Beatriz Maia entrevista José Roberto Zan
José Roberto Zan, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp, explora os caminhos e as conjunturas que favoreceram a formação da música popular brasileira. Fala também sobre a hierarquização que separa as composições elitizadas das manifestações de periferias, como a “higienização do samba”, e comenta as contradições da produção musical.
O que é a música popular?
A noção de música popular se diferencia da música de concerto, clássica, artística, ou erudita – são várias denominações e todas elas questionáveis. São denominações voltadas para o reconhecimento de um determinado campo, de um nível cultural onde essa música se situa. E, em contraposição a isso, há outro segmento cultural na sociedade moderna que passa a ser reconhecido como “cultura popular”. As práticas musicais inseridas nesse contexto recebem a denominação “música popular”.
As noções sobre o que é popular, ou cultura popular, foram se formando historicamente, e a valorização do popular começa a ocorrer fundamentalmente no contexto do romantismo, no final do século XIX, e ganha força no século XX. No século XIX, alguns países, especialmente a Alemanha, passaram pela unificação tardia. No contexto de expansão da sociedade burguesa, da economia capitalista, isso gerou uma espécie de necessidade histórica de construção e consolidação do Estado Nacional. E essa construção passava, para alguns teóricos sociais e políticos, pela pesquisa sobre a esfera simbólica da vida social.
Ao mesmo tempo, juntamente com o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade burguesa, ocorre uma rápida expansão urbana na Europa e na América do Norte especialmente a partir da segunda metade do século XIX e a formação de grandes metrópoles como Paris, Viena, Londres, Roma e Nova Iorque. Nessas grandes cidades, constitui-se um público consumidor de um tipo de cultura que se diferenciava bastante da cultura cortesã ou da alta cultura. Estava em formação a chamada sociedade de massas e expandia-se a produção de uma cultura voltada para o entretenimento.
A demanda crescente por bens culturais foi acompanhada pela emergência de uma estrutura produtiva voltada para a música de consumo, predominantemente de caráter dançante. Houve uma crescente profissionalização das atividades desse ramo de negócios envolvendo a produção industrial, a distribuição e o comércio de partituras e de pianos. Ao mesmo tempo, multiplicavam-se espaços de diversão onde a música estava presente. E aí circulavam gêneros como a polca, a valsa e a mazurca. Essa música de audição fácil passa a ser definida como música popular em contraposição à música de concerto ou “música séria”. Ao longo do século XX ela vai se integrar à indústria fonográfica, ao rádio, à televisão e, mais recentemente, à internet.
Em quais aspectos a música de concerto e essa música popular do século XIX diferem?
Embora as fronteiras entre esses níveis não sejam claras ou rígidas, podem-se reconhecer diferenças entre elas. Se você olhar para a estrutura de uma sinfonia, ela tem partes que são encadeadas, que são imbricadas, formando um todo orgânico. Compõem uma narrativa que pode levar o ouvinte atento a uma experiência estética sublime. Por outro lado, a música popular não tem essa estrutura, ela é mais breve, tem um ritmo mais acentuado, com melodias e cadências harmônicas de fácil audição. Ela é feita em geral para uma audição desatenta e dançante.
E no Brasil, como se deu a formação da música popular?
No Brasil, na segunda metade do século XIX, também ocorre a formação de um mercado de partituras, ainda que não com a mesma força da Europa e dos Estados Unidos. Surgem aqui as editoras que produzem partituras de polcas, mazurcas e valsas dançantes, que vão circular nas grandes cidades, especialmente no Rio de Janeiro. A polca, por exemplo, chega ao Brasil pouco depois do grande sucesso na Europa, e cresce nessa época um público consumidor de música ligeira tocada ao piano nos salões de baile. Surgem compositores dedicados a esse tipo de música, e aos poucos esses gêneros se mesclaram com ritmos brasileiros, como batuques e lundus, dando origem ao maxixe e ao choro. Em espaços de entretenimento como o café-concerto, café-cantante e teatro de revista, que se multiplicavam no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras, esse tipo de música era praticado com frequência ao lado de gêneros tradicionais como o lundu e a modinha.
Com a entrada da indústria fonográfica, no início do século XX, a produção e o consumo dessa música popular ganharam escala muito maior. Daí novos gêneros populares surgiram, como o samba, o choro, a valsa brasileira e as marchinhas.
Como chegamos à chamada música popular brasileira?
Essa história segue com a popularização do rádio no Brasil. Em 1932, o então presidente Getúlio Vargas opta por instaurar um modelo comercial para a radiofonia brasileira. Dessa forma, as emissoras passam a buscar patrocínio junto às empresas para formarem suas receitas. Rapidamente, elas se transformaram em grandes empresas com capacidade de aquisição de equipamentos de última geração para a época, e o rádio se torna um meio de comunicação de massa de grande alcance no Brasil.
A música popular era a que mais compunha a programação das rádios. As emissoras até mantinham horários para as músicas de concerto, para notícias e humor, mas a música popular era dominante. O Ademar Casé, um dos pioneiros do rádio que tinha um programa nessa época, dizia que durante a programação erudita o telefone não tocava, e durante a programação popular o telefone não parava de tocar, com os ouvintes pedindo músicas. As rádios ampliaram programas com música popular porque davam mais audiência e, consequentemente, atraíam mais patrocínio. Assim, as emissoras foram acumulando capital e se transformando em uma verdadeira indústria cultural.
Nesse contexto, a música popular brasileira ganhava forma. Se ela tinha ainda uma herança folclórica, mesclada com a música de salão, as formas musicais foram se definindo mais claramente a partir dessa articulação entre a indústria do disco, as gravadoras e as emissoras de rádio.
Pixinguinha, por exemplo, vem de uma comunidade de negros, ex-escravos da região portuária do Rio de Janeiro, mas estudou música e se transformou em um grande compositor popular. Além de instrumentista, foi um excelente compositor e arranjador. Por outro lado, nesse período há muitos músicos eruditos que não conseguiam emprego, dada a ausência de mercado para absorvê-los, e migraram para o rádio. Foi o caso do Radamés Gnattali, que estudou para ser um músico erudito e foi contratado pela Rádio Nacional, onde virou o principal arranjador. Com todo o conhecimento musical que tinha, ele pegava um samba e dava um tratamento orquestral inovador. A forma musical vai se construindo a partir desse cruzamento entre músicos com formação e aqueles mais intuitivos do morro.
Daí vai se formando, ao longo do século, o que podemos chamar de uma “hierarquia de estilos e gostos na música popular”. Alguma produção passa a ser reconhecida como um segmento musical popular de bom gosto, enquanto outros vão ser considerados suspeitos, porque falam da malandragem, da boemia, o que para a classe média branca brasileira era problemático. E entrava ainda no mercado a música caipira, que também não era considerada naquele momento um segmento legítimo.
Então, passamos a ter uma estratificação do mercado fonográfico. Um repertório com características de Aquarela do Brasil [clique aqui para ouvir], composição de Ary Barroso, era considerado de muito bom gosto. Era samba, mas glamourizado, com tratamento orquestral. A letra fala de um Brasil paradisíaco, sem conflitos. A mulata converte-se em “morena sestrosa”, o negro malandro em “mulato inzoneiro”.
É o que você chama nos seus trabalhos de “higienização do samba”?
Sim. O samba vem das comunidades negras, pobres, da capoeira, que eram vistas pela classe média branca como redutos de marginais, alcoólatras e prostitutas. Esse era o modo pelo qual as classes médias e as elites viam o mundo do samba. O Ary Barroso era branco, de família tradicional mineira, culto. Apesar de ser boêmio e frequentar os cabarés, tinha uma origem que o diferenciava da malandragem. A música que ele compõe é compatível com a expectativa e o gosto da classe média branca, e das autoridades políticas também.
Já o Wilson Batista era um compositor negro, pobre, descendente de escravos, e que falava da malandragem provavelmente a partir da sua vivência. Ele tem um samba carnavalesco que fez muito sucesso na época, que fala “não trabalho e tenho orgulho de ser vadio” [clique aqui para ouvir], e isso para o governo Getúlio era um problema. O ideário que Getúlio buscava desenvolver era sustentado, entre outras coisas, pela valorização do trabalho. A higienização do samba ocorre nesse contexto histórico de tirar o samba dos seus redutos de cultura negra e transformá-lo em uma expressão da brasilidade. E esse samba não é o do malandro que passa com a navalha no bolso, como o do Wilson Batista. É o da “Aquarela do Brasil”, que traduzia uma visão edênica do país, com arranjos glamorosos. Esse tipo de refinamento vai se produzir em um segmento de bom gosto, numa música popular refinada, que se prolonga nos anos de 1940 e 1950 e culmina na bossa nova.
Os compositores da bossa nova não são mais os sambistas do morro. Veja o Tom Jobim, de família tradicional, estudou música erudita com formação para ser concertista. Como Radamés, se profissionalizou como músico popular. Tornou-se arranjador, trabalhou em gravadoras e atuou como músico em boates. O Vinícius de Morais era um intelectual, poeta e diplomata. Eles fazem um samba que está em outro patamar, é quase semi-erudito. Há um refinamento que está presente tanto nos aspectos musicais como na linguagem poética, nas letras das canções. É uma sofisticação que passa pela economia de elementos. A bossa nova não é exagerada, é tudo muito contido. É uma coisa elitizada, civilizada. Já o popular é rústico, é exagerado. E a MPB é herdeira da bossa nova.
Só que acontece um fenômeno complexo aí. A bossa nova, em um primeiro momento, está traduzindo uma visão de mundo, e uma expectativa de modernidade em relação ao Brasil cultivada por um segmento da classe média brasileira, a carioca. A modernização em curso no Brasil nos anos 1950, impulsionada pela política econômica do governo de Juscelino Kubitschek, sinalizava a possibilidade de o Brasil se transformar em um país moderno sem ruptura violenta. E a bossa nova, de certa forma, traduz isso: um Brasil moderno e cordial. Uma utopia de Brasil.
E não é bem assim que a história se encaminha, não é?
Na década de 1960 a coisa vai mudar de figura, com o acirramento de tensões e conflitos sociais que culmina no golpe militar em 1964. Ainda em 1962 temos a criação do Centro Popular de Cultura da UNE, cujo objetivo era levar consciência revolucionária às massas por meio da arte popular. Uma arte cujo conteúdo tratava de questões sociais e políticas e, ao mesmo tempo, com formas artísticas ou linguagens que fossem conhecidas e de fácil compreensão pelos segmentos populares. A produção do CPC circulava principalmente pela rede de universidades brasileiras, chegava até as massas em eventos organizados por artistas e estudantes militantes. Vários artistas aderiram ao CPC, como Ferreira Goulart, por exemplo, que rompe com o concretismo e torna-se diretor do centro. O CPC atuou nas áreas de teatro, música, poesia, educação popular. Quem dirigia o departamento de música era Carlos Lyra, jovem compositor da bossa nova.
Nesse momento há uma cisão no grupo da bossa nova. Vários músicos como Carlos Lyra, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Nara Leão, aderiram ao CPC e produziram repertório de canções. Em vez de falar do mar azul de Ipanema, vão falar da miséria do povo, do trabalhador urbano, do camponês, das contradições da sociedade brasileira. E o interessante é que mesmo sendo uma música militante, ela não rompia com as marcas estilísticas musicais da bossa nova, como a maneira de cantar e os arranjos. O violão continua a ser tocado à maneira de João Gilberto. É aí que a MPB está se formando. Em 1962, Carlos Lyra vai organizar, juntamente com o CPC, a “Primeira Noite da Moderna Música Popular Brasileira”, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ao lado de compositores da bossa nova engajada, participaram representantes da chamada velha guarda: Cartola, Clementina de Jesus e Pixinguinha, entre outros.
Nesse momento se consolida a MPB?
Sim, começava a aparecer a sigla MMPB, posteriormente apenas MPB, como definidora de um segmento musical refinado e, ao mesmo tempo, crítico. Nesse momento a TV Excelsior, que era de um grupo de empresários com posições nacionalistas, organizou o primeiro Festival de Música Popular Brasileira, em 1965. A canção vencedora foi Arrastão [clique aqui para ouvir], de Edu Lobo e Vinicius de Morais, interpretada por Elis Regina [clique aqui para ouvir a interpretação de Elis]. O público dos festivais era composto majoritariamente por universitários de esquerda. O sucesso do festival inspirou os outros canais a organizarem seus festivais.
Foi principalmente no contexto desses festivais que a MPB se consolidou como um segmento musical legítimo. E ela possuía duas características fundamentais que garantiram seu sucesso. O primeiro era o refinamento musical e poético que vinha da bossa nova. O segundo, o engajamento político. Um engajamento, de certo modo, na linha do ideário nacional popular dos anos 1960.
Você falou algumas vezes em segmentos de bom gosto, e da hierarquização dos gêneros musicais. Há divisão entre a música elitizada e a das periferias?
O campo da cultura é um campo estratificado e hierarquizado. Há sempre níveis culturais que são reconhecidos como legítimos, atividades artísticas consideradas de bom gosto, e aquelas que não são. No interior da esfera cultural há lutas simbólicas pela conquista de reconhecimento. Como apontam alguns sociólogos, há uma luta de classes no campo cultural. No Brasil, durante os anos de 1960, o meio musical foi marcado por conflitos e lutas culturais intensas. A MPB emergiu como segmento legítimo, de bom gosto e, portanto, hegemônico. Os conteúdos das canções, muitas vezes de maneira indireta ou metafórica, denunciavam as desigualdades sociais, a exploração de trabalhadores, e se opunham criticamente ao regime ditatorial que reproduzia essas condições.
De certo modo, parte do repertório da MPB traduzia, através da linguagem cancional, aspectos do ideário nacional popular e do projeto nacional desenvolvimentista que balizaram a política brasileira até 1964. Pode-se dizer que esse conteúdo, tão caro a intelectuais, estudantes e organizações de esquerda, contribuiu para que esse segmento musical adquirisse reconhecimento e legitimidade dentro do sistema cultural brasileiro. Mas desigualdade social não combina com consenso.
Em 1969, no Festival Internacional da Canção promovido pela TV Globo, logo após o AI-5, Jorge Ben apresentou um samba intitulado Charles Anjo 45 [clique aqui para ouvir]. A letra fala de um líder do morro – a suposta comunidade do narrador da canção – ligado à contravenção que fora preso. O narrador lamenta esse fato, fala da situação caótica do morro gerada pela ausência de Charles e manifesta a esperança do retorno do líder. Claramente não se reconhece nessa composição referência, mesmo que indiretamente, à ideia de nação brasileira. Nesse samba, o compositor não canta o Brasil nação, canta a comunidade do morro em que vive. E o líder do morro não é o presidente da república, é o Charles, um bandido que usa revólver calibre 45 e que está preso. Mais recentemente, esse samba foi citado pelo grupo de rap de São Paulo Os Racionais. Vale lembrar que o rap paulistano também não está tematizando a nação brasileira, está falando do cotidiano do seu bairro, da periferia da grande cidade do mesmo modo que Jorge Ben fala do morro no samba de 1969. Há certa conexão de sentidos nesse ponto.
O funk carioca e o rap da periferia de São Paulo e de outras cidades brasileiras são práticas musicais que expressam identidades localizadas muito específicas, traduzem problemas complexos e específicos das comunidades em que seus protagonistas estão inseridos. O crítico conservador vai dizer que eles estão imitando o negro americano, mas não é imitação. Trata-se, de reapropriação e reelaboração de uma maneira de narrar suas próprias experiências. O que tem a ver Chega de saudade [clique aqui para ouvir] com o cotidiano violento de Cidade de Deus? Nada.
Como enxerga a produção musical brasileira hoje?
A base da estrutura da produção musical de hoje está bastante diferente. Nas décadas de 1950 e 1960, para gravar um disco, o artista tinha de ser contratado por uma grande gravadora, ter um produtor que assumisse o disco, precisava que se reconhecesse seu potencial de venda no mercado. Hoje, com o desenvolvimento das tecnologias digitais, não precisa mais ter um grande estúdio. Qualquer um consegue gravar com alguma qualidade em casa e colocar no YouTube, por exemplo. O desenvolvimento tecnológico abriu brechas para uma produção fora do controle das grandes gravadoras. Isso possibilitou o afloramento de uma diversidade musical muito grande.
Ao mesmo tempo em que há essas brechas, as grandes empresas de informática tendem a afunilar os conteúdos à disposição. Os sites criam mecanismos para expor primeiro os artistas que estão em evidência, que são mais acessados. Então há brechas, mas tem que saber como utilizá-las. Isso possibilita que circule online músicas de determinadas comunidades porque há público para procurar aquele conteúdo. Mas o grande público tende a ser orientado por aquilo que o site de compartilhamento mostra. É uma contratendência àquilo que chamam de “democratização da cultura” promovida pela internet.