Por Camila Fresca
O jornalismo passa, há alguns anos, por uma mudança drástica em sua forma de produção, graças à revolução digital promovida pela internet. Ainda que estejamos no meio do processo e sem saber exatamente para onde ele irá nos levar, sentimos diariamente seu impacto em nosso trabalho.
As mídias tradicionais – jornais, telejornais e revistas – encolhem de tamanho com impressionante velocidade e, junto com elas, o espaço dedicado à cultura fica cada vez menor. E o que falar, então, de um nicho cultural que, a despeito do prestígio, sempre foi minoritário, como a música de concerto – também chamada música clássica ou erudita? Como atuar (ou, no limite, sobreviver) no jornalismo cultural trabalhando exclusivamente com música clássica? Esta tem sido minha experiência (um privilégio e um desafio) nos últimos 13 anos.
Acho que aqui vale um parênteses: por que escolhi a música clássica como área de atuação profissional? Na verdade, minha relação com a música é muito anterior ao jornalismo e remete à infância, primeiro com as aulas de piano e as árias italianas dos discos paternos. Depois, já na adolescência, com aulas de guitarra, canto e, finalmente, violino, além de uma formação teórica em conservatório e uma permanente curiosidade por este repertório. Pouco antes do vestibular, a opção da medicina foi eliminada, entre outras coisas, pela percepção de que seria necessário abrir mão de grande parte do tempo que eu dedicava à música. Por outro lado, cursar música também não parecia uma opção satisfatória, uma vez que não me sentia suficientemente preparada como instrumentista. O amor pela leitura, o gosto pela escrita e a certeza de que haveria tempo para continuar me dedicando aos estudos musicais me levou para o jornalismo e, no ano seguinte, também para a faculdade de história. Com o passar do tempo, conjugar profissionalmente essas três áreas acabou sendo um caminho natural.
Na cidade de São Paulo, onde se encontram sem dúvida as maiores opções de trabalho para um jornalista dedicado à área musical no país, pode-se contar nos dedos de uma mão os espaços disponíveis: além dos dois grandes jornais (Folha e O Estado de S. Paulo), que possuem sessões restritas mas regulares para a música clássica, temos a pioneira Revista Concerto (onde trabalho), empreitada pessoal do editor Nelson Kunze e que há 22 anos dedica-se exclusivamente a cobrir o gênero. Há ainda os canais públicos da Rádio e TV Cultura: a TV possui ao menos duas faixas permanentes para os clássicos, no final de semana, e a Cultura FM é uma das poucas rádios do Brasil exclusivamente dedicada ao gênero. Há ainda as revistas dedicadas à arte e cultura (Bravo! e Cult, entre outras), que com alguma frequência tratam da música de concerto, e publicações institucionais, como revistas de banco ou de companhias de aviação, que vez ou outra abordam o assunto. Fora isso existe, claro, o vasto mundo da internet, com blogs e portais – alguns dos quais totalmente dedicados ao gênero clássico e com uma boa oferta de conteúdo. Mas o problema, na maioria dos casos, é que dificilmente um jornalista profissional conseguirá sobreviver escrevendo sobre música clássica apenas para os veículos digitais. Se pensarmos exclusivamente em jornalistas (excluindo radialistas, produtores e outras profissões afins), chegaremos em não mais do que meia dúzia de nomes de profissionais que trabalham exclusivamente com o gênero clássico na cidade de São Paulo, e todos eles atuam para mais de um veículo e/ou desenvolvem outras atividades relacionadas à música e à cultura fora da imprensa.
Uma vez que se está dentro desse restrito meio, qual deve ser a forma de atuação de um jornalista de música clássica no Brasil? O que abordar? Cobrir o mainstream, ou seja, os grandes espetáculos que acontecem na Sala São Paulo ou no Theatro Municipal, é inevitável. Mas como dar conta, em tão pouco espaço, de iniciativas menores, novas ou simplesmente com uma proposta alternativa? Esse é um equilíbrio difícil, que certamente não se restringe apenas à área clássica mas a toda área cultural, e que muitas vezes não depende apenas da vontade do jornalista. De qualquer forma, falar sobre boas iniciativas de pequeno porte pode ter um impacto enorme num trabalho nascente e que necessita de visibilidade. Como jornalista, sempre que possível, procuro dar minha contribuição nesse sentido.
E na hora de fazer uma crítica, como se comportar? O espaço dedicado ao jornalismo musical clássico não é pequeno à toa: também as iniciativas musicais em si são poucas, e mesmo as grandes instituições podem estar assentadas em bases frágeis – basta lembrar que a atividade clássica no Brasil é praticamente toda mantida (direta ou indiretamente) por verbas públicas e, portanto, uma mudança de humor de governante ou uma alegada crise pode gerar grandes danos. Diante desse contexto, vale a pena ser o crítico demolidor, apegado apenas ao objeto em si – em outras palavras, fazer uma crítica que se baseie apenas na qualidade intrínseca do espetáculo musical ou do disco que acaba de ser lançado, sem levar em conta elementos exógenos? Na minha opinião, não. E, ainda que a crítica leve em conta apenas o aspecto estético, há alguns parâmetros que nos ajudam a não cometer injustiças.
Digamos que o novo álbum de um artista, ou sua última apresentação, foram definitivamente decepcionantes. Pode-se simplesmente fazer uma crítica negativa, tratando dos elementos que não funcionaram. Pode-se também não fazer a crítica, e definitivamente o silêncio é também uma forma de comunicar. Quando se trata de um artista iniciante, não há dúvidas de que o melhor é não falar nada e deixar que ele siga seu caminho. Agora, se a crítica é dirigida a um artista consolidado ou a uma grande instituição, sempre é válido ter como base de comparação a própria trajetória do sujeito. No caso das instituições, aliás, exatamente por serem mantidas por verbas públicas, devem satisfações à sociedade e têm obrigação de realizar o melhor dentro do contexto que se apresenta. De qualquer forma, acredito que a crítica, mesmo negativa, deve procurar ser construtiva. O jornalista, ao fazer uma boa crítica (seja ela positiva ou negativa), é alguém que está contribuindo para o crescimento do meio sobre o qual se debruça. O eminente pianista, musicólogo e também crítico musical Charles Rosen (1927-2012 Rolex Submariner) disse uma vez que um crítico honesto de boa formação faz um trabalho mais útil do que aquele de ouvido apuradíssimo, que consegue perceber qualquer desafinação ou erro. O primeiro, ao fazer a ponte entre o público e o artista – explicando, contextualizando, despertando interesse e propondo discussões –, deixa uma contribuição mais significativa do que aquele que apenas aponta as falhas.
Volto ao assunto inicial deste breve artigo para concluí-lo: quais são as perspectivas que se apresentam para o jornalismo musical no momento em que vivemos? Como sobreviver à crise política, econômica e moral que assola o país, conjugada à própria crise do jornalismo? Não sei se é possível, hoje, vislumbrar como estará nossa profissão daqui a 20 ou 30 anos. Mas tendo a um olhar otimista, de um lado motivado por um crescimento consistente da atividade da música de concerto no Brasil nas últimas duas décadas. E, de outro, estou certa de que o jornalismo saberá se reinventar e encontrar uma forma de se viabilizar economicamente nos meios digitais. Com isso, será possível ampliar a diversidade e as oportunidades para profissionais, garantindo a existência de nichos especializados.
Camila Fresca é doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Bacharel em História (USP) e Jornalismo (PUC-SP), atua como jornalista e pesquisadora especializada em música clássica. É colaboradora da revista e site Concerto (www.concerto.com.br). Entre 2012 e 2016 foi coordenadora musical da Rádio Cultura FM e roteirista do programa Clássicos, da TV Cultura. É autora dos livros Uma extraordinária revelação de arte: Flausino Vale e o violino brasileiro (Annablume, 2010) e Música nas montanhas: 40 anos do Festival de Inverno de Campos do Jordão (Santa Marcelina Cultura, 2009). Idealizou e dirigiu o CD Flausino Vale e o violino brasileiro (Petrobras/Selo Clássicos), de Cláudio Cruz, vencedor do “Prêmio Bravo! Prime 2011” na categoria música erudita.