Por Patricia Santos
Em 2016, as viagens turísticas tiveram crescimento pelo sétimo ano seguido. Foram 1,2 bilhões de chegadas internacionais registradas segundo a Organização Mundial de Turismo, 46 milhões de turistas a mais frente ao anterior, considerando visitantes que pernoitam no local de destino.
Em um contexto de grande trânsito de pessoas, doenças transmissíveis por vetores também são ágeis viajantes, porém sorrateiras. Um exemplo é o espalhamento do vírus zika, que chegou em março de 2016 em Miami, nos Estados Unidos, apesar de a transmissão local só ter sido confirmada em julho.
Agilidade também é uma questão chave quando se trata de cercar possíveis novos surtos. O mais recente a chamar a atenção é o de febre amarela silvestre no Brasil, em dezembro de 2016, totalizando 792 casos confirmados, sendo 274 mortes, e centenas de casos sob investigação, com uma taxa de letalidade de 34%.
Países da América do Sul, região endêmica da doença, assim como a África, estão em alerta, sendo que Colômbia, Equador, Bolívia, Peru e Suriname também identificaram casos de febre amarela.
Houve também mudanças na exigência de vacinação a viajantes procedentes do Brasil. Quem for ao Panamá, Nicarágua, Venezuela e Cuba – dentre outros países que constam na lista da Organização Mundial de Saúde (OMS) – deve apresentar o certificado internacional de vacinação ou profilaxia (CIVP). A vacina deve ser tomada 10 dias antes da viagem, e o Regulamento Sanitário Internacional recomenda que uma única vacinação vale para a vida toda.
Com a chegada do inverno na América do Sul, a expectativa é que os casos diminuam, mas o alerta permanece, já que novos surtos podem ocorrer nas próximas estações, e ainda há a possibilidade de a doença, causada pelo flavivirus, se manifestar na sua forma urbana. A diferença é apenas o vetor: em regiões de mata o mosquito transmissor da versão silvestre é o Haemagogus, que infecta macacos e humanos; nas cidades, quem espalha a febre amarela urbana é o Aedes aegypti, conhecido transmissor de doenças como zika, chikungunya e dengue.
Preocupações permanecem
Caso a febre amarela chegue às áreas até então não afetadas, como a Ásia, onde o Aedes aegypti circula, o mosquito encontraria cerca de 1,8 bilhões de pessoas não vacinadas, na avaliação de Seth Berkley, CEO da Vaccine Alliance, organização internacional em prol de parcerias público-privadas para vacinação, em comentário no jornal New York Times.
Anthony Fauci, diretor do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID) nos Estados Unidos, também manifestou no The New England Journal of Medicine preocupação quanto à transmissão urbana e o espalhamento da doença nas Américas. Em particular nos Estados Unidos, os riscos de surto são limitados, mas casos relacionados ao fluxo intenso de viajantes podem ocorrer no país, especialmente em regiões mais quentes onde o A. aegypti é prevalente.
O espalhamento da doença em nível internacional depende de um fluxo intenso de pessoas. Isso se daria principalmente a partir daqueles que viajam a trabalho, ao retornarem de áreas de surto para seus países de origem, como explica o professor Expedito Luna, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP).
Foi o que aconteceu em 2016 quando, pela primeira vez, foram registrados casos de febre amarela na China, com trabalhadores infectados durante a epidemia em Angola, e que adoeceram ao retornar ao país. O caso também é visto como motivo para alerta global para Sean Wasserman, da Universidade de Cape Town, na África do Sul, e coautores no The International Journal of Infectious Diseases.
Potencial para urbanização
Até o ano 2000, os casos de febre amarela eram mais característicos entre pessoas que iam para regiões de florestas para caçar, fazer ecoturismo, e que não eram vacinadas. Portanto, quando ocorriam surtos, eram em locais restritos. Nos surtos entre 2000 e 2009, houve um crescimento da circulação do vírus no leste e no sul do país, regiões onde o vírus não aparecia há décadas, chegando também ao Paraguai – lá, porém, tratava-se da febre amarela urbana. Os casos foram se aproximando de áreas próximas às cidades, atingindo trabalhadores rurais, em 2016. Apesar de não haver registros da transmissão urbana até o momento, seria difícil diferenciá-la em municípios pequenos onde o A. aegypti já vive, segundo Luna.
Em publicação na revista Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, o professor Luna e colegas explicam que as séries epidemiológicas de casos confirmados de febre amarela em humanos no Brasil têm sido marcadas por altos e baixos.
Para os autores, não basta observar o ciclo da doença, já que diversos fatores impactam nos programas de saúde e na capacidade de resposta a surtos. Alguns deles são as condições climáticas, de urbanização, a movimentação de pessoas pelo país e os problemas de infraestrutura causados pela crise econômica atual.
A questão é a resposta para evitar uma reurbanização da febre amarela e, segundo ressaltam, é preciso olhar para o caso atual como uma “séria emergência epidemiológica”. Os pesquisadores analisam que seria preciso realizar diagnósticos mais ágeis para, então, priorizar locais de vacinação e controle do vetor, além de maior cuidado com os protocolos de vigilância para que os dados gerados sejam mais consistentes.
Em vez de boletins que divulguem as vacinas distribuídas, por exemplo, seria melhor divulgar as vacinas ministradas, a abrangência da vacinação nos países ou locais com casos confirmados e vulneráveis. Mais do que indicar casos notificados, confirmados ou descartados, é preciso monitorar indicadores epidemiológicos que permitam ações antecipadas, afirmam. “Esse ano o país escapou de ter uma reurbanização”, diz Luna, mas para o professor as condições para que isso aconteça estão dadas.
Vacinação é central
A febre amarela apresenta um risco potencial, mas na análise da professora da Universidade de São Paulo (USP) Deisy Ventura, vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade, se diferencia de epidemias globais recentes porque a doença tem sintomas e evolução amplamente conhecidos.
Esse fator favorece estratégias de resposta, como a que está em andamento pela OMS Eliminating yellow fever epidemics (EYE) motivada pelo surto de 2016 em Angola e na República Democrática do Congo. A iniciativa articula estratégias para prevenção, imunização e planos para países de maior risco, além de aumento de estoques de vacina.
O Brasil contribui nessa direção, sendo o maior fornecedor da vacina contra a febre amarela para os estoques de agências internacionais, como a OMS, pelo instituto Bio-Manguinhos, por meio de acordo com o Ministério da Saúde. A partir de julho, 1 milhão de doses mensais do imunobiológico serão destinadas à demanda internacional, chegando a 6-7 milhões até dezembro deste ano.
Deisy Ventura acrescenta que o trabalho da OMS é importante, mas tem limitações. “A ênfase em tratamentos e vacinas é fundamental quando uma epidemia está em curso. Em geral, porém, esses eventos são ‘agudos-crônicos’, ou seja, há um agravamento pontual que só é possível diante da persistência de fatores estruturais. Sob esse prisma, a atuação internacional é contraditória. Enquanto a OMS destaca a importância da saúde pública, organizações internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional difundiram, durante décadas, uma visão perniciosa do papel do Estado, que causou a redução do investimento público em setores cruciais para a saúde das populações”, afirma.
Para a professora, a negligência em relação a fatores estruturais que perpetuam as doenças “da pobreza” pode transformá-las em um risco global. Isto ocorre tanto pelo potencial de alcançarem dimensões inéditas (caso do ebola) como pela possibilidade de adquirirem gravidade antes desconhecida (caso do zika).
“Infelizmente, o que é hoje considerado um risco pelos Estados mais poderosos é a propagação internacional dessas doenças, consideradas aceitáveis desde que elas fiquem onde estão, embora causem milhares de óbitos, perpetuem a pobreza nas regiões em que são endêmicas e provoquem imensurável sofrimento”, afirma Ventura.
Na avaliação da professora, a ação do Brasil contra o zika mostra um fator decisivo em situações como essas: um sistema de saúde de acesso universal e gratuito com capilaridade nacional; o contrário do que aconteceu antes em países atingidos pelo ebola, desprovidos de sistemas nacionais de saúde estruturados.
No entanto, ela questiona como seria a resposta brasileira ao zika caso não tivesse ocorrido o aumento dos casos de microcefalia, e outras malformações do sistema nervoso central, se a OMS não tivesse declarado uma emergência internacional (entre fevereiro e novembro de 2016) e, sobretudo, caso o Rio de Janeiro não estivesse por receber os jogos olímpicos e paraolímpicos naquele mesmo ano.
“Creio que a resposta pode ser encontrada, em parte, quando analisamos a resposta brasileira à febre amarela. Não é possível, por mais que a população se esforce, a erradicação do vetor – a famosa ‘guerra ao mosquito’ – sem a priorização imediata do investimento em saneamento básico. E não existe segurança para os brasileiros, durante epidemia alguma, sem o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, como sistema universal e gratuito, único instrumento à altura da necessidade de prevenção e tratamento em âmbito nacional”, afirma.
O professor Luna ainda acrescenta que, no Brasil, faltam também novos esforços de comunicação. “O país tem experiência de vacinação em massa. Mas não basta apenas ter a vacina e os profissionais. Tem que ter divulgação, e eu creio que é isso que está faltando nas iniciativas mais recentes. As campanhas de mídia que davam suporte têm sumido, um exemplo é a atual campanha de vacinação para a gripe. Isso se reflete na baixa cobertura vacinal”, diz. Em 2017, 76,7% do público-alvo havia sido vacinado às vésperas do fim da campanha. Ele lembra que a população adulta, em particular homens em áreas rurais, têm histórico de procurar pouco os serviços de saúde e, no entanto, estão entre as pessoas em maior risco no caso da febre amarela silvestre.
Patrícia Santos é jornalista, mestre em divulgação científica e cultural pelo Labjor-Unicamp, onde é pesquisadora associada e produtora do programa Oxigênio veiculado em web rádio e podcast..