Por Lenita W. M. Nogueira
Uma das vertentes da musicologia, ciência que estuda os diversos aspectos envolvidos no fazer musical, é a exploração da vida musical em determinada região. No caso específico deste artigo, trataremos de Manuel José Gomes (Santana do Parnaíba, 1792-Campinas, 1868), o Maneco Músico, que, apesar de viver grande parte de sua vida em Campinas, SP, teve uma atividade representativa da prática musical do Brasil no século XIX.
Durante o século XVIII, a cidade em que nasceu, então chamada Vila da Parnaíba, era um dos povoados mais importantes da região, disputando a primazia com Mogi-das-Cruzes, numa época em que São Paulo ainda não se destacara. Na época em que Manuel Gomes nasceu, a localidade já havia produzido uma vasta linhagem musical e havia grande número de músicos em atividade.
Em seu registro de batismo, Manuel aparece como pardo, filho de Antonia Maria e não consta o nome do pai. Sua mãe era agregada em um engenho na vila da Parnaíba. Em 1799, Manuel passou a aprender música com o padre José Pedroso de Morais Lara, mestre-de-capela (pessoa responsável pela música na igreja) daquela vila e proprietário de vastas extensões de terra. Ao lado de outros meninos de origem humilde, Manuel aprendeu música, primeiras letras e gramática latina até a morte do padre em 1808. Um de seus discípulos, Floriano da Anunciação, foi nomeado para o cargo de mestre-de-capela e Manuel assume a posição de assistente. Ambos, que haviam sido batizados sem pai e sem sobrenome, tratam de buscar uma identificação, afinal estavam assumindo uma posição importante: o primeiro passou a se chamar Floriano da Anunciação Freire e o segundo Manuel José Gomes, sobrenome provavelmente emprestado de seu padrinho de batismo.
Estabelecido como mestre-de-capela auxiliar em Parnaíba, há registros de sua presença ali até 1812. Porém, em 1809, ele se casou com uma jovem da vila de São Carlos (atual Campinas), chamada Maria Inocência do Céu. A união durou apenas dois meses e gerou um processo de divórcio que se encontra no arquivo da cúria metropolitana de São Paulo. Após 1812 o nome de Manuel desaparece dos registros de Parnaíba e, embora até 1815 não tenha sido encontrado nenhum rastro de sua pessoa, acredita-se que ele tenha passado esse tempo em São Paulo, estudando com o mestre-de-capela da Sé, André da Silva Gomes (Lisboa, 1752-São Paulo, 1844), músico português que havia chegado à cidade em 1774 na comitiva do terceiro bispo de São Paulo, frei Manuel da Ressurreição.
Em 1815 Manuel se estabeleceu na vila de São Carlos, atual Campinas, onde recebe a alcunha de Maneco Músico. Em 1820 é nomeado oficialmente como mestre-de-capela da vila e vai adquirindo grande respeito da população. Além da sua atividade musical, era uma das poucas pessoas que sabiam ler e escrever. Por isso era chamado para assinar a rogo de pessoas analfabetas, as quais representava em transações comerciais, imobiliárias e matrimoniais.
Um documento preservado no arquivo da Câmara Municipal de Campinas demonstra que Manuel atingiu uma posição social privilegiada para um músico da época. Trata-se de um juramento de fidelidade ao novo imperador, produzido durante os festejos pela independência do Brasil em 1822. Naquela ocasião houve uma sessão solene na Câmara de Vereadores à qual compareceu toda a elite local. Ao final, noventa e duas pessoas “gradas” assinaram um juramento. Entre elas havia fazendeiros, políticos, padres, militares de alta patente e outras personalidades, sendo que a penúltima assinatura, escrita com uma letra perfeita, que contrasta com os garranchos dos demais, era a de Manuel José Gomes.
A atividade política também rendia ao compositor encomendas regulares da Câmara de Vereadores, para a qual compunha e regia nas cerimônias mais diversas. O primeiro recibo assinado por Manuel nos livros da Câmara de Vereadores da vila de São Carlos é de 1819, quando recebeu 16$240 réis por uma “missa cantada e sermão” e The [sic] Deum Laudamus, em homenagem à coroação de Dom João VI.
Por volta de 1820, Manuel passa a viver com Anna Thereza de Jesus, com a qual teve quatro filhos, sendo que as duas primeiras filhas, Marciana e Maria do Carmo, foram, entre seus nove filhos que sobreviveram até a idade adulta, as únicas que não se dedicaram profissionalmente à música.
No censo de 1825, aparece vivendo de sua música, cujo rendimento anual era de 100$000 réis. O documento indica “mulher ausente”, referindo-se provavelmente à primeira esposa. Nesta época já vivia há cerca de seis anos com Anna Thereza. Além das duas filhas já citadas, o casal teria ainda mais dois filhos: em 1827 nasceu Manuel José Gomes Júnior e em 1830 Joaquim José Gomes de Santana, que mais tarde se tornaria padre.
Anna Thereza faleceu em 1831 e, embora tenha deixado poucos bens, foi gerado um inventário que se encontra no acervo do Centro de Memória da Unicamp, documento que revela muitos detalhes sobre a vida de Manuel. A morte da companheira, que “apesar de ser casada não contraiu matrimônio com seu marido” (ligação anterior à sua vinda para a vila) gerou a abertura de um processo de legitimação dos filhos, que não haviam sido registrados com o nome do pai. Ao final, o músico passa a ser legalmente o pai das quatro crianças.
Por volta de 1833 Manuel já tinha outra companheira, Fabiana Maria Cardoso, com a qual iria se casar em 1840. O casal teve dois filhos: em 1834 nascia José Pedro de Sant’Anna Gomes e dois anos depois, Antonio Carlos Gomes.
Entre os ofícios paralelos à música, sabe-se que Manuel foi proprietário de um armazém, comércio que manteve pelo menos até 1848. Também vendia e consertava instrumentos musicais, além de exercer o cargo de escrivão da Junta de Paz e, por volta de 1836, o de juiz de Paz. Sua atividade musical era intensa, o que lhe auferia bons rendimentos, e, somado a esses trabalhos paralelos, Manuel começou a se estabilizar financeiramente e adquiriu alguns bens. Em 1831 já era proprietário de uma casa e pouco tempo depois adquiriu mais uma e um terreno. Apesar de ser proprietário desses imóveis, quando Carlos Gomes nasceu, em 1836, a família morava em uma casa alugada na rua da Matriz Nova, atual Regente Feijó, pela qual pagava um aluguel de 1$600 réis.
No fundo dessa casa havia um matagal, o chamado Jurumbeval. Ali, no dia 25 de julho de 1844 foi encontrada morta “com um tiro e punhaladas” a esposa de Manuel e mãe de Carlos Gomes, Fabiana Maria, um crime nunca esclarecido. Foram aventadas diversas possibilidades para o ocorrido, mas não foi localizado qualquer processo, nem se tem certeza se foi gerado algum. Manuel defendeu-se da provável acusação de ser autor da morte da esposa dizendo que, no momento do crime, estava jogando cartas com os amigos, como fazia todas as noites. A única certeza é que entre 1843 e 1846 Manuel não realizou nenhum trabalho para a Câmara de Vereadores, fato incomum ao longo de sua vida profissional.
Em 1846 acontece uma visita do imperador Dom Pedro II a Campinas e Manuel reaparece nos livros da Câmara como responsável pela preparação da música. As festas foram tão grandiosas que mereceram até a edição de um livro, escrito por Benedito Octavio, que relata todos os eventos, desde os preparativos para a chegada e recepção do cortejo imperial até as consequências funestas para as finanças municipais. Certa tradição afirma que o imperador teria ficado surpreso ao ver os dois filhos de Manuel, ainda muito jovens, participando da banda marcial, criada especialmente para a ocasião: José Pedro (Juca) tinha 12 anos e tocava clarineta e Antonio Carlos (Tonico), com dez anos, tocava “ferrinhos” (triângulo). Essa banda, por volta de 1847, passaria a se chamar Orquestra e Banda Campineira e teve atuação duradoura.
Manuel José Gomes voltou a receber encomendas regulares da Câmara a partir de 1847, 124$000 réis por uma missa do Espírito Santo e Te Deum, além de 68$000 réis por duas missas para eleição de deputados. Continuou a trabalhar nesse ritmo até 1867, quando foi substituído por seu filho Sant’ Anna Gomes.
Em 1849 casou-se com Francisca Leite, com a qual teve mais três filhos, todos músicos: Joaquina Amália, Thomas de Aquino e Anna Luiza. Por essa época a família vivia com certo conforto, sendo que as duas filhas mais velhas, Marciana Maria e Maria do Carmo, já eram casadas. Esta última morava em Limeira, onde nasceu a primeira neta de Manuel, Bernardina.
Quanto a Manuel José Gomes Júnior nada se sabe, exceto que tocou na banda do pai e depois desapareceu dos registros de população. O que não ocorre no caso de Joaquim José Gomes da Santana que, em 1852 submeteu-se a um processo de genere et moribus (modos e costumes) a fim de se habilitar à vida eclesiástica, tornando-se padre no ano seguinte. Para ser admitido no seminário era obrigatória uma fiança de 60$000 réis anuais, durante 10 anos, despesa que foi assumida pelo pai. Este processo, que se encontra na cúria metropolitana de São Paulo, traz muitas informações sobre a real situação financeira do músico. Testemunhas afirmaram que possuía “oito moradas de cazas proprias”, além de escravos e que “hé homem abonado”. Perante tais declarações, Manuel é aceito como fiador de seu filho, sendo que em caso de falecimento, a família ficava obrigada a manter a pensão durante os dez anos, mesmo à custa de seus bens.
Uma atividade paralela, nem por isso menos importante, era a chamada “Banda do Maneco”, que sempre viajava pelo interior de São Paulo, tendo chegado até a então longínqua Araraquara em lombo de burro. Nessas ocasiões Manuel tinha a oportunidade de encontrar com outros músicos e mestres-de-capela, mantendo assim saudável intercâmbio de material musical, atividade fundamental para a circulação da música produzida na época.
Desde menino, Antonio Carlos Gomes auxiliava o pai nos serviços musicais da igreja, onde atuava como cantor e ajudava na preparação do coro e da orquestra. Entretanto, logo começou a se interessar mais pela música profana, principalmente após a chegada ao clã dos Gomes do vendedor de joias e músico amador Henrique Luiz Levy, que manteve estreito relacionamento com Carlos, que lhe dedicou sua Missa de São Sebastião. Entusiasmado com o talento de Antonio Carlos, Levy solicitou a Manuel licença para levá-lo ao Rio de Janeiro para assistir uma ópera. Manuel não permitiu, alegando que o filho era imprescindível para o trabalho na igreja, mas deixou que fossem, em companhia de Sant’Anna Gomes, até São Paulo. Ali os irmãos entraram em contato com estudantes de direito do Largo São Francisco e é dessa época a famosa modinha Quem sabe!. Após um período naquela cidade, Carlos Gomes foge para o Rio de Janeiro, à revelia do pai. Depois de enviar uma carta a Maneco contando sobre suas intenções de estudar música naquela cidade, e após uma forte reprimenda, foi perdoado e passou a receber uma pensão paterna de 30$000 réis.
Em 1859 consegue ingressar no Imperial Conservatório de Música e, em setembro de 1860, Manuel e Sant’Anna seguem para o Rio de Janeiro para assistir à estreia da primeira ópera de Carlos Gomes, A noite do castelo. Retornam em 1863 para assistir Joanna de Flandres. Na sequência Carlos Gomes recebe uma bolsa de estudos e parte para a Itália. Manuel contava nessa época 71 anos e nunca mais veria o filho.
Apesar da idade avançada do patriarca, a família Gomes voltaria a crescer. De sua união com Francisca Leite já haviam nascido Joaquina Amália e Thomas de Aquino Gomes, este em 1857. A última filha do casal, Anna Luiza Gomes, nasceria em 17 de novembro de 1864. No ano seguinte, a “Banda do Maneco” ainda participava do carnaval, seguindo o cortejo pelas ruas da cidade. Embora ainda realizasse mais alguns trabalhos para a Câmara, começa a ser substituído por Sant’Anna Gomes, a essa altura um profissional estabelecido.
Manuel José Gomes faleceu no dia 11 de fevereiro de 1868 e, entre o grande número de pessoas que compareceu ao seu enterro não estava Carlos Gomes que, radicado na Itália, dois anos depois conseguiria apresentar a ópera Il Guarany, no Teatro alla Scala de Milão.
Toda a produção de Maneco Músico, cerca de 700 manuscritos musicais, está preservada no Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas. Este conjunto apresenta um panorama da música que se fazia no Brasil em meados do século XIX. Ali, além das composições de Maneco, podemos encontrar peças únicas de compositores reconhecidos, que só chegaram até nossos dias graças a seu trabalho, uma contribuição significativa para a preservação da memória musical brasileira.
Lenita Waldige Mendes Nogueira é doutora em ciências sociais pela Unicamp (1998) e docente na mesma universidade, atuando na área de artes, com ênfase em música. É autora, entre outros, de A lanterna mágica e o burrico de pau: Memórias e histórias de Carlos Gomes (Arte Escrita, 2011).