Por Allison Almeida
Um dos personagens centrais do clássico Alice no país das maravilhas, do britânico Lewis Carrol, é um antropomórfico coelho branco. Interminavelmente atarefado, a peculiar figura introduz a menina Alice, a protagonista da história, num mundo fantástico de infinitas possibilidades, mas nunca tem tempo para explicar-lhe sobre os prodígios e os perigos desse universo, pois está sempre atrasado para inúmeros compromissos.
Em seu atual estágio, a ciência parece padecer de uma espécie de “síndrome do coelho branco”. Em nenhum outro período histórico se produziu tantas pesquisas, artigos e inovações. De acordo com o Nature Index, a classificação da revista Nature que mensura a publicação de artigos nas revistas científicas mais importantes do mundo, de abril de 2016 a março de 2017, somente os países do G-8, o grupo das 8 maiores economias do globo, produziram 64.786 artigos.
“A corrida científica sempre existiu, pois a ciência é um dos principais alicerces econômicos e estratégicos geopolíticos. A novidade é que, com a emulsão da globalização e da evolução dos investimentos em pesquisa e meios para troca de informações e experiências, mais países como a China, por exemplo, puderam fazer ciência em larga escala. O que aumentou consideravelmente a sensação de competição científica”, explica Vanderlan Bolzani, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Os expressivos números também alimentam uma indústria bilionária. Publicar em uma revista internacional de alto fator de impacto pode chegar a custar US$ 6 mil. A maior editora de artigos e publicações científicas, a multinacional de origem holandesa Elsevier, obteve 2.32 bilhões de euros de receita bruta em 2016, segundo balanço divulgado pela própria empresa.
Essa espécie de grande “maratona acadêmica” recebe o nome de “fast science”, e consiste basicamente em priorizar índices quantitativos de produtividade. “O fast science trabalha com uma lógica análoga ao modelo mercantil”, aponta Murilo Vilaça, doutor em filosofia e educação pela UFRJ e autor de vários artigos sobre o tema. “Ele faz parte de um complexo fenômeno, já detectado por vários autores, chamado capitalismo acadêmico, que prioriza indicadores bibliométricos quantitativos como fator preponderante de qualidade”, diz.
Como numa sessão de análise, uma parcela considerável da comunidade científica começa a se questionar se essa maneira de produção é sustentável a longo prazo. Seria realmente construtivo enxergar a atividade científica como uma linha de produção para consumo em larga escala e com dilações e regras tão rígidas quanto ao tempo de execução?
“Fazer ciência pode se tornar uma rotina bem complicada. Para o agendamento da defesa do meu doutorado, o departamento exigiu um artigo publicado em uma revista internacional com classificação Qualis acima de B2, no tema da tese desenvolvida. Para finalizar um doutorado nos prazos vigentes a tarefa é árdua. Um artigo leva até seis meses da submissão à publicação. Para conseguir cumprir os prazos, precisei trancar o doutorado por seis meses. A pressão psicológica e financeira foi extenuante”, relata uma cientista paulista, que, na semana seguinte, foi selecionada em um dos programas de pós-doutorado da Unicamp. A pesquisadora pediu sigilo em seu nome, assim como alguns outros cientistas consultados para essa reportagem.
“Estou a 3 meses de defender meu doutorado e ainda não mandei o pedido de bolsa de pós-doutorado, porque sei que a chance de ele ser aprovado sem a publicação de um paper é muito baixa. Gostaria de realizar um experimento a mais para incluir no trabalho, mas demoraria e preciso enviar o pedido. Tentarei, então, publicar o trabalho como está, em um periódico de menor impacto”, aponta Sophia La Banca, doutoranda em psicobiologia pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp.
Fraudes e más condutas
A cultura do “publish or perish” (publique ou padeça) e a corrida por índices bibliométricos possuem um caráter bastante estressante e interferem diretamente na qualidade de vida dos cientistas. Além disso, impulsionam o surgimento de más condutas. “Ao meu ver, temos indícios suficientes para pensar que o fenômeno está contribuindo para a ocorrência de práticas tidas como antiéticas, tais como: plágio, autoplágio, falsificação, fabricação e coautorias fraudulentas”, opina Vilaça.
Certamente, está em jogo uma das discussões mais importantes da contemporaneidade. Se a ciência está sendo praticada da mesma forma que um evento como as olimpíadas, no qual é premiado quem produz mais, logo, haverá “competidores” que tentam burlar a disputa em busca dos louros da vitória. Em julho deste ano, o tema foi um dos destaques da 69ª Reunião da SBPC, realizada na Universidade Federal de Minas Gerais. No evento, pesquisadores brasileiros e estrangeiros trocaram experiências sobre o assunto.
“O problema da fraude científica ocorre por fatores que vão além da ordenação científica. Tem a ver com questões de insegurança social, economicismo e pressa para encontrar resultados positivos”, afirmou o alemão Jens Reid, professor da Friedrich-Alexander-University Erlangen-Nürnberg e um dos convidados a palestrar sobre o tema. Ele e os demais pesquisadores que participaram do debate concluíram que é uma simplificação grosseira encarar o dilema apenas por um viés de julgamento moral. Trata-se de uma questão complexa também ligada a fatores externos da pesquisa e questões estruturais, como a valorização exacerbada da quantificação do trabalho científico.
Recentemente, a Alemanha, atual terceira colocada do Nature Index, com 8.594 papers publicados entre abril de 2016 e março de 2017, se viu num grande escândalo envolvendo plágios. Karl Guttemberg, ministro da Defesa em 2011, e Annette Schavan, ministra da Educação em 2013, pediram demissão de seus cargos, pois um exame minucioso detectou trechos copiados de outras teses e dissertações em suas teses de doutorados.
Quase no mesmo período, a ciência brasileira também passou por um emblemático caso envolvendo atitudes antiéticas. Em 2014, de forma inédita, a Fapesp tornou públicos casos de má conduta científica envolvendo bolsistas da USP e Unicamp, com 5 pesquisadores sofrendo sanções por casos de plágios, manipulação de dados e falsa coautoria de artigos.
O que une o caso dos ministros alemães com os pesquisadores brasileiros são as justificativas. Uma análise atenta das entrevistas dos personagens envolvidos nos casos mostra que uma boa parcela justificou não ter tido a real intenção de burlar questões éticas. “A pressa em submeter o plano de trabalho à Fapesp e a sobrecarga de trabalho me induziram a não fazer algumas citações adequadamente dentro das normas previstas pela ABNT. Longe de querer aproveitar-me de trabalhos alheios, prejudicar autores, roubar ideias ou causar qualquer outro mal, tudo que tenho a dizer é que foi uma lamentável desatenção de minha parte”, declarou ao portal G1 à época, Antonio José Balloni, um dos pesquisadores envolvidos.
Os ex-ministros alemães tiveram os títulos acadêmicos de doutorado invalidados. Os pesquisadores paulistas foram julgados e ressarciram à Fapesp todo o dinheiro investido em seus trabalhos. Vanderlan Bolzani entende que é muito importante que cientistas sejam cobrados e julgados por condutas antiéticas, mas considera que a comunidade científica precisa também agir de maneira preventiva. “As discussões precisam ser iniciadas desde a graduação. É papel dos cientistas mais experientes conscientizar e promover esse importante debate para a criação de um ambiente científico saudável”, registrou.
Mentes exauridas
Ansiedade, tensão, estresse e preocupação são palavras frequentes citadas por pós-graduandos. Visando à obtenção de dados, informações, estudos e estatísticas recentes que abordem a qualidade de vida dos estudantes, cientistas e pesquisadores brasileiros, foram consultadas as assessorias de imprensa dos Ministérios da Educação e da Ciência, Tecnologia, Informação e Comunicação. As informações divulgadas na internet sobre questões ligadas à qualidade de vida geral do pesquisador brasileiro são incipientes e não houve retorno dos questionamentos sobre esses dados. Há alguma literatura científica sobre o tema, mas com escopos geográficos específicos e temas delimitados a determinados universos.
No Reino Unido, uma pesquisa realizada em 2012 constatou que a incidência de casos de depressão e angústia psicológica em pessoas que trabalham no mundo acadêmico é muito maior do que a média do país. Liderada por Gail Kinman, professora de psicologia da saúde ocupacional, o trabalho ouviu mais de 20 mil acadêmicos e 73% dos entrevistados consideram a rotina de trabalho extremamente estressante.
Os números não devem ser diferentes no Brasil, uma vez que não são incomuns histórias e relatos que indicam que é urgente acompanhar a qualidade de vida de quem faz ciência no país.
Allison Almeida é graduado em jornalismo (Unicap), pós-graduado em gestão e produção em jornalismo (Puccamp) e aluno da X turma de pós-graduação em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.