Por Adriana Dias
O ódio construído sobre três elementos – crença numa supremacia “natural” – se o branco não vence é porque foi sabotado; a criação de um “Outro conveniente” para assumir a culpa pelo próprio fracasso; e culto da masculinidade – desaloja qualquer possibilidade de diálogo. Há apenas paranoia: o povo branco vive em diáspora, visto que seus inimigos tomaram seu lugar para produzir seu genocídio. É uma resolução da incerteza pela violência.
Infelizmente, os movimentos neonazistas se tornaram pautas comuns em muitos jornais. Manifestações, passeatas, ataques orientados por grupos neonazistas são cada vez mais comuns e se espalham por todo continente europeu, pelos Estados Unidos, pela América Latina, pela Rússia e em muitos outros lugares. Com ajuda de grupos neonazis, a crise da Criméia na Ucrânia foi conduzida como regime separatista, e grupos que dialogam em maior ou menor proximidade com processos nazificantes estão presentes em toda a extrema-direita mundial.
Recentemente, centenas de ativistas do movimento neonazista dos Estados Unidos se aglomeraram na Universidade de Virginia em Charlottesville, em 12 de agosto, em protesto contra a retirada da estátua do general confederado Robert E. Lee[1]. Para a manifestação, a extrema direita reuniu, pela primeira vez em muito tempo, neo-confederados, grupos de ódio em geral, grupos de supremacia branca de várias espécies e membros da Ku Klux Klan, a 190 km de Washington, no ato que intencionou claramente “unir a direita” e gritou por todo o desfile mensagens de ódio contra negros, judeus, imigrantes, gays e pessoas com deficiência.
Em minha etnografia dos grupos neonazistas, na qual analiso esses movimentos há 14 anos, em especial o movimento neonazista estadunidense e sua repercussão no mundo, inclusive no Brasil, observei seu discurso, que é sempre alicerçado na defesa de uma “lei natural” que fundamentaria “sua supremacia” sobre os outros. Essa supremacia, por sua vez, emolduraria uma certa ideia de raça, permitindo uma polissemia extremamente complexa: raça é nação, pele, uniforme, religião, pátria, biologia e religião, material e transcendental, justificativa para todos os tipos de discursos de ódio. E algo que todos os neonazismos têm em comum é o ódio como premissa de sentido. O que odeiam varia: podem odiar o tipo de imigrante, no Brasil odeiam o nordestino, por exemplo, o migrante mais comum visto pelo “branco” brasileiro… No leste europeu odeia-se mais o migrante vindo da África. Nos EUA, latinos e afrodescendentes são odiados tanto como judeus.
Cultura do ódio: os alicerces
A nazificação baseada em discurso de ódio é articulada sobre três alicerces fundamentais, nos quais o cultivo do ódio se fundamenta, segundo o historiador Peter Gay: a crença numa concorrência “natural” na qual sobrevive o mais capacitado por meritocracia, que desconsidera fatores sociais e políticos; a criação de um Outro conveniente, para assumir por projeção todas as culpas e responsabilidades pelos males sociais do mundo; e, por fim, a construção de um “culto de masculinidade” absurdamente avassalador. Esses elementos são articulados à noção de raça: para eles uma categoria indubitável, fixadora de identidades, para atribuir a grupos de pessoas características que servirão para defini-las. Definidas, essas pessoas, os Outros, serão OS INIMIGOS. Para vencê-las, os homens brancos (não as mulheres, facilmente enganadas pelo desejo, e muito mais suscetíveis à contaminação racial) terão que construir um mundo eugênico, branco, separado, e se necessário, eliminar todos seus inimigos.
No roteiro radicalizado pelo ódio, a raça branca, segundo o delírio neonazi, vive à beira de um genocídio, arquitetado pelos governos manipulados pelo império judeu. Essa paranoia alcança milhares de pessoas em todo mundo: usando o ciberativismo, grupos neonazistas crescem a taxas mais altas que a população nos EUA, na Europa, na Argentina, no Chile, no Brasil, na Rússia. Em outros lugares, o crescimento, ainda que menor, também assusta. A mensagem: é preciso destruir quem comanda o “genocídio branco”, o judeu, e quem o judeu usa para destruir o homem branco, as “raças inferiores” ou os “lixos genéticos”, ou seja, negros, imigrantes e pessoas com deficiência ou doenças raras.
O movimento é bem diversificado, nada hegemônico. Há desde grupos pagãos a grupos de identidade cristã, de neo-confederados a extremistas ultra-nacionalistas, de grupos voltados a uma ideia “ecológica nazista”, bandas de rock neonazistas, a seguidores da Ku Klux Klan. O espectro do neonazismo é extenso, inicia com movimentos anti-gays e anti-imigrantes e vai se nazificando, em grupos negacionistas do Holocausto, memorialistas de líderes nazistas, defensores de um “mundo branco” que elimine judeus, negros, gays, pessoas com deficiência e todos que possam ameaçar o propósito de sua absurda luta. Há mais de 700 grupos neonazistas diferentes na internet, cuja sede física se dá apenas nos Estados Unidos. Na Rússia, existem mais de 200 grupos diversos, inclusive um extremamente complicado de se entender: os gays arianos. Sim, isso existe.
De todos esses, mais de uma centena tem braço no Brasil. Além de grupos dos EUA, o Brasil tem grupos neonazistas de origem europeia, ucraniana e russa. Mais de 250 mil pessoas baixam conteúdo neonazista em português no território brasileiro, e cerca de 10% a 20% dessas pessoas frequentam células ou shows neonazis. A situação é bem grave.
No geral, as células ou grupos se comunicavam com poucas outras, mas com o advento das redes sociais houve um aumento dessa comunicação entre os grupos, num crescimento de cerca de 300% ao semestre em fóruns neonazis. O crescimento não é em número de páginas, mas em participantes em fóruns e redes, como o VK. O grande temor nos últimos anos era que algum evento pudesse articular alguma espécie de foco de união nesses grupos. Foi exatamente o que aconteceu em Charlottesville, na Virgínia. Provavelmente, é apenas o início de um processo de unificação dos grupos por interesses em comum, exatamente o que mais se temia.
A união da extrema-direita, como aconteceu na Virgínia, é o que mais devemos temer. A sua existência em si já é extremamente violenta, e os gritos de “vocês não vão tomar o nosso lugar” que a turba neonazi ecoou (ora mudando para judeus não vão tomar nosso lugar, gays não vão tomar nosso lugar, deficientes não vão tomar nosso lugar, negros não vão tomar nosso lugar), demonstram muito bem como há dentro dessa massa o sentimento de povo da nação, como definiu Hannah Arendt, réplica de uma racionalização antiga que afirma que são donos de um espaço ameaçado pelas minorias. Essa ansiedade de incompletude, esse medo paranoico de perda de um lugar que, aliás, nunca foi verdadeiramente seu, pois foi construído socialmente pelo colonialismo, é muito bem explicado por Arjun Appadurai como a sensação de angústia diante do mundo coletivo e que revela a incapacidade de adaptação dessas pessoas. A incerteza social como um locus engendrador de concepções de violência, nos termos do autor, uma “ansiedade da incompletude”. A violência pode criar uma forma macabra de certeza (2009, p. 16), balizada pelo que Appadurai denomina de identidades predatórias, cujo alvo é a eliminação de seu foco de ansiedade: as minorias que, a seu ver, parecem ameaçar sua existência
A meritocracia na supremacia branca
O ódio que fundamenta a supremacia branca se baseia na ideia de que apenas o branco é portador da civilização, e que o homem branco é capaz, merecedor de todo sucesso. Na concorrência ele deve ser naturalmente o vencedor. Se não é, está prejudicado por algum outro fator, condicionado pelo Outro (veja o ponto seguinte about the best crossbow broadhead). Num mundo realmente meritocrático, o branco sempre levaria o melhor emprego, o melhor lugar na universidade etc. Os jovens que são alvos do proselitismo neonazista são muitas vezes aqueles sem vida definida, sem perspectiva, sem grandes chances intelectuais ou profissionais, pois a eles é dito que são especiais, por serem brancos, e que seu espaço está sendo tomados por seus inimigos, os judeus, os negros e outros (por ações afirmativas ou outras situações). Dessa forma o jovem é levado a crer num lugar especial para si, e passa a acreditar que a angústia da existência surge do Outro, e não de sua própria incapacidade de realização.
O outro conveniente
Judeus, negros, gays e pessoas com deficiência são descritas como interessam aos supremacistas brancos para colocá-los como inimigos de seus propósitos. Inventam dados, controlam mentiras, fazem falácias de todos os tipos para construir um discurso de ódio contra essas pessoas que “as ameaçam”. No Brasil, também fazem isso com o nordestino.
O culto à masculinidade
Na supremacia branca o homem é o herói. A masculinidade é adorada, a mulher é apenas um útero que terá os filhos e o futuro da raça. Há uma valorização inclusive do estupro de mulheres brancas. O casamento inter-racial e a adoção de crianças negras são vistos como parte do projeto de genocídio da raça branca. A masculinidade assume um lugar árido, sem respeito ao feminino. A obra de David Lane[2], líder neonazista que cunhou as 14 palavras, maior slogan do movimento neonazista “’Devemos assegurar a existência de nosso povo e o futuro para as crianças brancas”, incentiva inclusive o estupro de mulheres brancas por líderes neonazistas como forma de correção ao casamento inter-racial. Milhares de jovens neonazistas leem os livros de Lane acerca disso.
É preciso entender que, para os grupos mais violentos, o racismo é uma experiência visceral e o ódio construído alicerçado sobre esses três elementos comentados anteriormente desaloja toda e qualquer possibilidade de diálogo. Há apenas paranoia: o povo branco vive em diáspora, visto que seus inimigos tomaram seu lugar para produzir seu genocídio. É estarrecedor o uso da história das vítimas (diáspora) e do termo cunhado para falar de sua tentativa de extermínio para inverter a história (genocídio). O neonazismo vive de reminiscências, de enfatizar uma Alemanha que nunca existiu, de denominar de glorioso um tempo de vergonha, destruição e desumanidade. Não há diálogo, apenas raiva, e uma doutrinação sem fim, sem sentido e repetida à exaustão. Repetida até fazer sentido pelo ódio. Que cria sentido no objeto odiado. E construído apenas para ser odiado. Resolução da angústia da falta de sentido. Resolvendo, como escreve Appadurai, a incerteza pelo ódio e pela violência.
Adriana Dias é doutoranda e mestre em antropologia social e graduada em ciências sociais pela Unicamp. É coordenadora do Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia e coordenadora de pesquisa no Instituto Baresi (que cria políticas públicas para pessoas com doenças raras) e na ONG Essas Mulheres (voltada à luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e ao combate da violência que afeta mulheres com deficiência).
[1]Lee havia recebido a homenagem, por sua luta na Guerra Civil pela independência do sul e contra o fim da abolição da escravatura nos EUA. Novos tempos, a Virginia, e todo o sul dos EUA desejam se livrar das marcas da escravidão e dos confederados.
[2] Morto enquanto cumpria pena em 2007.