Por Reinaldo José Lopes
Do ponto de vista da quase totalidade dos 4,5 bilhões de anos de história da Terra, a cozinha da sua casa provavelmente é uma aberração completa – e não é porque a maioria dos alimentos por aí seja preparada com a ajuda do uso controlado do fogo ou da radiação de micro-ondas (embora essas duas coisas também sejam bem esquisitas). Estou falando das panelas de alumínio que devem estar em algum lugar das suas prateleiras. Elas são feitas principalmente de alumínio metálico, um material que, na natureza, só existe em quantidades ínfimas, dada a grande afinidade dos átomos de alumínio pelos de oxigênio, que tende inexoravelmente a produzir óxidos e silicatos a partir do encontro desses dois elementos (e de mais alguns outros). E, no entanto, como que por mágica, nada menos que meio bilhão de toneladas de alumínio metálico – esse material que não deveria existir – podem ser encontradas na Terra neste ano de 2017. Mais de 95% desse montante, aliás, foi produzido dos anos 1950 para cá.
O estranho caso das panelas está longe de ser algo único. Tamanha foi a quantidade de concreto regurgitada pela nossa civilização industrial nos últimos 20 anos que seria factível cobrir cada metro quadrado do planeta com 100 gramas desse material – o qual, você adivinhou, também não existe na natureza. Já o dióxido de carbono ou CO2, embora, claro, esteja por aqui desde que a Terra foi plasmada pelas forças primordiais que deram origem ao Sistema Solar, andou passando por um espetáculo do crescimento igualmente inaudito nos últimos tempos: um aumento de 2 ppm (partes por milhão) por ano na atmosfera ao longo das cinco décadas mais recentes, enquanto o fim da Era do Gelo testemunhou um aumento de apenas 1 ppm a cada 85 anos.
Há mais exemplos de onde esses vieram, mas os que acabei de citar são suficientes para ilustrar uma ideia que começou como metáfora e está ficando cada vez mais próxima de virar uma categoria oficial da história geológica da Terra: o Antropoceno, ou Era do Homem. O holandês Paul Crutzen, um dos ganhadores do Prêmio Nobel em Química de 1995 por seu trabalho sobre o rombo na camada de ozônio, cunhou o termo no ano 2000. Até então, todos acreditávamos viver no Holoceno, a fase geológica (para ser preciso, o termo é época geológica) que corresponde mais ou menos aos últimos 10 mil anos, quando, após um recuo global das grandes geleiras, surgiram a agricultura, as sociedades humanas complexas e toda a nossa história registrada pela escrita. A etimologia grega do termo equivale a algo como “totalmente recente” (Antropoceno, por sua vez, seria algo como “humano recente”).
Nas últimas décadas, porém, o impacto da ação humana sobre os sistemas básicos de funcionamento da Terra e a compreensão sobre esses impactos cresceram lado a lado. Para muita gente, cada vez mais passou a fazer sentido enxergar a ação coletiva da nossa espécie como uma força geológica “honorária”, à sua maneira tão decisiva para o futuro planetário quanto a atividade dos vulcões ou a capacidade da vegetação de absorver dióxido de carbono e lançar oxigênio nos ares. Pouco a pouco, portanto, a coisa foi ficando séria, com esforços especificamente dedicados a formular uma definição clara do Antropoceno, que viabilizaria sua transformação em época geológica oficial.
No ano passado, por exemplo, o chamado Grupo de Trabalho do Antropoceno, que reúne 35 cientistas coordenados por Jan Zalasiewicz [clique aqui para ler artigo de Zalasiewicz neste dossiê], da Universidade de Leicester, no Reino Unido, apresentou suas conclusões durante o 35º Congresso Geológico Internacional, que aconteceu na Cidade do Cabo. Desse conjunto de especialistas, 28 propuseram que o ideal seria datar o fim do Holoceno e o começo do Antropoceno na década de 1950.
A data não tem nada de arbitrária. Os anos 1950 coincidem com testes de armas nucleares em larga escala planeta afora, os quais produziram quantidades relativamente grandes de isótopos (variantes de elementos químicos) radioativos que, mais uma vez, não são encontrados de forma natural na Terra. Além disso, justamente por serem elementos químicos instáveis que sofrem decaimento radioativo, perdendo uma fração das partículas elementares que os compõem e se metamorfoseando em outros elementos conforme taxas bem conhecidas, não seria muito difícil para os geólogos do futuro distante (se houver esse tal futuro, bem entendido) identificá-los nas rochas formadas hoje com grau adequado de precisão.
Uma vez que esse consenso se firme, a coisa começa a ficar um pouco mais específica e complicada. Outro marco importante para a definição científica do início do Antropoceno é designado pela sigla GSSP – “ponto e seção de estratótipo de limite global”. Trocando em miúdos, o GSSP designa um local preciso, numa camada de sedimentos ao redor do globo, associada ao início de uma fase geológica. Já há alguns candidatos a GSSP do Antropoceno, como formações calcárias de cavernas da Itália ou sedimentos que ficam em bacias oceânicas da Califórnia e da Venezuela – o importante aqui é que a deposição de camadas de sedimentos tenha ocorrido de maneira que possa ser associada confiavelmente à multiplicação de testes atômicos dos anos 1950 rolex replica watches, e que as amostras possam ser analisadas de forma independente por geólogos mundo afora.
É claro que essa não é a única possibilidade lógica de definição do Antropoceno. Camadas de concreto ou lixões com alumínio à parte, há quem fale numa definição biológica para a ascensão da Era do Homem. Ao se tornar uma espécie globalizada, o Homo sapiens bagunçou completamente os padrões biogeográficos produzidos cuidadosamente ao longo de centenas de milhões de anos de evolução. Fósseis de galinhas domésticas ou de pólen de trigo achados no Brasil, por exemplo, seriam exemplos perfeitos desse fenômeno, já que ambos evoluíram muito longe daqui (no sul da Ásia e no Oriente Próximo, respectivamente) e jamais teriam chegado à América do Sul por seus próprios meios. E há ainda, no lado mais sombrio dessa equação, a onda de extinções em massa que tem sido causada pela ação humana, que tem potencial para rivalizar com as Big Five, as outras cinco grandes ondas de desaparecimento de espécies da história da Terra e, por isso mesmo, tem sido chamada de Sexta Extinção.
É possível que, até o final desta década, o Antropoceno seja oficializado por decisão do comitê executivo da União Internacional de Ciências Geológicas. Isso não deve ocorrer sem sobressaltos: nem todos os geólogos consideram as alterações trazidas pela ação humana significativas o suficiente. No fundo, é o tipo de decisão que não dá para tomar apenas com base em dados científicos, por mais confiáveis que eles sejam, porque depende de uma compreensão – necessariamente subjetiva, até certo ponto – da responsabilidade humana em relação ao destino do planeta.
Reinaldo José Lopes é formado em jornalismo pela USP e mestre e doutor em estudos linguísticos e literários em inglês pela mesma universidade, com trabalhos sobre a obra de J.R.R. Tolkien. É autor de 1499 – O Brasil antes de Cabral (Harper Collins) e Além de Darwin (editora Globo), entre outros. Foi editor de ciência e saúde na Folha de S.Paulo e hoje é colaborador do jornal.