Por Letícia Guimarães, Cristiane Bergamini e Guilherme Rodrigues
Como já aconteceu ao longo de toda história da humanidade e nos mais diversos locais do planeta, toda diversidade gera debates, intolerância e, no limite, perseguições. A intolerância pode se manifestar das mais diversas formas, podendo ser algo sutil, passando despercebida no cotidiano, até crescer ao nível de ataques dos mais diversos tipos – verbais, físicos, destruição de ícones e locais de culto. “A depredação de qualquer natureza, não somente de templos religiosos, como também de imagens sagradas, é manifestação evidente de uma incapacidade de convívio e reconhecimento de outras possibilidades de ser”, afirma Renato Kirchner, doutor em filosofia e professor do programa de mestrado em ciências da religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Explica-se muito da presença de traços de intolerância quando devotos distorcem as escrituras sagradas de suas religiões que, no geral, pregam paz e respeito ao próximo, e a interpretam de um modo fanático. “Em toda e qualquer interpretação fundamentalista ou mesmo superficial da profundidade da Palavra de Deus pode haver um equívoco irreparável”, diz Kirchner.
As religiões são parte da sociedade e continuarão sendo. Dessa forma é preciso urgentemente achar um meio de convívio entre elas. Como escreveu o teólogo e filósofo suíço Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver se não houver um ethos global, uma ética para o mundo inteiro”.
No Brasil, intolerância religiosa vem carregada de racismo
Apesar de a Constituição Federal brasileira prever que a liberdade de crença é inviolável, não são poucos os relatos e denúncias de preconceito e intolerância religiosa no Brasil. De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, o setor de denúncias do órgão recebeu 196 queixas de intolerância religiosa no primeiro semestre do ano passado, 17 casos a mais do que o mesmo período de 2015.
A Secretaria divulgou no início deste ano um levantamento das ocorrências envolvendo religiões entre 2011 e 2015, e o resultado foi de 697 casos. As ouvidorias que mais recebem queixas são as dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Na análise das denúncias, o órgão apurou que a maioria das vítimas são adultos, sem diferença significativa entre os sexos. Grande parte das pessoas que sofreram intolerância religiosa pertence a religiões de matriz africana, seguido de evangélicos.
Os agressores são, em sua maioria, pessoas adultas brancas, principalmente das religiões evangélica e católica, apesar de não haver descrição da crença do algoz em todas as denúncias. Segundo o estudo, o opressor geralmente tem relação de proximidade com a vítima, sendo na maior parte vizinho, familiar, chefe ou professor.
A professora, pesquisadora e militante do movimento negro Edna Almeida Lourenço, que já recebeu no Senado Federal a comenda especial Abdias do Nascimento, reforça os dados apresentados. Segundo ela, a intolerância contra crenças de origem africana é “carregada na tinta” devido ao ranço racista que ainda permeia a sociedade. “Ainda que a pessoa que pratique essa fé seja branca, só o fato de a religião em si ter origem no seio do povo negro já é um motivo para que a intolerância aconteça. É a questão racial que fortalece isso”, explica.
Enquanto professora, ela julga que a educação desde a infância pode ser uma ferramenta para estabelecer o respeito às diferenças de crença e ao povo negro. Uma das ações práticas para isso seria a implementação da Lei 10.639, de 2003, que dispõe sobre a inclusão do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo escolar de estabelecimentos oficiais e particulares. As contribuições dos negros nas áreas social, econômica, política e cultural do país seriam inseridas nas aulas de história, literatura e educação artística.
Entretanto, ainda há entraves para utilizar a educação como ferramenta de combate ao racismo e à intolerância religiosa. Segundo Edna, em Campinas, onde realizou uma pesquisa junto de outros docentes e da comissão parlamentar da Câmara Municipal da cidade para implementação da lei, poucos professores julgaram necessária a elucidação das crianças sobre como o povo negro contribuiu – e ainda contribui – para a formação da sociedade.
De acordo com os dados coletados entre agosto de setembro de 2016 com educadores da rede municipal, dos 7.080 professores, agentes de educação infantil e gestores, apenas 218 responderam à pesquisa que foi disponibilizada no sistema Educação Conectada. O estudo evidenciou ainda a falta de conteúdo específico sobre a temática já na formação dos profissionais, sendo que 47% dos que responderam à pesquisa afirmaram nunca ter tido contato com o assunto. Só 10% já haviam aprendido sobre o tema em disciplinas específicas.
Para Edna, é a educação feita de uma forma adequada que irá combater a ignorância e promover o respeito e a tolerância às demais crenças, com as crianças servindo de agente multiplicador das informações. “A própria Conferência de Durban, em 2001, coloca a educação em pauta como ferramenta contra o racismo e a intolerância religiosa”, afirma.
Também no documento final da Conferência ficou estabelecido que os casos de racismo, intolerâncias e discriminações correlatas devem ser abordados com ainda mais ímpeto. Edna concorda que é necessário “tocar na ferida” e trazer à luz as ocorrências que, na maior parte das vezes, não aparece na grande mídia. “Teve o caso da mãe de santo do Rio de Janeiro que foi filmada sendo ameaçada por homens armados que a obrigaram a destruir os objetos do templo. Esse foi um dos casos que viralizaram na mídia, mas quantas outras vítimas ainda têm suas vozes silenciadas?”, questiona.
Da Antiguidade aos dias atuais: o que mudou?
Não é de hoje que se ouve falar sobre intolerância religiosa. Esse é um tema que remonta desde épocas medievais. Porém, na Antiguidade se vivenciava isso de forma muito mais ostensiva, e não era um assunto que se discutia. Mas, o que se buscava exatamente naquela época e o que se busca nos dias de hoje com as discriminações e desrespeitos pela crença alheia? É tão somente a discussão do que é verdadeiro, de que lado está a razão, que Deus é o certo? O que mudou de lá para cá?
De acordo com a especialista em história medieval e professora do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Neri de Barros Almeida, a Idade Média não ajuda a entender os conflitos atuais. “No que se refere ao Islã atual, por exemplo, a crise da tolerância em relação aos ‘cristãos’ e/ou ao ‘ocidente’ se estabelece, do meu ponto de vista, no final do século XIX, quando o Império Otomano começa a se fragmentar e as riquezas da região, sobretudo o petróleo que então se instala como matriz energética, começam a ser disputadas pelos poderes internacionais”, esclarece Neri. “[Considerando a Idade Média como referência], eu não acho que houve evolução, houve mudança. Antes ‘religião’ não era tema de discussão fora dela e hoje a religião pode ser discutida, não no sentido dogmático apenas, mas no sentido de fato em si (a religião faz sentido? quando ela faz sentido?). Na Idade Média, esse tipo de questionamento não se colocava, pois o ser não religioso não existia. O problema que se coloca então é o da maneira de lidar com aqueles que não são cristãos ou que não são cristãos ortodoxos, como os chamados hereges”, diz Neri.
“O cristianismo de fato, capitaneado pela Igreja Católica, alimentou muita intolerância, mas é preciso lembrar que ele também forneceu instrumentos para sua crítica, como temos na ideia de que todos os homens são irmãos, ou seja, de que eles fazem parte de uma mesma fraternidade”, ressalva Neri. No entanto, complementa: “Se eu posso dizer que algo permaneceu no campo religioso, entre a Idade Média e os tempos atuais, é o fato de que religião sempre está inelutavelmente vinculada à política”.
Letícia Guimarães é jornalista (Unip) e aluna da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Cristiane Bergamini é jornalista (PUC-Campinas), tem mestrado e doutorado em planejamento de sistemas energéticos e é aluna da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Guilherme Rodrigues é graduado em medicina veterinária (FAJ) e aluno da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.