Por Cecilia Café-Mendes
Uma vez que as ideias não são autônomas, mas advêm de um contexto, será a ciência isenta de opiniões e de ideias pré-concebidas que estejam em voga em determinado momento social?
Desde a Revolução Industrial no século XIX, a tecnologia é uma realidade e tem alterado a dinâmica nas relações com a sociedade. O tempo do mercado invadiu a vida e invadiu também a ciência. Vivemos, portanto, a chamada fast science, ciência produtivista.
Entre 1935 e 1975, a sociedade foi bombardeada por um fluxo de avanços, novidades e marcos científicos importantes, como medicamentos capazes de curar a tuberculose, até então fatal, o refinamento de técnicas cirúrgicas, tratamentos como a diálise e melhor compreensão da ação dos fármacos. Entretanto, atualmente, salvo exceções, a ciência vive uma fase de refinamento. Aprofundamos a pesquisa em torno de determinados temas. Sabemos mais sobre algumas doenças, especificamos os fármacos, melhoramos os questionários clínicos, adaptamos teorias consolidadas à realidade atual. Os questionamentos da ciência mudaram, mas não se mudou a imagem mais comum sobre ela – que continua sendo sinônimo de grandes novidades.
O desejo de novidade pode significar holofote demais para certezas de menos, ou seja, muitas vezes trabalhos ainda em andamento e/ou pouco testados ganham ares de revolução. Mas a “hipótese científica” depende de confirmações por vários estudos sistemáticos realizados mais de uma vez e por diferentes grupos de pesquisa, preferencialmente.
Ciência e ideologia
Muitas áreas da ciência, hoje, têm sido acusadas de atender interesses políticos, econômicos, sociais, dentre outros, impregnando-a, assim, com “ideologias”. Algumas revistas científicas importantes como Nature e Cell têm discutido ao longo dos anos o interesse comercial, tratado então como ideológico, frente ao que seria o interesse científico, logo, baseado em fatos decorrentes de metodologias claras e imparciais.
Uma dessas polêmicas rondou, por exemplo, as pesquisas envolvendo células-tronco, num embate entre a Universidade de Michigan e a empresa NeoStem. A companhia anunciou que iria fazer os primeiros testes em humanos utilizando células embrionárias do tipo VSEL (do inglês very small embryonic-like cells) em procedimentos de regeneração óssea, apesar de pesquisas básicas indicarem células de outro tipo, as mesenquimais, como mais bem estabelecidas e seguras para testes em humanos.
Situações como essa geram discussão sobre interesses, verdades, mitos, ideologias; principalmente sobre as últimas que, apesar de parecerem sempre muito ligadas às ciências humanas, figuram dentro das ciências exatas e biológicas.
Originalmente o termo ideologia, postulado por Destutt de Tracy era definido como o estudo científico das ideias, e que elas resultariam da interação entre organismos vivos e o ambiente, como se fosse um estudo do comportamento humano. A partir daí, outros significados foram somados, levando às conotações críticas e negativas que se propagam hoje.
A popularização do termo veio com Marx e Engels, que associaram essa palavra a doutrinas puras e desvinculadas de uma realidade material, gerando ideias errôneas e distorcidas sobre a natureza do homem.
Como ressalta Marko Monteiro, antropólogo e docente do Instituto de Geociências da Unicamp, “para o senso comum essa palavra está associada a algo que não seria fato, não seria verdadeiro, mas sim ligado às crenças e convicções de determinada pessoa ou grupo. Em âmbitos como redes sociais e até discursos de políticos ou da imprensa, criou-se uma oposição fácil entre verdade/mentira, fatos e ideologia, que atualmente está bastante saliente na agenda internacional”. Ele prossegue enfatizando que “essa conotação dualista é simplista, e visa em geral acobertar um projeto político que se opõe a outro; ou seja, eu acuso o meu inimigo de ser ‘ideológico’, mascarando que eu tenho também uma posição política diferente. Em tempos de intolerância acentuada como o nosso, é cada vez mais importante discutir isso de forma aberta e cuidadosa”.
Uma série de trabalhos tem discutido que as ciências exatas e biológicas, antes vistas como racionais e “supra-sociais”, também possuem um peso ideológico que não poderia ser ignorado.
Ao se discutir se a ciência apresenta ou não um cunho ideológico passamos a discutir a capacidade de contestação. Uma teoria científica pressupõe uma possível refutação, questionamentos sobre seus métodos e crenças como ocorreu, por exemplo, com a teoria geocêntrica, desenvolvida pelo astrônomo grego Cláudio Ptolomeu, e com a teoria heliocêntrica, formulada por Nicolau Copérnico. Ideologias são recorrentemente tidas como verdadeiras e inquestionáveis. Entretanto, assim como as teorias científicas, as ideologias também são superadas e revistas dependendo do momento histórico.
Tomando isso como base podemos questionar: uma vez que as ideias não são autônomas, mas advêm de um contexto, será a ciência isenta de opiniões e de ideias pré-concebidas que estejam em voga em determinado momento social? Quais as ideias extra científicas camufladas nas hipóteses e teorias? And you will like to buy cheap Moncler jackets from the online store.
Um aspecto interessante dentro dessa discussão é levantado por Osvaldo Pessoa, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, quando comenta que “apesar de as teorias científicas apresentarem um núcleo objetivo, há também teses interpretativas, ou seja, desvinculadas de experimentos (pelo menos, por enquanto). Na física quântica, é bem conhecida a existência de muitas interpretações, algumas das quais afirmam que não se deve interpretar a teoria para além dos dados observacionais. É interessante que a escolha de qual interpretação um cientista ou um grupo de pesquisa adotará pode ser influenciado pela cultura reinante no contexto social do grupo. Não se trata exatamente de uma “ideologia” (no sentido usado atualmente), pois tais interpretações geralmente não têm implicações para a vida das pessoas, mas a escolha de uma interpretação pode ser influenciada pela ideologia reinante, como aconteceu no contexto da União Soviética”.
Monteiro comenta que “autores como David Bloor mostram como até mesmo a matemática possui aspectos sociais: as matemáticas dos gregos antigos e dos europeus medievais, por exemplo, estavam marcadas por valores, havia equações e formas de pensar proibidas a partir de ideias culturais, e isso marcou a matemática de forma decisiva”. Pessoa ressalta que “o ponto mais importante consiste na escolha das aplicações técnicas da ciência, o que envolve escolhas que beneficiam um grupo ou outro, um país ou outro. Escolhida uma prioridade de aplicação técnica, como a produção de uma determinada vacina, toda uma área de pesquisa científica atacará problemas visando o cumprimento desse fim. Os resultados científicos obtidos podem refletir fatos da natureza (que neste sentido não são ideológicos), mas a escolha do objeto de pesquisa foi motivada por ideologia. O impacto geral de tudo isso é a alocação de verbas para pesquisa visando certo fim social”.
A Teoria Evolucionista de Charles Darwin sofreu muito com esses questionamentos. Discute-se bastante que Darwin sofreu uma influência real das ideias de liberalismo vigentes durante a revolução industrial do século XIX, principalmente após a leitura da obra de Thomas Malthus Um ensaio sobre o princípio da população. Segundo Malthus, a população humana cresce geometricamente, enquanto a disponibilidade de recursos cresce em progressão aritmética. Levando isso em consideração, Darwin desenvolveu o conceito de “luta pela sobrevivência” em que os melhor adaptados sobreviveriam e as variações vantajosas seriam perpetuadas. Assim sendo, em um contexto histórico de capitalismo e liberalismo econômico, apesar de a sua teoria ser biologicamente inovadora, o contexto correspondente ao momento social vigente contribuiu para que a sua teoria fosse aceita.
Neste século atual, o conceito de ideologia ganhou significados diferentes dentro de cada área. Para historiadores e filósofos da ciência, é possível fazer uma clara distinção entre ideias verdadeiras e falsas. Para Karl Popper, por exemplo, ideologia é pseudociência, uma vez que ela pressupõe uma adesão não-crítica a determinada posição, sendo, assim, protegida de qualquer método refutatório dentro de metodologias racionais. Desde Marx e Engels, e outros pensadores posteriores, ideologia estaria ligada à falsa ciência, a um desvio de objetividade que só o método científico poderia resolver.
Pessoa pondera que “geralmente não dá para dizer que uma posição ideológica esteja associada a uma pseudociência. A ‘pseudociência’ pode ser definida como um conjunto de teses que não é compartilhado pela ciência estabelecida, dominante nos centros de pesquisa e nas universidades. Se adotarmos a visão da ciência estabelecida, diremos que a pseudociência é falsa, mas os partidários das correntes pseudocientíficas apostam que eles estão corretos e que a visão estabelecida seria falsa”. Ele prossegue exemplificando que “uma ideologia religiosa pode levar à tese de que não houve evolução biológica, o que é considerado pseudociência. Então vemos que há, sim, uma ligação entre ideologia e afirmações pseudocientíficas. Porém, uma crença em pseudociência pode ser motivada por razões que não envolvam ideologia”.
“Pode-se argumentar que os resultados da pesquisa científica mais pura, na medida em que são ‘objetivas’, revelando ‘fatos’ sobre a natureza, não são carregadas de ideologia”, diz Pessoa. “Eu tenho simpatia por esta posição, mas há muitos pensadores que discordam que fatos possam ser separados de valores. Em suma, essa discussão de filosofia da ciência pode ser vista, ela mesma, como uma discussão de natureza ideológica!”. Já para Monteiro, “há sim uma inextricabilidade entre ciência e ideias, valores e normas sociais. A ciência nunca está separada do contexto no qual é produzida, e mesmo aquelas ciências mais “duras” são também praticadas e implementadas por grupos de pessoas em contextos onde existem fenômenos sociais (valores, formas de organização, história etc.). Isso nem ajuda nem atrapalha, mas é parte intrínseca de como a ciência é produzida desde sempre”.
Dentro desse contexto, pode-se inferir que entender a base das ideologias também nos leva a compreender melhor as bases das ciências.
Cecilia Café-Mendes é bióloga pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-doutoranda na área de neurofisiologia no Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.