse tem sido um refrão nos círculos sociológicos desde que Thomas Edison inventou o fonógrafo no século XIX. Os críticos se queixavam que o tecido social estava sendo rasgado quando, ao invés de nos reunirmos em salões de dança para valsar ao som de Johann Strauss, escutávamos discos em nossas salas de estar.
Porém, recentes observações sobre a evolução e a neurologia da música sugerem que não estamos valsando sozinhos. As experiências musicais são inerentemente sociais, nos dizem os cientistas, mesmo quando acontecem em particular. Quando escutamos música sozinhos, sentimo-nos juntos.
Istvan Molnar-Szakacs, um pesquisador do Instituto Semel para Neurociência da Universidade da Califórnia, Los Angeles, vem explorando como a música “cria o sentido de pertencimento social”, como ele escreveu em um artigo de 2015 chamado “Por favor, não pare a música”.
“Quando você está em casa sozinho, a sensação é de vazio”, diz Molnar-Szakacs. “Aí você coloca uma música e, de repente, se sente melhor porque não está mais sozinho. Não é que literalmente você não esteja sozinho. Mas você sente que tem companhia.”.
À medida que a ciência está alterando a imagem da multidão solitária de ouvintes de iPod, ela nos oferece uma nova apreciação da tecnologia. Peter Alhadeff, um professor de negócios musicais do Berklee College of Music, sugere que nossas tecnologias recentes — do Facebook até Spotify e Fitbit — lançam luz sobre uma mudança em nossas vidas sociais. “Talvez nossa forma de sermos sociais e sermos privados esteja mudando”, diz ele. De certa maneira, “o mundo era mais privado antes. Há uma forma diferente de socializar hoje em dia”.
“A música é uma parte fundamental de nossa evolução; provavelmente nós cantávamos antes de falarmos em sentenças sintaticamente guiadas”, escrevem Jay Schulkin e Greta Raglan em um artigo de 2014 no periódico Frontiers in Neuroscience. Muito antes de haver clubes de dança ou salas de shows, havia a ligação musical formada por uma mãe cantando para seu filho. Havia a melodia que guiava uma tribo em adoração ou o rufar do tambor que conduzia os guerreiros à batalha.
A música faz parte da evolução humana, tanto quanto a linguagem, a fabricação de ferramentas e o desenvolvimento cognitivo, nos explicam Schulkin e Raglan. Ela é uma ponte. “A música é tipicamente algo que é compartilhado, algo social; podemos cantar no chuveiro ou em uma caminhada solitária, mas a música é, na maior parte do tempo, social, comunicativa, expressiva e voltada para as outras pessoas”, escrevem Schulkin e Raglan.
Molnar-Szakacs explica que o sistema de neurônios-espelho do cérebro fornece a base neural dos poderes sociais da música. As propriedades do sistema de neurônios-espelho humano se baseiam em pesquisas que indicam que as mesmas regiões em nosso cérebro se ativam quando executamos, vemos ou ouvimos uma ação. As regiões “espelho” de nosso cérebro se acendem seja quando estamos tocando guitarra ou ouvindo Pete Townshend tocá-la.
O sistema de neurônios-espelho, diz Molnar-Szakacs, “permite a alguém identificar-se com outra pessoa, fornecendo um mecanismo automático, pré-cognitivo, através do qual entendemos ações dessa pessoa mapeando-as em nossas próprias representações neurais dessas ações. Além disso, representa a intenção por trás dessas ações”.
No instante em que você ouve uma sequência de sons abstratos hierarquicamente organizados que chamamos de música, ativa-se uma profusão de associações em seu cérebro, que podem incluir lembranças, emoções e até programas motores para tocar música. Juntos, podem sugerir um sentido de agência humana. Essa sensação é o que distingue a música dos outros tipos de sons. “O cérebro interpreta a estrutura da música como intencionalidade que vem de um agente humano”, diz Molnar-Szakacs. “Isso, em combinação com todas as associações evocadas pela música, é o que torna social a experiência.”.
Nem todos os cientistas concordam que certos neurônios tenham propriedades que conotam intencionalidade ou agência, já que esses são processos subconscientes complexos, não facilmente reduzidos a neurônios específicos. Molnar-Szakacs, por sua vez, encara o sistema de neurônios-espelho “como um nó ou núcleo dentro de uma rede maior, integrando informações intermodais” no cérebro. Outro nó importante dentro dessa rede é o sistema límbico, a região envolvida com as emoções, recompensa, motivação e prazer.
Nosso sentido das outras pessoas, conforme representado pelo sistema de neurônios-espelho, carregado de emoção do sistema límbico, pode dar origem à empatia. Para Molnar-Szakacs, é a empatia emocional que pode explicar “por que a música pode ser experimentada como um fenômeno social até mesmo quando alguém está ouvindo música sozinho com fones de ouvido”.
À primeira vista, escutar música sozinho parece ser uma ruptura surpreendente com as raízes sociais da música. Porém, um giro pela história das tecnologias para se ouvir música desafia essa narrativa, revelando que as tecnologias para se escutar música privativamente podem ser vistas como formas de amplificar a natureza social da música.
Para começar, a música privativa começou muito antes da Sony ou da Apple. Na realidade, a música privativa remonta às origens da música gravada. “Os primeiros fonógrafos comerciais, depois chamados de jukeboxes, usavam fones de ouvido”, destaca Q. David Bowers, autor da Enciclopédia de instrumentos musicais automáticos. As gravações em cilindros de cera de Edison eram frequentemente instaladas como fileiras de máquinas separadas em salas de jogos. “Elas precisavam ser individuais, como uma cabine privativa.”.
“Os fones intra-auriculares são novidade, mas os fones de ouvido não são”, explica Jonathan Sterne, da Cátedra James McGill de Cultura e Tecnologia na Universidade McGill. “Quase tudo que foi dito sobre o iPod em 2001 e sobre o iPhone em 2007, você pode verificar que se dizia do Walkman na década de 1980.”.
À luz da história de ouvir música, é possível reavaliar a primeira impressão de que escutar música se tornou uma experiência “mais isolada ou até mais isoladora”, acredita o professor e compositor de música Jonathan Berger.
Schulkin, um professor de pesquisa em neurociência da Universidade de Georgetown, destaca que as atividades que nós agora encaramos como sociais, tais como a leitura, antigamente eram vistas como antissociais. “O seu vizinho poderia estar lendo Charles Dickens, e você lendo outra coisa”, diz ele. Talvez escutar música a sós não seja tão diferente de ler a sós. “Eu não vejo por que isso seja necessariamente mais isolador”, diz Schulkin.
Enquanto isso, diz Berger, execuções de música ocidental que nós normalmente vemos como sociais podem facilmente ser reinterpretadas como isoladoras — como concertos de música clássica. “Você tem que ficar quieto, sentado ereto, não pode se mexer, e tudo é um incômodo”, diz Berger, cujas próprias composições, com frequência, são executadas dessa maneira. “De um ponto de vista, isso é pelo menos tão isolador quanto as pessoas que ouvem música em suas próprias zonas, usando fones de ouvido.”.
Além disso, Berger acredita que os fones intra-auriculares podem ajudar a unir a sociedade. “Eu vejo rapazes andando com fones de ouvido e tento imaginar o que eles estão escutando. De uma certa maneira, é uma união social”, diz ele. “Eu percebo como eles estão marcando o ritmo com o pé, como estão cantarolando a música.”. A música que é experimentada individualmente ainda pode se comunicar com as outras pessoas.
Schulkin concorda. “Você coloca os fones de ouvido, está ouvindo música, mas a música ainda faz parte do mundo social mais amplo.”. As pessoas que usam fones podem bloquear o mundo que as cerca, mas Schulkin afirma que elas estão “plugadas” na experiência social de ouvir música.
Claramente, internet e streaming de músicas também podem ser sociais. As playlists do Spotify e Pandora frequentemente são consumidas através de celulares e fones de ouvido. Mas mesmo quando os algoritmos de gostos individuais nos ajudam a descobrir a música solitária, esse processo ainda é uma experiência social de compartilhamento.
Da mesma forma, serviços como Last.fm transformaram os gostos musicais individuais em uma fonte de novos vínculos sociais. Esses novos vínculos começam em nossa imaginação, no sentido que nos ajudam a perceber uma comunidade de ouvintes com as mesmas preferências. Mas também ajudam os amigos existentes a entender os hábitos e gostos uns dos outros.
Sterne retrata os ouvintes como especialistas em encontrar novos usos para tecnologias existentes. “As tecnologias chegam às mãos dos usuários e são transformadas”, diz ele. Foi isso que aconteceu quando os DJs começaram a girar os discos para trás. Os DJs e os fãs pegaram uma tecnologia para ouvir música potencialmente privativa, o disco fonográfico, e a transformaram em uma experiência grupal improvisada e única. Nada disso pretende dizer que escutar música não é individualista. Apenas a escuta individualista pode ser social e comunicativa — como a valsa, a sessão de improvisação ou o rufar do tambor que manda os soldados para a guerra. “Trata-se de incorporar a tecnologia em uma visão particular de estarmos juntos”, diz Sterne.
Os críticos que lamentam que a música ouvida a sós nos isola uns dos outros e rasga o tecido social não enxergam o panorama inteiro. A evolução costurou os poderes intersubjetivos da música em nossos cérebros. A tecnologia não diminuiu os vínculos sociais da música. Pelo contrário, criamos e adaptamos a tecnologia para reforçá-los.
“Se você falar sobre ouvir música em mídia social, ou em raves silenciosas em que as pessoas escutam a mesma música, mas com fones de ouvido — esses tipos de atividades são totalmente consistentes com a história da música como prática coletiva”, diz Sterne. “Mas está sendo corrigida e re-executada através das tecnologias do momento.”.
Há alguns anos, LJ Berube viajou para o Festival de Música Bonnaroo em uma fazenda no Tennessee. Ao longo de quatro dias, dezenas de bandas subiram ao palco, bombardeando música para dezenas de milhares de fãs. Um dia, Berube estava passeando pela área do festival quando se deparou com uma longa fila. Levava a uma tenda cheia de gente, mas, estranhamente, ele não conseguia ouvir música nenhuma dentro. “Eu imaginei que devia ser alguma coisa divertida”, diz Berube. A espera na fila foi de quase uma hora.
A fila se estendia. Ocasionalmente ouviam-se gritos entusiasmados na tenda. “De repente, eu percebi o que estava acontecendo”, recorda-se Berube. Ele olhou para dentro da tenda e viu centenas de pessoas dançando — mas todas elas estavam com fones de ouvido.
Era uma visão bizarra: centenas de pessoas se movimentando ao som de uma música que só eles conseguiam ouvir. Algumas das pessoas dançavam de forma sincronizada, outras não. “Eu fiquei em dúvida, não sabia se aquilo era para mim”, diz Berube. “Mas àquela altura eu já tinha esperado 45 minutos.”. Ele pôs os fones de ouvido e entrou na pista. “No princípio foi estranho”, diz ele. “Mas essa sensação sumiu rápido.”. Ele dançou durante uma hora.
“Agora eu entendi perfeitamente”, conta Berube. A discoteca silenciosa transforma em pública uma experiência particular. “Você fica em seu próprio mundo e, ao mesmo tempo, experimenta junto com um grupo o que você está fazendo. Você fica afinado consigo mesmo e com todas as outras pessoas.”.
Para Berube, aquela primeira discoteca silenciosa foi uma conversão. Hoje ele trabalha como “gerente de entusiasmo de clientes” para a Party Headphones, uma empresa de discoteca silenciosa em New Hampshire. Ele calcula que dezenas de milhares de pessoas frequentem discotecas silenciosas nos fins de semana nos Estados Unidos, com ainda mais gente indo a eventos na Europa. A cada semana a empresa dele envia caixas de fones de ouvido para lugares em todo o país para que adolescentes e jovens adultos possam curtir sua música.
“Na realidade, eu trouxe para casa alguns fones de ouvido no dia de Ação de Graças”, diz Berube. “Meus avós usaram os fones e ficaram dançando ao som de Frank Sinatra.”
Daniel A. Gross é escritor e produtor de rádio em Boston.