Por Beatriz Maia
Em um país com tamanha diversidade cultural, os bens culturais celebrados como patrimônios imateriais da nação são o ponto de partida para uma discussão sobre a cultura brasileira e as inúmeras influências.
Principal referência nos estudos sobre patrimônio imaterial no Brasil, o antropólogo Antônio Augusto Arantes Neto possui um extenso currículo, que inclui a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e uma colaboração desde 2002 com a Unesco para a implementação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Intangível. Foi também um dos criadores do Departamento de Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, do qual é professor desde 1968. Nesta entrevista, Antônio Arantes fala sobre a importância dos patrimônios imateriais de uma nação na constituição da identidade dos povos, e na promoção da harmonia entre as diferentes culturas.
O que é o patrimônio imaterial de um povo?
Vamos pensar no caso brasileiro. A política de patrimônio cultural se desenvolveu muito no final do século XX, anos 1980, 1990 e começo dos anos 2000. Foi nesse período que essa denominação foi adotada tanto no Brasil como internacionalmente. O artigo 216 da Constituição Brasileira de 1988 apresenta várias mudanças muito importantes no conceito de patrimônio cultural, e uma delas decorre da inclusão de dois elementos que são relevantes nesta pergunta. Um trata das referências culturais de natureza imaterial, porque, até então, toda a legislação existente no Brasil tratava de monumentos, sítios, edificações, enfim, artefatos, coisas palpáveis.
Na Constituição de 88 foi instituído que o patrimônio também se constitui de bens de natureza imaterial. É importante frisar que nessa mesma Constituição se diz que os bens do patrimônio cultural, de natureza material ou imaterial, são aqueles portadores de referência às identidades dos grupos formadores da sociedade brasileira. Na verdade, o patrimônio é da nação, é do povo, da nação brasileira. E isso implica uma diversidade muito grande, muito maior do que aquela que orientava as políticas de patrimônio até então. Porque naquela época não se levava em consideração essa heterogeneidade cultural da nação, e se fixava, vamos dizer assim, no olhar apenas aos objetos tangíveis, nos valores desses objetos, valores de natureza estética, histórica, arqueológica etc.
Então, veja que mudou completamente o foco das coisas para a nação, e para a diversidade da nação. Quanto aos objetos constitutivos do patrimônio, ampliou-se muito o olhar, na medida em que passa a tratar também do que se chama de patrimônio imaterial. No caso brasileiro, são quatro categorias que estruturam esse universo: formas de expressão, saberes, lugares e celebrações.
E quando falamos de bens como o samba carioca, não estamos falando exclusivamente da coreografia e da música, que são os elementos mais intangíveis daquela expressão cultural, mas também de toda a materialidade que é necessária para que essa forma de expressão aconteça. Isso inclui desde figurinos, até o lugar onde se apresenta e os instrumentos musicais utilizados. Toda essa dimensão material é levada em consideração, mas sempre tomando por referência aquela atividade principal que é a que dá a tônica daquele conjunto de práticas culturais e conhecimentos que são registrados. A mesma coisa para o maracatu, o frevo, e assim por diante.
Podemos falar em culturas mais ricas e culturas menos ricas? O número de registros de patrimônios culturais pode ser utilizado como um indicativo de riqueza de uma cultura?
Do ponto de vista da antropologia, não faria sentido uma avaliação com um juízo de valor dessa natureza em relação às culturas dos diversos povos, quer sejam eles indígenas, autóctones, da Europa, ou não importa de onde. O que temos que olhar, na verdade, é que a cultura não é complexa por igual. Há culturas que têm sistemas de parentesco extremamente complexos, muito mais do que o nosso. Mas não há como emitir um juízo de valor de uma cultura sem ser etnocêntrico, ou seja, considerando os critérios da sua própria cultura para julgar os demais. Então, realmente, isso não existe.
O conceito de patrimônio cultural é uma construção feita a partir do Estado, proclamado e protegido por organismos governamentais. Como no caso do Brasil, por exemplo, o responsável federal é o IPHAN. E os países criaram suas próprias estruturas, a partir de 1930.
A questão do patrimônio é seletiva, e quando você seleciona, evidentemente exclui. Essa construção é feita, a cada momento, a partir dos critérios do presente. Há 30 anos os critérios eram outros, e daqui 30 anos, provavelmente, também serão. Então, é importante frisarmos que o patrimônio cultural é sempre cumulativo. Cada geração vai trabalhando com seus próprios critérios, dentro desses princípios legais jurídicos. Isso vai se acumulando, e vai formando um grande acervo que acaba sendo o acervo da nação.
E só depois do ano 2000, ano do nosso decreto para a preservação do patrimônio imaterial, é que passamos a preservar o patrimônio imaterial. Até então não havia nada nesse sentido.
E nesses 17 anos do decreto, já é possível observar mudanças nesses critérios?
Claro. Se você olhar a lista dos elementos culturais preservados no Brasil, vai observar que é grande, são 41 bens registrados. Há certas práticas culturais que são escolhidas para salvaguardo, porque há poucas pessoas envolvidas, ou os praticantes estão morrendo, ou são pessoas muito idosas e os jovens já não se interessam tanto. Mas há registros, também, de outras práticas sociais que são vigentes e fortes, como o frevo e o samba, com um efeito mais celebratório, de reconhecimento da importância daquela forma de expressão para a população.
Olhando a lista de bens culturais protegidos, tenho a impressão de que há uma concentração de manifestações culturais majoritariamente ligadas aos estados das regiões Norte e Nordeste do país. Por que isso acontece?
Fiz uma breve contagem e acabei chegando à mesma conclusão que já tinha chegado em relação ao patrimônio material. Tanto os bens de patrimônio material quanto imaterial que têm mais atenção do Estado brasileiro, desde 1937, estão ligados à região do Tratado de Tordesilhas. Os bens preservados são os que se encontram inclusive a leste dessa linha imaginária. Quando fui presidente do IPHAN, eu dizia que tínhamos que ir além do Tratado de Tordesilhas. Usava essa metáfora porque, se pensar em termos dos bens tombados, todos estão nessa região de ocupação europeia mais antiga. E todo o Centro-Oeste, o Norte e a Amazônia, são regiões que foram ocupadas mais recentemente e onde predominam, ou predominavam, as culturas das sociedades indígenas.
Ainda existe pouca atenção – e falo especificamente no nível federal, que é o IPHAN – às manifestações culturais das segmentações da população brasileira que vive a oeste de Tordesilhas. Podem dizer “ah, é óbvio, porque realmente a parte mais antiga do Brasil, em termos da ocupação portuguesa, foi a costa brasileira”. Mas, veja bem, já são cinco séculos de história. E, além disso, há um corte cultural muito significativo. O Estado brasileiro tem se preocupado muito mais com manifestações da cultura luso-brasileira do que com as culturas indígenas, que são muito mais numerosas.
É um viés muito importante e que deve, evidentemente, ser corrigido ao longo do tempo. A criação do patrimônio imaterial abriu a possibilidade da inclusão dessa outra parte do Brasil no nosso patrimônio cultural. São povos muito ricos em termos de formas de expressão, conhecimentos tradicionais, celebrações, e tudo mais. A possibilidade hoje existe, mas há um trabalho que precisa ser feito. É um passivo que precisa ser resolvido pelas políticas culturais no Brasil, e dar mais atenção para as culturas das sociedades indígenas.
O que acha das transformações em manifestações culturais tradicionais brasileiras, como o caso recente da capoeira gospel, adaptada por praticantes de igrejas evangélicas? É natural que haja adaptações, ou vê um risco de homogeneização?
Tanto a cultura é produto do seu tempo quanto o patrimônio cultural é produto do seu tempo. Na medida em que o tempo foi passando, o patrimônio cultural se modificou, e hoje se preservam manifestações culturais que nos anos 1930 nem se imaginava. E por que? Porque a sociedade mudou. Então, se a sociedade muda, é muito natural que as práticas culturais também mudem. E eu não vejo nenhum problema que se faça uma capoeira gospel, porque, afinal de contas, essa manifestação é associada à cultura afrodescendente e ancorada nos terreiros de candomblé e umbanda. Mas elas não detêm exclusividade sobre essas ações.
Seria preferível que diferentes grupos da sociedade façam adaptações, a seu modo, de um elemento cultural nacional, do que procurem imitar alguma coisa que seria supostamente autêntica. Porque nada é autêntico. Tudo que existe, em termos de cultura, na verdade resultou na mistura de mil e um elementos culturais de diferentes origens. E a dinâmica cultural continua ocorrendo. Então, não existe exclusividade autoral em termos de manifestações culturais coletivas.
Outra coisa é o desrespeito. Isso não significa que a apropriação pública de símbolos públicos não possa ser feita, desde que respeitosamente. O problema é o desrespeito, não é o uso do símbolo do outro grupo étnico. Tomemos como exemplo um símbolo de valor religioso, como aconteceu com a pintura cultual dos índios Wajãpi, um dos primeiros registros do patrimônio cultural do Brasil. O registro foi feito porque os Wajãpi se mobilizaram em defesa dos seus próprios desenhos, do modo como eles estavam sendo utilizados. Para eles, os desenhos refletem não só uma identidade étnica de um povo como um todo, como inclusive uma identidade pessoal. A imagem de uma mulher indígena com suas pinturas corporais estava sendo usada em camisetas promocionais. Eles acharam um desrespeito absoluto, e se mobilizaram.
Recentemente, discutiu-se bastante nas mídias sociais a questão da apropriação cultural. Qual sua opinião sobre isso?
O trabalho com patrimônio cultural procura contribuir para a identificação da diferença, da diversidade constitutiva das sociedades contemporâneas. O objetivo é valorizar essas diferenças e promover harmonia entre elas. Ou seja, reconhecer diferença não é estimular o ódio, o ódio étnico que tem sido tão fomentado.
Entende-se perfeitamente que os grupos sociais que têm sido historicamente excluídos desenvolvam ações de afirmação política. Se fazemos parte de uma nação, nós queremos que essa nação se entenda, que as pessoas que fazem parte desse país se entendam. Por isso a Constituição define patrimônio cultural como as referências culturais dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira.
Houve um caso que vivi como presidente do IPHAN, entre os anos de 2004 e 2006, que diz respeito à viola de cocho, instrumento musical típico do Mato Grosso, declarada como patrimônio nacional. Só que ela é um instrumento antigo, e as comunidades que ainda constroem essas violas e as usam vivem onde hoje é o Mato Grosso do Sul. Quando foi proclamada patrimônio nacional, a celebração da inscrição foi feita em Ladário, e o então governador do Mato Grosso reclamou, dizendo que o instrumento era do seu estado. Tive que argumentar que, na verdade, não era de nenhum desses estados, mas do território onde era o estado do Mato Grosso, e que, na verdade, se tratava de um reconhecimento nacional.
Então, era desejável que os brasileiros, de uma forma geral, tomassem conhecimento da viola de cocho, aprendessem a tocar e compusessem suas músicas. É muito mais no sentido da inclusão social e de promoção do entendimento e da harmonia do que do ódio e da segregação.
O que a Constituição garante a todos os brasileiros é o conhecimento da diferença e o convívio com a diferença. São as duas coisas que a lei permite a todos nós, e que a política pública de cultura deve promover.